Posted on: 20 de outubro de 2020 Posted by: Joelson Ferreira Comments: 0

Acervo histórico pré-Teia dos Povos – Texto de 2006

 Começar de novo e contar contigo 
Vai valer à pena ter amanhecido 
Ter me rebelado, ter me debatido 
Ter me machucado, ter sobrevivido 
Ter vira a mesa, ter me conhecido 
Ter virado o barco, ter me socorrido 
Começar de novo... 
Ivan Lins

INTRODUÇÃO

Embora bem servido de material acadêmico, o MST pouco tem avançado na busca de uma efetiva forma de transição da propriedade de terra: talvez porque os intelectuais identificados com o Movimento não tenham uma vivência efetiva nos acampamentos e assentamentos. Não se quer dizer da necessidade de um “modelo”, ao contrário, os modelos devem ser um elemento de referência e nunca uma camisa de força. Assim, ao longo deste trabalho se colocam observações sobre a atual conjuntura, se redefinem algumas questões vitais sobre organização e métodos de implantação de acampamentos e assentamentos, a começar pela ocupação e se esboçam algumas questões de estratégia e tática.

CONSIDERAÇÕES SOBRE CONJUNTURA

Conjuntura é entendida como um conjunto de fatos ou circunstâncias acontecidas, em curso ou por acontecer. Embora de uma certa complexidade, conjuntura não é algo difícil de entender. O principal problema é que para entender uma situação conjuntural é preciso estar munido de um instrumental teórico adequado, só assim é viável entender o porquê do que está acontecendo ou aconteceu. É possível que em alguma parte do mundo uma pessoa com formação religiosa diga que a destruição das torres gêmeas nos Estados Unidos aconteceu “porque Deus assim quis” e outra pessoa diga “é coisa do destino” e ainda uma pessoa afirme que é “porque tinha que acontecer”. Claro que nenhuma dessas respostas é satisfatória assim como nenhuma delas explica coisa alguma. No entanto, quando se analisa um fato histórico à luz de um instrumental teórico sempre se chega às circunstâncias em que se deu o fato e por aí se descore o porquê do acontecido. A importância maior de saber interpretar uma conjuntura é que assim se pode interferir no curso da história e, em certa dose, visualizar o futuro. Certo é que as coisas não acontecem por acaso, mas obedecem a certas leis da natureza que são aplicáveis às relações humanas.

No passado da humanidade, os homens se organizaram e se agregaram em torno da família, para depois se unirem em tribos. No início, viviam vagando pelo mundo afora, caçando animais, pescando e coletando frutas, folhas, raízes; quando esses primitivos conseguiram dominar as plantas, deram início à agricultura: já não precisavam vagar – podiam se estabelecer num lugar fixo, comer o que plantavam e criar seus animais. Mas o desenvolvimento da humanidade não se deu por igual: enquanto em alguns lugares já se praticava a agricultura, em outros haviam grupos mais atrasados. Aqueles que praticavam a agricultura ficavam sujeitos a serem saqueados pelos que não a praticavam. O jeito era deixar alguns guardando os alimentos enquanto outros iam para a labuta do campo. Daí surge uma divisão: os que guardavam as coisas (não participavam diretamente da produção) e os que realmente produziam, que iam plantar, cuidar e colher. Os dois grupos assim formados desenvolveram dois tipos de consciência bem diferentes. A consciência dos que produziam ao longo do tempo foi se distanciando cada vez mais da consciência dos que não produziam. Ainda hoje aí estão, de um lado os que não produzem (militares, políticos, religiosos e etc.) e do outro lado os trabalhadores do campo e das cidades. Vê-se que o mundo é basicamente construído de produtores e de não produtores. Os intelectuais1 sistematizaram essa situação, concluindo que as sociedades estão organizadas com base em dois elementos: a superestrutura (exército, parlamento, igrejas, partidos políticos, profissionais liberais, artistas, etc.) e a infraestrutura (os trabalhadores da cidade e do campo, com seus respectivos meios de produção – a terra – e as fábricas). Como a base da sociedade é econômica (sem produção não se vive), mexer na economia abala toda a superestrutura. Mas se a crise for simplesmente de superestrutura, nem sempre afeta profundamente a economia (infraestrutura). É por isso que a grande crise provocada pelo PT no Brasil (uma crise política, de superestrutura) não afetou a economia. Concluindo esse parágrafo (que completa o anterior): uma análise de conjuntura requer o estudo comportamental da infra e da superestrutura da sociedade, tendo em conta sempre que o elemento determinante é o fator econômico. Quando numa determinada circunstância uma crise se apresenta na superestrutura e, ao mesmo tempo, na infraestrutura, dá-se uma situação de caos, absolutamente propícia para uma revolução de qualquer natureza. Fazer revolução é alterar profundamente a infraestrutura, ou seja, modificar as relações de produção que são as relações de capital e trabalho.

Finalmente, é bom lembrar que toda história está submetida ao jogo das contradições. É o antagonismo das contradições que permite o avanço dos processos. Nas sociedades capitalistas, por exemplo, a contradição básica (fundamental) é entre o capital e o trabalho. Esses são os dois polos da contradição. Se o indivíduo tem tendência capitalista, trata de fortalecer aquele polo. Mas existem (tanto num polo como no outro) contradições secundárias. Muitas vezes uma contradição secundária assume a postura de principal (tem que ser resolvida em primeiro lugar), mas ela estará sempre subordinada à contradição fundamental ou básica. Tática e estratégia são determinadas a partir da análise das contradições em busca de um objetivo. As alianças políticas (que são alianças táticas) jamais devem comprometer o objetivo maior: Lula e o PT devem ter percebido, com a desastrosa aliança que fizeram para chegar ao objetivo tático (a Presidência da República), que comprometeram irremediavelmente o objetivo estratégico: um Brasil socialista2.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONJUNTURA ATUAL

O mundo atual pode ser visto região por região, segundo seu grau de importância na geopolítica do Planeta. O Oriente Médio, com 70% das reservas de petróleo do mundo, é uma região militarmente ocupada pelos países hegemônicos. Ali nunca reina a paz, porque não interessa ao capitalismo retirar suas forças de ocupação e destruir suas bases militares, pois a questão energética passa necessariamente pelo petróleo que deve permanecer sob controle.

Na América do Norte, onde está a mais exuberante economia do mundo, EUA, Canadá e México, para efeito da globalização através do NAFTA, são um só país sob a direção do primeiro. O México começa a dar sinais de insatisfação e a se aproximar do Mercosul.

Na Ásia, a China, com todo o seu poderio atômico, uma população superior a um bilhão de pessoas, reservas de alimento para 300 dias para toda a população (nos EUA, só dá para 60 dias), o crescimento anual de nove por cento, a estagnação em termos de competição de sistemas, é absoluta: só se luta pela manutenção interna e pela ampliação de mercados; o Japão, depois de um avanço econômico extraordinário, estagnou; a Índia e Paquistão, países atômicos, fazem parte de um cenário de segunda classe: o primeiro, atado a seus antigos colonizadores enquanto o segundo serve aos colonizadores atuais.

A África, o continente mais miserável, a expectativa é em torno dos países que foram colônia de Portugal, particularmente Angola e Moçambique. Na África do Sul, um país rico, a situação das massas populares é igualmente desoladora. Os guetos continuaram a existir apesar da pretendida igualdade racial. Não há avanços significativos: só se chegou até Mandela.

A Europa Central tenta uma unificação (leia-se uma globalização mais atenta) que não promete grandes mudanças capazes de alterar a relação básica mundial do capital e trabalho, apesar da expectativa de incorporar mais países. Na Península Ibérica, Portugal absorve miçangas da União Europeia, enquanto a Espanha tenta resolver seus eternos conflitos com as diversas nações existentes, particularmente com o país Basco. A recente eleição de uma mulher na Alemanha aponta para o fortalecimento da política de Bush; em contrapartida, os conflitos de rua em Paris, manifestações populares espontâneas, revelam grande descontentamento da população.

Na América do Sul, a Bolívia se caracteriza por uma permanente situação de miséria e fome; suas riquezas naturais, particularmente o gás, ajudam a sustentar as economias do Brasil e da Argentina; a presença de Evo Morales é um dirigente sindical que se projetou pelo país, saiu vitorioso nas últimas eleições e preocupa o mundo capitalista tanto por sua postura popular quanto por sua aproximação com Hugo Chávez na Venezuela – já se fala em golpe para evitar sua chegada ao poder. A Venezuela, com um governo nacionalista e popular, chama a atenção do mundo pela firmeza das posições assumidas por Chavez; por sua capacidade de organizar as bases populares e seus desafios constantes aos norte-americanos; sua afirmação de que a opinião pública mundial é a única força capaz de dobrar o poderio capitalista representado pelos EUA vem ecoando por todo o planeta; tem uma economia que se assenta no petróleo e isso vem permitindo um crescimento econômico impressionante para os padrões latino-americanos. Na Argentina, a crise passada atirou o país definitivamente nos braços do FMI e as mudanças na equipe econômica dos últimos dias não indicam grandes avanços. No Chile, o governo do Partido Socialista ainda não disse a que veio, embora se possa considerar como positivo a aproximação dos países do Pacto Andino com o Mercosul; a provável eleição de uma mulher, no segundo turno, poderá redimir os socialistas das vacilações do passado. Na Colômbia, droga e guerrilha abrem caminho para uma sempre possível intervenção norte-americana no nosso continente. A construção de uma base militar norte-americana no Paraguai leva a crer que essa intervenção militar não demora. Parece configurar-se agora em roupagem nova, um sonho do “Che”: criar um… dois… muitos Vietnames. Os países amazônicos, particularmente o Brasil, possuem grande riqueza potencial, mineral, biodiversidade e, fundamentalmente, riqueza energética em recursos hídricos: um prato cheio para um capitalismo que está sempre buscando renovar-se para não sucumbir.

Na América Central está Cuba, um minúsculo país mostrando para o mundo que o socialismo é viável, apesar da presença ameaçante dos Estados Unidos. Já se vai quase meio século de independência. Os problemas básicos das sociedades atrasadas, como a fome, a educação, a saúde foram definitivamente afastados.

No Brasil, continua a expectativa não mais em torno do governo, mas da reeleição de Lula. Os líderes petistas regozijam com as vitórias até aqui alcançadas, como a estabilização do dólar, a aprovação das reformas da previdência e tributária (apesar dos cortes e recortes) e o controle da inflação. Internacionalmente, o governo trata de estabelecer fontes para todos os continentes, embora não esteja ainda claro onde se quer chegar. A reforma agrária continua estagnada, mas a máquina oficial se mostra menos resistente. Os resultados negativos da economia no final de 2005 foram rapidamente compensados com a antecipação do pagamento de milhões de dólares ao FMI. Melhor que isso só o churrasco a Bush na Granja do Torto!

A crise provocada pelo PT se inicia com a denúncia do caso “Waldomiro Diniz”, se aprofunda com o “mensalão” e culmina com os sucessivos escândalos dos “fundos de pensões” e os desvios de dinheiro das Estatais. No começo, qualquer militante petista podia pensar em jogadas políticas para beneficiar o partido e o governo, ainda que ilícitas, consagradas na vida política nacional. Nada disso: a mansão de Silvinho tinha um “Land Rover” que ele ganhou de um amigo. Lula tenta usar as massas em sucessivos comícios, visitas a fábricas, inaugurações de segunda. Estava longe de alcançar o que Chavez conseguiu na Venezuela: um milhão de pessoas nas ruas de Caracas para dizer não ao golpe e confirmar o presidente. Nem o poderio de toda a mídia foi capaz de superar a mobilização de uma sociedade organizada.

A crise capitalista global tem dois aspectos essenciais que se interrelacionam: a questão energética e os problemas ambientais. No primeiro caso, a escassez de petróleo – calcula-se que as reservas só alcançam para mais 30 anos. Este é um problema sem solução para os países industrializados do Norte. No que diz respeito às questões ambientais, vale lembrar as limitações na disponibilidade de água. A questão é igualmente inquietadora: rios que morrem a cada dia, desmatamentos, caças predatórias, buracos na camada de ozônio, efeito estufa, tufões, tornados, etc: “A queima desenfreada dos combustíveis fósseis está criando o efeito estufa que eleva continuamente a temperatura do planeta” (Bautista Vidal/Rui Nogueira, Nação do Sol, p.14)3.

O terrorismo, ao longo de toda a História, sempre foi um método de luta, tanto utilizado pelos conservadores como pelos revolucionários: isso significa reconhecer, mas não necessariamente apoiar os atos de terror. Em nome do terrorismo, os Estados Unidos atacam os terroristas pelo mundo afora, mas não as causas históricas do terrorismo que são a intolerância, a prepotência das nações mais ricas, as desigualdades sociais, a falta de justiça, a miséria e a fome no mundo.

A situação atual do Brasil, do ponto de vista das forças populares é de um absoluto vazio em termos de vanguarda. Depois dos recentes fracassos dos sindicatos, das centrais sindicais e das forças de esquerda em torno do PT, não resta coisa alguma… Ou talvez reste o MST. A responsabilidade do Movimento nesse momento histórico é muito grande. A História está a reclamar ações claras e decisivas anti-capitalistas; as reações das massas, as marchas populares no Chile, Bolívia, Venezuela, Uruguai e Brasil – para falar da América do Sul – não estão acontecendo por acaso. E de nada adianta iludir-se com os intelectuais que combatem o neoliberalismo: o buraco é mais embaixo. “Revolução socialista ou caricatura de revolução”. Aceitar o desafio que a História impõe é um dever. Ajustar as novas circunstâncias para enfrentá-lo é uma necessidade. Entretanto, a História segue seu curso; assiste a intolerância dos poderosos mas não se perde a perspectiva de um mundo mais harmonioso: sem guerras e sem temor e onde as nações livres e soberanas possam desenvolver um novo projeto de vida baseada numa relação homem natureza ecologicamente compatível. Não há porque abandonar o sonho de uma nova ordem social planetária. o MST é representante desse sonho para o mundo, a partir do Brasil. É fundamental, portanto, entender a atual conjuntura em toda a sua complexidade para interferir na realidade buscando as mudanças necessárias à consecução de seus sonhos.

A TERRITORIALIZAÇÃO

O MST já cumpriu um importante papel histórico, na medida em que incorporou as lutas de milhões de trabalhadores do campo. Desde o Brasil Colônia, reclamam um pedaço de terra. Cresceu quando o proletário buscava a propriedade da terra superando assim a questão da propriedade privada. E evoluiu ao reconhecer que só uma transformação ampla de toda a estrutura do país (e não apenas uma reforma agrária) poderá redimir o Movimento de toda a sua ingenuidade do passado, obrigando a traçar um novo caminho a partir de agora. Como fazer? Deixá-lo sem rumo, dada a extensão do problema? Em realidade, embora haja avançado bastante na questão da luta pela terra, uma análise aguda do processo indicará que as conquistas obtidas não estão sendo consolidadas. Tanto é que essa conquista quanto o próprio MST continuam vulneráveis. Socializar essa luta significa preparação para novos embates, tanto no plano da consciência quanto no plano material. Em uma palavra, criar uma frente de defesa que assegure as conquistas já obtidas e abrace perspectivas para outras novas. Desse ponto de vista é necessário rever o conceito de territorialização.

No caderno de formação número 30, gênese do desenvolvimento do MST, está definido territorialização: “é o processo de conquista da terra. Cada assentamento conquistado é uma fração do território dos Sem-Terras. A luta pela terra leva a territorialização porque, ao conquistar um assentamento, abrem-se as perspectivas para a conquista de um novo assentamento”. Como se vê, o conceito é o que é medido com o tempo – apenas um processo em cadeia sem nenhum conteúdo abrangente que lhe assegura a funcionalidade do sistema e sua manutenção.

É preciso, pois, aprofundar as discussões sobre a territorialização, dando-lhe o caráter de forma embrionária de Estado, entendendo Estado no sentido clássico marxista: “aparelho burocrático e militar de defesa”. Um Estado não se sustenta sem um exército.

No livro “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Engels define os dois traços de formação do Estado: em primeiro lugar, a divisão territorial e depois a instituição de uma força pública. Os destaques são do próprio Engels. A necessidade dessa força pública especial deriva da divisão da sociedade em classes, que impossibilita qualquer organização armada espontânea da população. Não importa o armamento que disponha essa força especial proletária, se armas modernas ou os velhos facões e foices; o que importa é que essa força exista e seja capaz de ajustar a cada fase da Historia. Esta nova estratégia a ser montada implica em afetar formas seletivas de ocupação. Ou seja, ao invés de perseguir a territorialização abrangendo todo o pais quantitativamente, proceder em centros estratégicos, como locais de potencial energético, de reservas minerais ou grandes conglomerados urbanos.

A FRENTE DE MASSA

A Frente de Massa, desde um primeiro momento, deverá jogar um papel fundamental no resultado final de todo o trabalho do Movimento. Sua composição e sua formação deverão ser muito criteriosas, porque ela irá orientar o conjunto dos militantes e a massa em todas as ações. Uma frente de massas eficiente não se constrói com facilidade e rapidez, mas com paciência e persistência. A sugestão que segue quanto à constituição e formação poderá ser melhorada, mas não deve ser ignorada. Naturalmente que todos os componentes deverão ter um bom nível de militância e especializar-se em áreas especificas.

  1. Agitador de massas: é um organizador com boa capacidade de comunicação oral com indivíduos ou com o público e tem presença marcante. Terá ação predominante no recrutamento nas manifestações públicas e no contato com os meio de comunicação;
  2. Estrategista Militar: militante com formação em estratégia militar e política. Cuidará da segurança da própria frente de massas e participa da segurança geral do Movimento;
  3. Educadores: parte da intelectualidade que participa do Movimento, contribuindo com as questões relacionadas com a educação, alfabetização, asseio e limpeza, higiene pessoal, etc.
  4. Formadores: quadros com eficiente formação política que deverão cuidar da capacitação política e da adaptação das táticas a serem utilizadas em momentos determinados;
  5. Estrategista de Produção: desde um primeiro momento (no processo inicial de recrutamento), este militante estará esquematizando a questão da produção, tendo como meta levar o grupo a autoabastecer-se no todo ou em parte;
  6. Paisagista/arquiteto militante: com sensibilidade para questões de arquitetura e paisagismo, seu papel é orientar desde o início quanto à importância de um meio ambiente convenientemente estético e contribuir para desenvolver conceitos de construções alternativas;
  7. Sanitarista: requer no mínimo conhecimentos de medicina social e prática de primeiros socorros;
  8. Logística: trata de questões de infraestrutura (implantação) e de apoio (manutenção);
  9. Finanças: quadro especializado em resolver questões de captação e aplicação/distribuição de recursos financeiros;
  10. Comunicação e Propaganda: mais voltado para a comunicação escrita, ao contrário do agitador de massas, compõe com aquele o esquema de comunicação de todo o movimento ou ação;
  11. Inteligência: atua para dentro, acompanhando possíveis infiltrações, delações ou debilidades. Atua para fora, detectando ações que possam atingir o Movimento ou seus membros;
  12. Jurídico: articulador de ações jurídicas preventivas ou não que salvaguardem a integridade e o direito das pessoas.

Assim, numa analogia ao número 12 e seus mistérios (12 pares da França, 12 meses do ano, os 12 apóstolos, as 12 tribos de Moisés), tem-se aqui os 12 guerreiros do novo mundo.

Por um lado, essa é a composição da frente de massas: homens especializados em diversas áreas. Por outro lado, a formação desse pessoal deverá estar no mínimo de acordo com as sugestões contidas no item Escola de Quadros (ver mais adiante).

A curto prazo, o importante é selecionar e preparar esses quadros. A médio prazo, formalizar a frente de massa e colocá-la em ação nas ocupações e demais manifestações do Movimento e, em futuro mais longínquo, tê-los como corpo inicial de um exército de defesa.

A OCUPAÇÃO

Desde logo a ocupação – uma ação social onde se persegue a posse coletiva de terra, deve ser conduzida pela Frente de Massa. Ainda antes do acampamento é importante que os participantes tenham claro que não se pretende formar uma nova geração mesmo que com nova orientação de pequenos proprietários, mas, para possibilitar o uso da terra para quem quer trabalhar sem limite de tempo, desde que se respeitem algumas regras de convivência. Portanto, a terra conquistada passa a ser conceitualmente um bem social ainda que, formalmente, para efeitos legais, possa assumir outra forma. O importante é que se tenha desenvolvido na cabeça de cada um o caráter social da conquista. Por aí se começa a fortalecer os princípios coletivistas quebrando aos poucos o individualismo.

É preciso ter muito claro que a consciência do homem que trabalha no campo (o homem rude), a grande massa dos trabalhadores rurais, tende mais para o individualismo que para o coletivismo. O próprio fato de viverem em grandes extensões de terra, ainda que não lhe pertençam, leva-os ao isolamento. Nunca vão adquirir uma consciência coletiva espontaneamente. Daí a importância de se desenvolver um trabalho intensivo junto aos assentados com o objetivo de dar-lhes uma consciência proletária agregadora e solidária, caso contrário continuarão a viver sonhando em ser como o antigo patrão com direito a propriedade da terra e ao aluguel de mão de obra ou ainda viver num assentamento com terras ociosas.

O PLANEJAMENTO

Nenhuma ação deve ser desenvolvida sem o conhecimento completo da população com quem se está trabalhando – do ponto de vista do indivíduo e seus costumes: religiosidade, esporte favorito, sonhos, hábitos, etc. A partir daí, a organização dos núcleos se faz mais fácil e esses núcleos tendem a funcionar eficientemente. O estudo prévio da população e a organização dos núcleos é um trabalho da Frente de Massa; faz parte do planejamento e servirá de referência mais tarde para a setorialização da terra.

A setorialização da terra, então pressupõe também um planejamento; levantamento detalhado da área com inventário de estruturas naturais existentes (lagos, açudes, nascentes, rios, encostas, brejos, capoeiras, pastos, etc.) e estruturas construídas (pontes, cercas, casas, chiqueiros, estábulo, depósito, etc.). Também nesse levantamento, entra o estudo das condições ambientais: nascente do sol, insolação, tendencia direcional dos ventos e das chuvas e fotoperíodo. Todos esses fatores influenciam no resultado final de uma lavoura que se vai implantar ou de um criatório que se vai estabelecer. Esses levantamentos devem ser feitos com a participação do máximo de pessoas, pois só assim será fácil ao coletivo compreender porque cada coisa deve ter seu lugar apropriado. Por exemplo, as casas ou agrovilas devem ficar próximas da fonte de água para evitar gasto de energia com bombeamento e voltadas para o sol para proporcionar melhores condições de salubridade. É preciso desenhar a área utilizando informações recolhidas pelo próprio grupo, se necessário consultando vizinhos, órgãos públicos, técnicos, mapas, etc. O pleno conhecimento do terreno permitirá o aproveitamento racional da terra. Quanto mais tempo dedicado ao desenho da área, maiores as possibilidades de um assentamento bem sucedido.

A SETORIALIZAÇÃO

Uma vez identificado o terreno com o máximo de pormenores (detalhes), se pode setorializar, ou seja, estabelecer setores. Para entender melhor o que é um setor, basta pensar que as áreas mais visitadas de uma certa atividade devem ficar mais próximas da casa. Claro que ninguém gostaria de ter um galinheiro que se visita pela manhã para dar alimento, mais tarde para a limpeza, depois para apanhar os ovos e no fim do dia para agasalhar e conferir as galinhas longe de casa. Também não pode ser demasiado perto, para evitar o mau cheiro. Entra aí também a questão da direção dos ventos predominantes. Da mesma maneira, uma área de preservação que se visita de quando em quando pode ficar mais longe. A questão da distância nos exemplos anteriores tem a ver com o consumo de energia humana – ATP. Toda área deve proporcionar um saldo positivo na produção e consumo de energia. Os setores aqui referidos vão variar segundo cada terreno específico. De posse desses elementos é mais fácil determinar onde será o galinheiro, as casas, a pocilga, o estábulo, a horta, a escola, o posto de saúde, o horto medicinal, as culturas perenes, agroindústria, áreas de lazer, etc. O resultado desse trabalho? O indivíduo e a formação de uma consciência coletiva, assim como a distribuição de terra.

DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO x TERRA

A rigor, a partir dos enunciados propostos, não se trata mais da distribuição de lotes mas da distribuições de funções dentro do assentamento. Isto não quer dizer que se acabaria com a divisão em lotes. Mas, quer dizer sim que caberia duas categorias de assentados. Os trabalhadores individuais por família e os trabalhadores do coletivo. Com a condição de que haja uma perfeita integração entre eles: com os do coletivo ajudando aos lotes familiares e vice e versa. Assim, haveria um conjunto; apresentaria um sistema integrado de produção e serviços. O sistema visto assim permite muitas outras atividades no campo além da tradicional agropecuária.

Para esclarecer melhor a questão, se deve considerar a população dos assentamento no seu aspecto laboral. Há trabalhadores rurais, balconistas, pedreiros, carpinteiros, pintores, viveiristas, encanadores, açougueiros, magarefes, costureiras, técnicos eletrônicos e mecânicos, motoristas, tratoristas, parteiras, doceiras, lavadeiras, etc. Pessoas que tendo uma atividade definida, não tem uma profissão reconhecida. Atirar toda essa população heterogênea na atividade agropecuária é meio caminho para o fracasso do conjunto; cria conflitos porque a capacidade produtiva é desigual e o trabalhador começa a ver no companheiro que produz menos, porque não é do ramo, o que pode parecer corpo mole, preguiça, mal caratice, etc.

Afora isso, é inquestionável que o homem certo na função certa é altamente produtivo; só assim é possível desenvolver o amor ao trabalho. Para os teóricos, essa postura pode parecer a imposição de uma nova divisão social do trabalho mas, na verdade, é o reconhecimento disso. Finalmente, a divisão da área dentro dos critérios enunciados deve estar condicionado ao potencial de capacidade produtiva do grupo familiar. Em outras palavras, se a família tem apenas um indivíduo (homem ou mulher) como força produtiva terá a concessão de uma área menor. O que se quer é impedir o desperdício na distribuição e evitar a existência de terra ociosa dentro do assentamento. Vale dizer: reconhecer a função social da terra em primeiro lugar.

A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS

Considerando o exposto anteriormente, a formação da consciência, ainda no assentamento a divisão da terra e a definição de funções, se chega ao ponto primordial: a produção de alimentos. Aqui se toma como diretriz que todo assentado que ocupa uma área assume três compromissos:

  • A produção de subsistência: todo assentado deve ter como prioridade a produção para o autossustento – uma horta associada a um pomar irá garantir a nutrição vegetal (vitaminas, frutas e verduras) e a criação de galinha, porco, etc. A criação de gado leiteiro ou de corte deve ser evitada porque o fundamental é a subsistência e a criação de gado requer muita terra.
  • A contribuição coletiva: trata-se de uma ação que não se restringe ao produtivo mas envolve outras atividades do assentamento, como jardinagem, construção de acessos e de equipamentos de lazer, embelezamento etc. Junto com o item anterior constituem as ações endógenas dos assentados.
  • A produção comercial: visa a contribuição ao conjunto da sociedade, adquirir recursos para aumentar o bem-estar familiar e a qualidade de vida e por isso deve primar pela qualidade; evitar intermediários, atravessadores e praticar preços solidários.
Produção de milho crioulo no Assentamento Terra Vista. Foto de 2020.

O assentado deve ser visto, nesse caso, como um produtor individual que contribui para o coletivo e para a sociedade. Por outro lado, ao assentados que não recebem lote, mas exercem outras funções no assentamento (dirigentes, pedreiros carpinteiros, motoristas, etc.) tem igualmente as mesmas responsabilidades daqueles.

Aqui se consideram as atividades produtivas diretas comuns a maioria dos assentamentos: cultivos perenes, apicultura, criação de gado, piscicultura, horticultura e atividades produtivas indiretas: embelezamento, horto medicinal, jardinagem, manutenção de máquinas, vigilância, ambas igualmente importantes.

A GESTÃO

Passada a fase do acampamento, no assentamento volta a aflorar a tendência a uma consciência patronal, porque ali elas passam a sentir-se (e de fato o são) proprietários. Uma nova existência, gerando nova consciência, manter o conceito desenvolvido no acampamento de que a terra é um bem comum, aliada a uma gestão inovadora é a maneira correta de conduzir o assentamento que pretenda criar o homem novo. A gestão inovadora do assentamento deve levar em conta os valores culturais enraizados no trabalhador rural que sempre esperou ordens de algum chefe ou administrador. Quando ele se defronta com uma nova realidade na qual ele vai decidir, vai administrar, ele frequentemente se perde. Sustentar um esquema de gestão que oriente, oferecendo coordenadas básicas, pode ajudar a resolver a questão e cristalizar um assentamento sem proprietários. Na prática atual, o que ocorre é um esquema de coordenador que está mais preparado para ações políticas que administrativo gerencial. A nova forma de gestão que se insinua aqui tem caráter empresarial transitório e rapidamente deve ser diluída até a extinção, na medida em que a administração por setores se imponha.

A setorização tal como foi explicado anteriormente permite centrar a questão do assentamento. A representação por setores deve gerar uma coordenação ampla da comunidade. O representante do setor, seja homem ou mulher, é a personificação do comandante que nazistas e fascistas preferem chamar de leader. É aquele que foi escolhido por seus pares como o que tem melhores condições para orientar e dirigir. A esses comandantes há que se dar sempre novos cursos de formação, sobretudo administração, reciclando e atualizando permanentemente seus conhecimentos, porque sempre há o risco de surgirem falsos comandantes. Aqui vale a pena citar Sun Tzu: “comandantes com muitos defeitos sofrem muitas baixas”. E quais são os defeitos dos comandantes? São perversos, egocêntricos, arrogantes, ambiciosos, gananciosos, impulsivos, lerdos, fracos, preguiçosos. Outro livro chines de estratégia (Seis Estratégias) também trata do assunto – a qualidade dos comandantes. São seis essas qualidades: benevolência, justiça, lealdade, confiabilidade, coragem e capacidade estratégica. Essas seis qualidades devem ser testadas: “torne os comandantes ricos e veja se eles se abstém de má conduta; torne-os nobres e veja se eles cometem fraudes ou conservam a confiabilidade; faça-os correrem perigo e veja se eles mantêm a coragem; sobrecarregue-os e veja se eles tem uma abordagem estratégica dos problemas”.

Quando os assentados forem capazes de escolher seus representantes em função da disposição de militância e da competência e não em função de favoritismos ou simpatias pessoais terão encontrado a forma sensata de auto dirigirem-se; terão estabelecido uma hierarquia baseada na capacidade de execução e na preparação dos seus representantes. A forma clássica do centralismo democrático peca porque ora é mais centralista e menos democrático, a depender da situação conjuntural no sistema indicado predomina a centralização aprovada livremente pelos assentados.

A MORADIA

Outra questão importante que deve ser enfocada ainda na fase do acampamento é a moradia. Quem, não tendo teto, não já sonhou com a sua casa ideal? Este sonho individual precisa ser identificado. A perspectiva de um acampado de ir viver num assentamento onde terá a sua casa é quase uma miragem e esse sonho deve ser alimentado na medida em que avança como Sem Terra. Nesse avançar é importante mostrar a conveniência de usar este ou aquele material. Cada região oferece, com mais ou menos abundância, materiais diferentes: barro, madeira, pedra, etc. Discutir a localização da casa em relação a água, direção de ventos, a importância do sol, a vantagem de uma horta e um jardim, paisagismo comestível. Por que não desenhar a casa sonhada, dando vazão a todo o poder criativo, imaginativo? Alertar para os sistemas hidráulicos, sanitários – a construção da fossa e dos reservatórios de água. Evitar as casas padronizadas – estas refletem o pesadelo dos arquitetos e não os sonhos dos Sem Terra. Porém, ainda mais importante, é mostrar ao companheiro a necessidade que a construção seja obra coletiva com ajuda do máximo de pessoas, porque esse é o caminho para se evitar o falso paternalismo Estatal que não oferece uma ninharia para que se criem favelas no campo. Por esse caminho se fortalece a independência dos Sem Terra. Um Sem Terra digno deve arrebatar do Estado tudo aquilo a que o povo tem direito mas não deve aceitar migalhas. A necessidade de se alimentar e ter moradia decente devem ser revelados a todos mesmo que aqueles que não sonham.

Casas no Assentamento Terra Vista (Arataca-BA), foto 2020 na pandemia.

JOVENS

Há quem pense (e até mesmo quem afirme) que a juventude está desajustada. Isso não passa de conceito desenganadamente metafísico ou concepção mecanicista; pretende-se com tal filosofia desligar o efeito da causa ou quando nada, nega na prática a interação dos fatores: A interpretação dos elementos históricos da realidade social, por paradoxal que pareça, não é a juventude que está desajustada. O que há é o desajustamento de toda a sociedade.

Inquietação da Juventude, Nelson Schaum, Diário da Tarde de Ilheus, 1968.

A citação acima vem a propósito do comportamento da juventude sem terra que certamente deixa muito a desejar. O desajustamento do conjunto social se reflete no comportamento dos jovens. Ou o movimento proporciona uma diretriz concreta de ação para os jovens e lhes facilita os meios, ou a sociedade o faz como vem fazendo e os molda ao seu gosto, alienando-os. Abrir perspectivas para a juventude significa dar-lhe opção de escolha. Por isso deve haver uma programação além do trabalho teórico de formação para estimulá-los ao contato com as populações vizinhas, vigilância, organização e participação de eventos, comunicação, lazer esporte, etc.

Muitos problemas perduram e preocupam porque se refletem diretamente no comportamento dos assentados, especialmente das mulheres e dos jovens. Não foi possível até agora desenvolver projetos que efetivamente contribuíssem para a libertação das mulheres ou projetos que contribuam para manter a juventude ligada à terra.

Não se criou um modelo alternativo capaz de relegar definitivamente o atual modelo urbano reconhecidamente um cenário de pobreza, drogas e violência. A questão da sexualidade explosiva na juventude tem de ser devidamente estudada e conduzida para que o sexo seja despojado de preconceitos e o amor exercido sem levianidade. A própria formação profissional deve oferecer novas perspectivas para que os jovens não sejam apenas uma peça a mais na constituição do exército industrial de reserva das elites. As manifestações artísticas devem aflorar e explorar o amor à terra, ao trabalho e à natureza, fugindo ao transplante de mensagens de outro mundo, de outra realidade que não a dos sem terra.

É preciso iniciar imediatamente um trabalho de educação técnica, científica, política e militar. Para isso, é fundamental incorporar uma juventude, particularmente a juventude estudantil e os intelectuais. Os primeiros pela sua qualidade e quantidade e também pelo fato de serem os principais beneficiários de uma transformação social efetiva; os segundos, pela capacidade de gerarem saber e pela qualidade de formadores de opinião.

CRIANÇAS E IDOSOS

Esses dois extremos merecem cuidados especiais. Num extremo, as crianças representam toda a confiança que depositamos no futuro. Para elas, devem estar voltadas todas as atenções com vistas à formação do homem novo, o grande sonho de Che Guevara.

No outro extremo, estão os nossos velhos que entregaram tudo o que foi possível para ver surgir uma nova sociedade sem excluídos e que têm muita sabedoria acumulada para transmitir as novas gerações. Sua capacidade física e intelectual deve ser utilizada de forma adequada sem as exigências comuns no sistema capitalista para conduzir a juventude. A sociedade atual discrimina os idosos a ponto de alijar do mercado de trabalho a partir dos quarenta anos. Entretanto, é preciso desmistificar a participação de crianças e idosos no processo laboral: os mais velhos necessitam trabalhar para manter suas funções pessoais e sociais – o trabalho deve ser visto como de utilidade vital.

O tipo de trabalho a ser desenvolvido pelos idosos tem a ver com a opção pessoal de cada e não está voltada para comparações de produtividade mas para atividade ocupacional. De maneira diferente, as crianças devem ser estimuladas ao trabalho prazeroso que também não objetiva a produção mas à educação. O trabalho de crianças e jovens é uma necessidade para sua formação e não deve interferir na programação dos estudos mas integra-se a ela o que é absolutamente prioritário.

ESCOLA DE QUADROS

A proposta é que o trabalho sistemático de formação de quadros se inicie em paralelo ao desempenho das oficinas. Quer dizer, a partir dos dez anos de idade (ver educação mais adiante) o trabalho reside na preparação dos jovens para as adversidades da vida pessoal e do seu conjunto social e tanto passa pela formação física quanto moral, cultural, filosófica, técnica, militar, ideológica e profissional. Reside também no trabalho de formação das mulheres. Tanto os jovens quanto as mulheres devem ser formados pelo trabalho. São ações associadas ao trabalho que permitem uma consciência bem desenvolvida. De pouco serve a teoria abstrata.

Frequentemente, quando se fala de formação militar muitas pessoas imaginam um terrorista atirando para todos os lados e jogando bombas a torto e a direito. Não é nada disso. Um dos grandes mestres militares da história da humanidade, Sun Tsu (autor do livro “A arte da guerra”), é hoje em dia, em plena época da globalização, o autor mais lido pelos homens de negócios do mundo capitalista, porque seus ensinamentos são de alto valor estratégico. O que se quer com a formação militar é colher conhecimentos sobre estratégia e tática que permitam aos quadros do movimento saberem orientar-se em situações críticas, quando sua segurança de sua família ou de sua comunidade estiver ameaçada. Mas isso não quer dizer que tais ensinamentos servem apenas em situação de guerra, pelo contrário são importantes na luta política: “guerra é a política exercida por outros métodos”. Sun Tsu diz: “As armas são instrumentos de mau agouro. As pessoas sábias só as usam quandro é inevitável portar uma arma sem necessariamente utilizá-la. Significa estar preparado mas não ansioso”.

Esse trabalho de formação de quadros que passa pelo terreiro experimental (como se verá mais adiante) no que toca a formação técnica e profissional deve incluir filosofia, materialismo dialético e materialismo histórico, economia das comunidades primitivas às sociedades modernas, revolução industrial e tecnológica, história do Brasil (a versão dos vencidos), estratégia e tática, agitação e propaganda.

A mística – que deve ser utilizada como elemento de estímulo – deve ser repensada porque facilmente se converte em teatro ou até em instrumento de mistificação, de engodo. O objetivo da mística, além do estímulo, deve ser o de contribuir com a formação de uma consciência crítica e nunca fomentar o espírito de religiosidade ou seguidismo.

EDUCAÇÃO

A proposta para a educação deverá se construir no desafio à criatividade. Começa na creche que é uma necessidade para liberar as mulheres para outros trabalhos que impliquem numa maior participação nas ações do assentamento, prossegue na escola. Mas é preciso diluir as escolas tal como existem atualmente e desenvolver três terreiros4:

Terreiro lúdico: constituído de jogos e brinquedos mecânicos, matemáticos para a primeira fase pós creche.

Terreiro experimental: oficinas para a segunda fase e

Terreiro de Ciência e Tecnologia: design, pesquisa, criação de protótipos e modelos para a última fase.

O lúdico

As crianças egressas das creches passam a frequentar o terreiro lúdico onde encontrarão não um espaço físico para desenvolver suas atividades, mas um referencial para despertar suas potencialidades. O conceito não é o de limitar a criança a determinadas ações, mas o de estimulá-las a despertar suas vocações e exteriorizar seus anseios.

Assim, o Terreiro lúdico tanto pode ser uma casa de farinha como uma oficina de brinquedos. A referência aqui aos brinquedos mecânicos e matemáticos é uma tentativa de excluir os chamados brinquedos inteligentes. Afinal, a categoria inteligente é somente aplicável ao seres pensantes. Neste terreiro, as crianças estão livres para desenvolver as atividades que lhes apeteçam mais, sem restrições morais. Aí se devem evitar recriminações do tipo “não faça isso que está errado”.

Aliás, toda manifestação cartesiana precisa ser evitada. Ao invés disso, se deve estimular a descoberta da maneira certa – do saber natural. As crianças sabem mais do que os adultos; estes já se esqueceram ou já foram moldados pelos educadores de outros tempos.

Neste terreiro, as crianças passam por uma fase alfabetização, a mais simplificada possível. Estudar só faz sentido quando se torna necessário e aparecem as primeiras manifestações das tendências das crianças para sua formação futura – precisamente isso é o que interessa aos educadores. Seria hora então de por em cheque essas aptidões e encaminhar o jovem para o estágio seguinte: o terreiro experimental que será constituído de várias oficinas de artes e ofícios.

O experimental

Se no estágio anterior as crianças brincavam, nesse estágio elas fazem e fazem segundo suas aptidões. Portanto, as oficinas de arte serão muitas; as de ofício nem tantas. Mas todas devem estar munidas de todo o instrumental necessário: uma oficina de música (arte) tem que estar dotada de instrumentos de corda como o piano e violão, de sopro como trompete e flauta transversal, de percussão, etc. Esses instrumentos, por mais sofisticados que possam parecer, não devem ser privativos das elites. Da mesma forma, uma oficina de dança terá que incluir do balé à capoeira, como a oficina de canto que inclui ópera e afoxé.

Por este caminho as oficinas de mecânica (ofício) não se limitam a máquinas de soldar e furadeiras, mas requerem tornos e fresas programáveis, equipamentos de precisão, etc. Nessa fase, os jovens com idade a partir de dez anos recebem ainda informações sobre condições ambientais de trabalho, ruídos, luminosidade, asseio, limpeza, segurança, ergonomia, etc. e devem ser recrutadas para o trabalho de formação de quadros (instruções histórico-filosófico-ideológica e político-militar. (Ver escola de quadros).

Ciência e tecnologia

O Terreiro de ciência e tecnologia é a fase conclusiva do ensino dentro do assentamento. Todos deverão ter a oportunidade de chegar a essa fase, apesar de que alguns se contentarão com o ofício aprendido na fase anterior. Aqui eles prosseguem com a formação de quadros e vão familiarizar e descobrir a ciência e a tecnologia.

Para se ter claro como funciona este terreiro, toma-se o exemplo que segue: cinco a dez jovens decidem de comum acordo estudar astronáutica (foguetes). Primeiro passo, a pesquisa – reunir o máximo de informações sobre o tema recorrendo a entrevistas, bibliotecas, livros, jornais e revistas, internet, etc. Segundo passo, a sistematização das informações obtidas; terceiro passo, o desenho, robustez estética e materiais a serem usados, design. Quarto passo, a construção do modelo ou protótipo; quinto e último passo, a experimentação – realizar o lançamento do foguete.

Na pesquisa, o importante é o ato em si de pesquisar, recorrendo ao máximo de fontes. Supõe uma biblioteca bem abastecida, além de visitas a outras bibliotecas especializadas. Ao sistematizar as informações, se identificam as ciências a que se deve recorrer (no caso astronáutica, aerodinâmica, física, matemática, química, mecânica, identificar e conhecer o combustível sólido ou líquido que vai usar no foguete, etc.). No desenho, se apreciam as questões de robusteza e estética na construção de protótipos de equipamentos, primeiros socorros, desenho geométrico e artístico, etc. A fase experimental permite o lançamento de foguete e avaliação dos resultados. De igual maneira se poderia pensar num grupo que optasse por estudar tecnologia alternativa no uso de combustível em veículos motorizados – a pesquisa alcançaria estudo de energias de biomassa vegetal (mamona, dendê, cana, etc.).

Educação Física

Nesse ponto, se entrelaçam esporte e lazer e, quando se fala em esporte, a tendência é pensar em futebol. Entretanto, não é só isso. Todo esporte é válido embora cada cultura tenha seus esportes preferidos, porque contribui para o desenvolvimento integral do ser humano, seja mulher, homem, criança ou ancião.

Nos levantamentos já referidos aqui deve-se dar atenção às condições locais para o aproveitamento de algum esporte ao ar livre como também a localização de espaço apropriado para um ginásio fechado de esportes onde se possa praticar, além dos esportes costumeiros, as artes marciais (karate, jiujitsu, tai kon do, kung fu, etc.) e a capoeira em ambiente fechado ou aberto.

O conhecimento das artes marciais que vem do Oriente se justifica não só pela eficiência enquanto arte marcial mas também porque se trata de manifestação cultural de povos sábios que têm tradição milenar. É preciso conhecer e absorver todo conhecimento universal útil. Mas não se pense que a ideia é implantar tudo isso nos assentamentos existentes ou em formação. Já trata-se tão só de uma proposição para aplicação progressiva ao longo dos anos, a depender das condições geográficas, econômicas, políticas de cada lugar em cada momento.

ECOLOGIA

Se, do ponto de vista social humano a afinação é o socialismo, do ponto de vista natural o compromisso maior é com o meio ambiente. A preservação da biodiversidade, restauração de bens naturais devastados ou ameaçados de devastação, criação de bosques energéticos para alimentar fogões (a lenha), proteção de nascentes e matas ciliares, etc. Desenvolver em todos os assentamentos a consciência de que os homens dependem da natureza, enquanto a natureza subsiste sem eles.

O antropocentrismo é apenas uma manifestações da vaidade humana. É necessário portanto a harmonia, o equilíbrio de um desenvolvimento ecologicamente compatível que prioriza o equilíbrio ecológico e estabelece limites do crescimento no lugar do desenvolvimento sustentável – que é, em essência, mercantilista.

Isto se consegue na medida em que se utiliza a terra de forma respeitável sem agressões à natureza, compatibilizando as lavouras com a seiva respeitável das atividades agropastoris, que não devem impactar o meio ambiente.

Rio Aliança e sua agrofloresta, Assentamento Terra Vista (Arataca-BA). Foto de 2020.

A preservação da fauna (espécies animais) e da flora (espécies vegetais) devem fazer parte do cotidiano de todo assentado. Não existem – como aprendemos nas nossas atrasadas escolas – animais úteis e nocivos. Todos os animais são uteis e são nocivos, inclusive o homem. Da mesma maneira não existem ervas daninhas, ervas que são indesejáveis em certas circunstâncias são bem vindas em outras situações.

Aos desmatamentos, os sem terra devem responder com a construção de viveiros de mudas, banco de sementes, proteção de matas e nascentes, criação de corredores de frutíferas para alimentar a fauna, implantação de pomares. De nada adiantam a pura pregação ecológica ou o paternalismo. É preciso estudar a natureza, identificar-se com ela e assim poder construir o paraíso na terra aqui e agora.

COMERCIALIZAÇÃO

Os produtores rurais quase sempre sofrem do mal involuntário dos desperdícios. Suas áreas geralmente possuem produtos em pequena quantidade que não são aproveitados porque sua comercialização é inexpressiva. Ocorre que se somados representam quantidade apreciável. Pensar numa central de comercialização que atenda aos assentados e outros produtores regionais não somente sensibilizará esses vizinhos como pode significar um bom resultado financeiro. Pensando sempre numa produção orgânica para obter preços diferenciados e contribuir com uma melhor qualidade na alimentação, uma central assim faria um trabalho seletivo separando os produtos de melhor qualidade para o mercado direto e os produtos menos apresentáveis serviriam para a alimentação animal ou para produção de doces. O valor desses produtos devem ser considerados em função da quantidade de trabalho incorporado a eles, e não em função das variações de mercado (oferta e demanda) que é o alimento natural do capitalismo.

Quando se almeja uma nova ordem social baseada na solidariedade e nos princípios do socialismo se deve combater o capitalismo em todas as suas manifestações. Muitos assentados se empenham bastante no trabalho perseguindo lucro financeiro, sacrificam até mesmo seu lazer e seus prazeres cotidianos em função de gerar lucro, benefícios que são muito mais importantes: a qualidade de vida e a projeção social do esforço coletivo. Esse tipo de assentado que corre atrás do lucro financeiro, facilmente poderá ser absorvido pelas elites e até mesmo se transformam em inimigo da reforma agrária.

Enquanto isso, outros continuam lutando de maneira menos individualista, perseguindo assegurar a continuação da luta dos excluídos, a integração entre os povos, a harmonia entre nações e novas formas de relações que afastem definitivamente o capitalismo.

ÚLTIMA PALAVRA

É preciso voltar a afirmar que este documento pretende apenas indicar um caminho seguro. A construção desde caminho será obra de todos. Não pense que se trata de aplicar tudo que aqui está escrito da noite para o dia. São apenas proposições que devem ir pouco a pouco tomando forma e, nessa medida, modificando as consciências.

A cada transformação de uma realidade social correspondem transformações na consciência das pessoas e esse é o caminho. Para trilhar esse caminho é sobretudo importante a leitura e o estudo disciplinado e o exercício da crítica e a autocrítica de maneira constante e imbuída de espírito de companheirismo.

Por tudo isso companheiro, lute. Ajude a cristalizar o já conquistado e busque mais. Nossa tarefa é simples, porém maravilhosa e nossos sonhos merecem transformar-se em realdade. Sejamos todos guerreiros de um novo mundo!

Novembro de 2001 a Janeiro 2006*

Assentamento Terra Vista.

*Este documento sintetiza um trabalho que vai de 2001 a 2005 no Assentamento Terra Vista (Arataca – BA)

1Os intelectuais jogam um papel muito importante na sociedade, mas eles podem servir aos interesses dos trabalhadores (como fizeram Florestan Fernandes, Paulo Freire e tantos outros) com suas obras e suas ações ou podem servir aos poderosos “dourando a pílula” para os capitalistas. Ao invés de usarem os termos explorados e exploradores, oprimidos e opressores, países ricos e pobres preferem falar de excluídos e incluídos, País rico e País emergente, ao invés de falar da exploração e submissão da mulher, preferem dizer “questão de gênero”.

2Sobre análise conjuntural é recomendável o livro de Marx “O 18 de Luis Bonaparte”.

3 As catástrofes naturais tendem a aumentar ano a ano em quantidade e intensidade matando os pobres e destruindo tudo o que está ao alcance. Ver “Retrato do Mundo”.

4 “Terreiro em várias regiões do Brasil significa área em frente ou nos fundos das residências agrícolas, significa também o lugar onde os negros reverenciam seus orixás e fazem a cabeça.” É essa última conotação antropológica cultural que interessa.

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