O diálogo e a troca de sementes entre povos indígenas gerou uma viagem por entre as histórias e os caminhos percorridos por antepassados, inspirando este texto-relato de Thiago Rolim.
Certa vez, tak kutut me contou de um tempo que não havia mais batatas-doces nas aldeias. As ramas desapareceram e o cultivo se extinguiu por todo o território tikmu’un. Ainda jovem, caminhando pelos caminhos dos antepassados, nos fragmentos das extensas faixas da Floresta Atlântica que ainda resistiam à ocupação violenta dos vales do Mucuri e Jequitinhonha, tak kutut encontrou algumas ramas espalhadas pela mata e decidiu levá-las em sua volta. Assim, como ele me contou, os tikmu’un recuperaram o cultivo das batatas-doces, após um longo período de sua ausência.
No momento em que ele rememorava esse reencontro, ouvia em diversas narrativas dos mais velhos o lamento referente a perda dos alimentos tradicionais, que seguem desaparecendo. Mas nesse lamento havia também um desejo pulsante de reencontrar essas espécies, de ter de volta os cultivos ancestrais e os alimentos da floresta, manejados desde tempos imemoriais pelos mõnãyxop (antepassados).
Já sabia então da existência de mais de vinte variedades de batata-doce cultivadas e lembradas pelos tikmu’un que, em sua maioria, haviam desaparecido. No último século, com a violenta ofensiva para ocupar as últimas porções de terra onde resistiam, os tikmu’un viram seus alimentos tradicionais não só desaparecerem pela destruição do fogo, pela ganância dos brancos ou pelo machado dos mimputax, mas também serem roubados pelos fazendeiros que tomavam suas terras. Assim, muitas dessas variedades de batata-doce passaram a ser conhecidas pelos nomes desses fazendeiros (xatõn, miyaeh, yiyoeh, iyit, tayoh, etc…) e já não se plantava mais elas nas próprias aldeias. Atualmente poucas variedades tradicionais existem e estão cada vez mais raras, substituídas por uma única variedade trazida de fora pelos brancos e que ainda assim é muito pouco apreciada.
Nessa mesma época, havia conseguido para algumas famílias batatas roxas e laranjas, três variedades, que vinham de feiras nas cidades e até produtores de outros estados. Assim, variedades ancestrais reconhecidas pelos mais velhos começavam a aparecer de novo nas roças tikmu’un. Alguns meses depois, sem saber como haviam se desenvolvido, me surpreendi ao ver batatas laranjas sendo assadas pelas crianças de uma aldeia. E poucos dias depois, visitando uma outra família para quem eu também havia dado algumas batatas, recebi um saco enorme com as mesmas batatas que, como pude ver, tinham sido multiplicadas e formavam já uma grande roça. Essa família já estava inclusive comercializando as batatas, que eram muito procuradas pelos brancos que circulam por ali. Vi essas variedades aparecerem aqui e acolá a partir da rede de trocas familiares. Mas vi também desaparecerem de diversas roças, principalmente pelas estiagens cada vez mais intensas e frequentes e a dificuldade do acesso à água nas aldeias.
Mesmo assim, agora possuíamos ramas dessas batatas e fomos distribuindo para mais pessoas. Quando reencontrei um dos anciões com quem pude partilhar a experiência desses plantios, depois já de muito tempo sem vê-lo, fui presenteado com muitas batatas roxas que ele seguia cultivando, orgulhoso.
“Minhas filhas não sabem comer, estão com medo! Mas eu disse: eu cresci comendo isso! É o alimento dos nossos antigos! Então pedi à minha esposa para fazer a água dessas batatas para a gente experimentar junto!”.
Mas ainda estávamos muito distantes de reaver aquela diversidade rememorada pelos mais velhos. Foi quando, a partir de conversas com o companheiro de luta Erahsto Felício, da Teia dos Povos, enviamos uma lista com outras variedades que foi generosamente espalhada para diversos territórios por todo o Brasil. Em São Paulo, o coletivo urbano de apoio aos povos indígenas (CUAPI), que faz um trabalho importantíssimo junto a diversos povos indígenas do estado, se solidarizou prontamente com nossa demanda e contatou uma grande guardiã das sementes do povo guarani mbyá, Jerá Guarani. Jerá é liderança da aldeia Tekoa Kalipety (T.I. Tenonde Porã), onde protagoniza um trabalho de referência na retomada das sementes e alimentos tradicionais de seu povo e dos povos indígenas do Brasil. Frutos desse trabalho tão inspirador, hoje existem na Tekoa Kalipety mais de 50 variedades de batatas-doce, 9 variedades de milho e muitas outras de diversos cultivos como mandioca, amendoim, abóbora, melancia, inhame, além de uma infinidade de frutas nativas. Jerá prontamente se dispôs a nos enviar algumas ramas, 11 variedades que foram buscadas pelo pessoal do CUAPI (agradeço imensamente a Amanda), e enviadas para nós pelos correios. Poucos dias depois, recebemos a notícia que as mudas haviam chegado na cidade. Fomos de moto e trouxemos a caixa para a aldeia.
Alguns dias antes de recebermos as ramas de Jerá, nos despedimos dos totxop (abóboras-espírito), cuja estadia, feita a meu convite, já durava mais de um ano. Essa estadia proporcionou um reencontro histórico, como no caso das batatas só que depois de um período muito maior de ausência, quase um século. No momento de sua partida, os totxop, grandes especialistas dos trabalhos agrícolas,junto aoshomens e meninos da aldeia, abriram uma grande clareira ao fundo da kuxex (casa dos cantos) para o feitio de uma roça. Tradicionalmente aberta para quem convida os espíritos, essa clareira foi proposta como um terreno coletivo para a retomada dos alimentos tradicionais.
De manhã bem cedo levamos as ramas para esse terreno e começamos a plantá-las. Nessa hora, aquele mesmo ancião que havia me presenteado com as batatas roxas chegou para nos ajudar. Terminamos de plantar juntos, buscando água em grandes panelas para regá-las. No dia seguinte, depois de semanas de estiagem, uma generosa chuva ajudou a aliviar o calor intenso e as ramas foram se estabelecendo.
Na outra manhã, esse ancião nos trouxe muitas ramas daquelas batatas roxas, para aumentar a nossa roça. Já há muito tempo incentivando essas retomadas, ele passou a visitar roças antigas procurando outras variedades e veio trazendo-as para plantarmos juntos, e já plantamos mais três dessas variedades.
Assim, nossa roça e nossas perspectivas foram se ampliando. Junto às ramas de batata, plantamos as sementes dos 4 tipos de milho guarani mbyá que Jerá também nos presenteou. As sementes dos milhos tradicionais sempre provocaram um maravilhamento: “são coloridas como as miçangas e nossos artesanatos!”. De aldeias vizinhas ganhamos mudas de banana, mamão, mandioca, das nossas andanças trouxemos sementes de frutas nativas.
As muitas ramas de batata, que seguem crescendo, vão ser multiplicadas e compartilhadas com mais famílias e aldeias. Vão chegar em outros territórios tikmu’un. Vão para a Aldeia Escola Floresta. Vão ser compartilhadas com os Tupinambá de Olivença e os Pataxó de Minas e da Bahia, com o Assentamento Terra Vista (onde Mestre Joelson está carinhosamente cultivando outras espécies, além do milho crioulo, para nos enviar) e para muitos outros territórios e povos pelo Brasil. E as colheitas futuras serão celebradas nos repastos oferecidos aos yãmiyxop, os povos-espírito (inclusive e sobretudo dedicados aqueles que auxiliaram na abertura da roça), e também nas brasas das fogueiras domésticas, no cozimento pela manhã para acompanhar o café, no preparo da água de batata, base da alimentação tradicional compartilhada entre parentes. E se a retomada das batatas-doce nos pareceu um de nossos importantes pontos de partida, sabemos das muitas outras possibilidades e tarefas que temos pela frente, e sabemos que é através das mais diversas alianças que esse trabalho se faz possível. Também começamos a plantar e produzir sementes e mudas de muitas variedades de melancias crioulas (amarelas, inclusive), da mandioca laranja, do jacatupé. De produtores mineiros recebemos 10kg de duas variedades de milho crioulo, o milho roxo e o milho preto de pipoca, que já estão sendo plantados por algumas famílias. De companheiros da Amazônia receberemos mudas de cará roxo em breve. E esse é só o começo!
algumas das variedades tradicionais de batata-doce do povo tikmu’un_maxakali:
- yiyoeh – batata-doce amarela (da casca branca)
- xatõn (nõ xax ponok) – batata-doce laranja (da casca branca)
- xatõn (nõ xax ãta) – batata-doce laranja (da casca rosa)
- xatõn (nõ xax muniy) – batata-doce laranja (da casca escura)
- tup kut nãg –
- nõm xeka – batata-doce grande
- nõm kutiynãg – batata-doce pequena (igual amendoim)
- ponok – batata-doce branca
- kotin nãg – batata-doce ondulada (igual abóbora)
- xuk níy ãmix – batata-doce da casca pintadinha
- iyit xeka – batata-doce lilás grande
- iyit nãg – batata-doce lilás pintadinha pequena
- pok yõg – batata-doce do brejo
- mãnemõn –
- miyaeh –
- ta yixux – batata-doce amarela
- panixox –
- panixox nãg –
- tayoh –
- ãta (xokyãm yikox) – batata-doce rosa (boca de lagarto)
- ãta xeka – batata-doce rosa grande
- xax ãta – batata-doce da casca vermelha
- kõmiy tox – batata-doce comprida
- muniy – batata-doce roxa
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