Posted on: 4 de setembro de 2020 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Por André Muniz*

No Brasil, os conflitos em torno de terras geralmente envolvem povos indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais sem terra. Deturpações da teoria darwinista, das teses aristotélicas (ou pseudo-aristotélicas) sobre a servidão natural e hermenêuticas bíblicas completamente descaracterizadas foram e ainda são usadas pelos europeus e seus descendentes nas justificativas de suas determinações coloniais. Por isso é tão importante decolonizar a ciência, a filosofia e, no texto presente, a fé.

Quando os invasores chegaram no continente, com a cruz em suas bandeiras, relatam a realização de belas missas, logo seguidas da matança, escravização, estupro e aculturamento dos nativos desta terra; além do sequestro dos africanos de sua terra natal, e seu aculturamento e escravização em terra estrangeira. Se diziam ser seguidores da Bíblia, mas ao invés do Evangelho do Cristo que veio para trazer vida, e vida em abundância, trouxeram para Abya Yala (continente que os colonizadores chamaram de “América”) violência e morte. Sobre os cristãos, disseram os indígenas: “Eles nos ensinaram o medo. Vieram fazer as flores murchar. Para que a sua flor vivesse danificaram e engoliram nossa flor” (citado em BOFF, 1992).

A terra sempre foi um dos principais focos de conflito. Além das conhecidas “guerras justas” (quando a Igreja, contrariando tudo o que Cristo ensinou, justificava uma guerra pela não conversão dos nativos), diversas ações foram tomadas ao longo da história para roubar territórios indígenas e impedir o acesso dos afrodescendentes à terra. O Diretório de Índios, por exemplo, que existiu de 1755 a 1798, deixou como saldo um “grande número de indivíduos dizimados por varíola e sarampo, bem como a destruição e desorganização das populações” (THIAGO, 2019), o que deixou suas terras livres para serem tomada pelos latifundiários.

O Regulamento das Missões, a Lei de Terras e diversas outras medidas legais foram sendo tomadas ao longo da história para manter as terras na mão de uma minoria, uma elite financeira e quase sempre branca. Mesmo órgãos como o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), precursor da Funai, traíam seu suposto objetivo, como quando participaram ativamente no genocídio dos Cinta-Larga, matando cerca de 3500 pessoas dessa etnia com brinquedos contaminados e alimentos envenenados. Nas palavras de Yaguarê Yamã (2019), “aqueles que eram os legítimos donos da terra passaram a viver de favor, confinados e dependentes do governo colonizador em praticamente tudo”.

Já os quilombolas são frutos da diáspora forçada de pessoas de diversos povos africanos, sequestradas de sua terra natal e escravizadas pelos europeus. Os africanos e seus descendentes não se submeteram a essa violência, muitos deles fugiam e ocupavam terras onde poderiam construir seus próprios redutos de resistência, chamados de quilombos. Embora tenham sido categoricamente perseguidos ao longo da história, muitos desses territórios ainda persistem e resistem, lutando pelo acesso a direitos humanos básicos como saúde, educação e saneamento básico. O descaso com essa população é tão claro que apenas 7% dos territórios de quilombos no país estão devidamente homologados e regularizados perante a lei.

Além disso, o sistema econômico capitalista adotado no Brasil também deixou muitas pessoas sem-terra, até mesmo pessoas brancas, tanto no campo quando na cidade. Dessa forma o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem militado pela reforma agrária, o que, num país onde 1% dos proprietários de terra controla quase 50% da área rural, deveria ser uma pauta não de movimentos sociais apenas, mas da própria Igreja de Cristo. Também existem pessoas sem lar nas zonas urbanas – segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) são mais de 100.000 moradores de rua só no Brasil. Estes também merecem uma casa, um espaço de terra onde possam viver e ter a sua segurança e subsistência garantida.

Construindo diálogos decoloniais entre a fé e os direitos de acesso à terra

“Levem as cargas uns dos outros e, assim, estarão cumprindo a lei de Cristo” (Gl 6.2). Uma vez que conhecemos a história e a situação atual dos nossos irmãos indígenas, é nosso dever, enquanto seguidores de Cristo, cumprir a sua lei, carregando o seu fardo, lutando pelos seus direitos junto com eles, sem, é claro, jamais roubar o protagonismo de sua luta, “tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). As diretrizes já foram dadas nas Escrituras, resta coloca-las em prática.

O desejo de Deus com a proclamação do Ano do Jubileu em Israel era que cada israelita que, mesmo que fosse por escolhas ruins (visto que a Lei não apresentava exceções), tivesse empobrecido e perdido sua terra e talvez até sua liberdade, voltasse para casa. Deuteronômio 15 vai além e ordena que não apenas a terra e a liberdade do israelita lhe seja restituída, mas que o irmão ainda empreste dinheiro para que o pobre prospere, e sabendo que a cada sete anos todas as dívidas deveriam ser canceladas – era mais uma doação do que um empréstimo. Muito mais então, não desejaria ver Deus os povos originários, que mesmo em meio a tanto sofrimento conseguiram sobreviver, retomar os seus territórios, com todas as condições necessárias para prosperarem? Aliás, não estamos fazendo nenhum favor, apenas humildemente devolvendo o que nunca deveria ter sido tomado.

Nos conflitos de terras, muitas pessoas nunca conseguem descansar, à semelhança do povo de Israel, pois estão constantemente na mira de latifundiários, fazendeiros, garimpeiros, madeireiros e grileiros, podendo ter suas terras invadidas a qualquer momento, mesmo que já tenham sido legalmente homologadas e regularizadas. Muitos dão o próprio sangue pela defesa de seu povo e do seu lar. Jesus declara que “o meu mandamento é este: Amem-se uns aos outros como eu os amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos” (João 15.12-13). Você está disposto a dar a sua própria vida pelos seus amigos indígenas, quilombolas e sem-terra? Porque este é o mandamento de Cristo.

“Ora, se alguém possui recursos deste mundo e vê seu irmão passar necessidade, mas fecha o coração para essa pessoa, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra, nem da boca para fora, mas de fato e de verdade” (1 Jo 3.17-18), ou como diz em outra tradução, “em ação e em verdade” (NVI). Não basta dizer genericamente que “amamos o próximo”. Se nós, tendo recursos (não apenas no sentido financeiro) não investimos nosso dinheiro, nosso tempo, nossa voz, nosso voto, nossos corpos e nem mesmo as nossas orações (o mais básico de tudo!) na causa de nossos irmãos indígenas, quilombolas, e trabalhadores rurais sem-terra, então, com certeza, o amor de Deus não está em nós.

Ainda há muitos indígenas em Abya Yala, desde os Inuítes no Alasca e Groelândia aos Selk’nam na Terra do Fogo, lutando pelo acesso, proteção e retomada de seus territórios originários, sem falar na luta pela manutenção e resgate da própria identidade e valores tradicionais. Além disso, 93% dos territórios quilombolas ainda precisam ser demarcados, homologados e regularizados, e os direitos básicos e medidas de reparação precisa chegar a todos eles. E não podemos aceitar que metade das áreas rurais do Brasil continuem sendo de uma minoria, que enriquece às custas de todo o resto da população, enquanto destrói ecossistemas e assim a própria possibilidade da vida no mundo. É imprescindível que os cristãos se engajem nessas lutas, ou não estaremos cumprindo a lei de Cristo.

Façam soar a trombeta, proclamem o Ano do Jubileu em toda a terra de Abya Yala.

LEIA A PARTE I

*SOBRE O AUTOR

André Muniz é graduando em Teologia pela Faculdade Latino-americana (FLAM) e estuda psicanálise no Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica (IBPC), foi missionário pela JOCUM e hoje é membro da Primeira Igreja Batista de Paracambi.  Seu Twitter profissional é o @leitormuniz e o instagram é @leitordeandremuniz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOFF, Leonardo. (1992). América Latina: da conquista à nova evangelização. São Paulo, Ática.

GERSTENBERGER, Erhard S. (1976). A terra e sua posse conforme o Antigo Testamento: Observações e perguntas.  Estudos Teológicos v. 16, n. 2. EST.

ROCHA, Julio Cesar de Sá. SERRA, Ordep [Org.] (2015). Direito ambiental, conflitos socioambientais e comunidades tradicionais. Salvador, EDUFBA.

YAMÃ, Yaguarê. (2019). À todos os indígenas e aliados [Versão e-book]. São Paulo, Editora Cintra.

THIAGO, Daniella Mudesto Rosa São. (2019). O caminho da terra: os Pataxó do sul da Bahia e o “fogo de 51” [archivo PDF]. Recuperado de http://www.congressopovosindigenas.net/anais/3o-cipial/o-caminho-da-terra-os-pataxo-do-sul-da-bahia-e-o-fogo-de-51/

Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. (2008) Rio de Janeiro, Nações Unidas.

SOUZA, Mariana Duarte. (2020, Abril 9) Como o Brasil pode enfrentar uma das maiores concentrações de terras do mundo? Recuperado de https://www.brasildefato.com.br/2020/04/09/como-o-brasil-pode-enfrentar-uma-das-maiores-concentracoes-de-terras-do-mundo

NATALINO, Marco Antonio Carvalho. (1990) Estimativa da população em situação de rua no Brasil. Brasília, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7289/1/td_2246.pdf

BRITO, Débora. (2018, Maio 29). Menos de 7% das áreas quilombolas no Brasil foram tituladas. Recuperado de https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-05/menos-de-7-das-areas-quilombolas-no-brasil-foram-tituladas

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