Posted on: 16 de novembro de 2021 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

*Por Ashish Kothari – membro fundador da Kalpavriksh, uma organização ambientalista da Índia. Ele ajuda a coordenar a Tapeçaria Global de Alternativas (GTA) e foi coautor ou coeditor de vários livros, incluindo Churning the Earth (2012) e Pluriverse (2019).

Texto publicado originalmente em Scientific American. | Tradução: Renata Amorim Almeida Fonseca

Nenhuma pessoa em sua vila passou por escassez de comida durante o lockdown, e, tampouco, ninguém adoeceu de covid-19, segundo atestou Moligeri Chandramma. Como agricultora nas terras secas do sul da Índia, ela cultiva mais de 40 espécies e variedades – em sua maioria painço, arroz, lentilhas e pimentas nativos – em um pouco mais de um hectare de terra. Chandramma é membro da Deccan Development Society (DDS), uma cooperativa de aproximadamente 5.000 mulheres Dalit (casta oprimida indiana) e Adivasi (indígena nativa), cujos conhecimentos sobre a integração entre conservação da biodiversidade e cultivos agrícolas são notáveis, rendendo a elas o prestigiado Prêmio Equator das Nações Unidas em 2019. Emergindo de uma situação de extrema desnutrição e discriminação social e de gênero nos anos 1980, essas agricultoras agora desfrutam de soberania alimentar e segurança econômica. Elas não estão apenas vencendo os desafios da pandemia, como também apoiando os mais necessitados: em 2020, cada família da DDS contribuiu com aproximadamente 10 kg de grãos para ajudar nos esforços para garantia da segurança alimentar de todos em sua região.

Do outro lado do mundo, seis comunidades Quechua dos Andes peruanos governam o Parque de la Papa (Parque da Batata) em Pisac, Cusco, uma paisagem montanhosa, num dos locais de origem da batata. Eles protegem a região como um território de “patrimônio biocultural”, um tesouro de riqueza biológica e cultural herdada dos ancestrais que conserva a impressionante diversidade de mais de 1.300 variedades de batatas. “Este é o resultado de um trabalho consistente de 20 anos na relocalização de nossos sistemas alimentares, em uma época em que nos tornamos muito dependentes de agências externas para nossas necessidades básicas”, disse, em agosto 2020, o agricultor Mariano Sutta Apocusi à LocalFutures, uma organização dedicada ao fortalecimento de comunidades em todo o mundo. “Focar no local nos ajudou a melhorar o acesso e a acessibilidade a uma grande diversidade de produtos alimentícios – especialmente batatas nativas, quinoa, kiwicha, outros tubérculos andinos e milho, que cultivamos com métodos agroecológicos indígenas.” As comunidades instituíram fortes medidas de saúde e segurança quando a pandemia chegou, mesmo enquanto faziam uma colheita abundante que possibilitou a distribuição de mais de uma tonelada de batatas para os migrantes, os idosos e um abrigo para mães adolescentes sexualmente abusadas na cidade de Cusco.

Na Europa, muitas iniciativas de economia solidária, que promovem uma cultura de cuidado e compartilhamento, entraram em ação quando o lockdown contra a covid-19 deixou muitas pessoas desempregadas. Em Lisboa, Portugal, os centros sociais Disgraça e RDA69 se esforçaram para recriar a vida comunitária, em um contexto urbano fortemente marcado pelo individualismo e separação, e conseguiram distribuir comida gratuitamente e a baixo custo para quem precisava. Eles forneceram não apenas refeições, mas também espaços de interação onde refugiados, desabrigados, jovens desempregados e outros que poderiam ter ficado desamparados pudessem desenvolver relacionamentos com pessoas e famílias em melhor situação, criando uma rede de segurança social. Os organizadores incentivaram a participação e a responsabilidade social, confiando àqueles com melhores condições a doação de alimentos e recursos financeiros, fortalecendo o sentimento de comunidade entre a vizinhança.

A pandemia expôs a fragilidade de uma economia globalizada que é anunciada como benéfica a todos, mas que na verdade cria profundas desigualdades e inseguranças. Somente na Índia, 75 milhões de pessoas ficaram abaixo da linha da pobreza em 2020. Globalmente, centenas de milhões, que dependem do comércio de longa distância e da troca de bens e serviços para sua subsistência, foram gravemente atingidos. De modo semelhante, embora menos extremo, problemas também apareceram durante a crise financeira de 2008, quando a especulação de commodities, junto com a destinação de grãos de alimentos para a produção de biocombustíveis, causou um aumento acentuado nos preços globais dos grãos, levando à fome e à escassez muitas pessoas em países que dependiam de alimentos importados. Ameaças à sobrevivência também surgem durante guerras e outros conflitos que impedem a movimentação de mercadorias. Nessas crises, as comunidades se saem melhor quando possuem mercados e serviços locais, bem como quando têm sua provisão de comida, energia e água, garantidos por seus próprios meios, ao mesmo tempo em que podem cuidar dos mais necessitados.

Moligeri Chandramma gerencia o banco de sementes DDS. Ele contém mais de 70 espécies e variedades de culturas. Crédito: Ashish Kothari

Moligeri Chandramma gerencia o banco de sementes DDS. Ele contém mais de 70 espécies e variedades de culturas. Crédito: Ashish Kothari

Entretanto, o valor dessas formas alternativas de vida vai muito além de sua resiliência durante convulsões de relativamente curto prazo, como a pandemia. Como pesquisador e ativista ambiental baseado em um país “em desenvolvimento”, há muitos anos venho defendendo que as visões de mundo das pessoas que vivem junto à natureza devem ser incorporadas às estratégias globais de proteção da vida selvagem, como na União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e na Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) das Nações Unidas. Como um crítico da globalização econômica, corroboro com o cientista social e ambientalista Wolfgang Sachs quando ele afirma que as calamidades, como o colapso da biodiversidade, exigirão não apenas adaptações ambientais, mas também mudanças radicais nos paradigmas econômicos, sociais e políticos dominantes.

As pessoas se reuniram em 2005 para marcar 20 anos de protestos sustentados contra a construção de barragens no rio Narmada. Crédito: Ashish Kothari

As pessoas se reuniram em 2005 para marcar 20 anos de protestos sustentados contra a construção de barragens no rio Narmada. Crédito: Ashish Kothari

Em 2014, iniciei com um grupo de colegas na Índia um processo para pesquisar caminhos para um mundo em que as pessoas vivam em paz umas com as outras e com a natureza. Cinco anos mais tarde (e fortuitamente, pouco antes da chegada da pandemia), o esforço cresceu em uma rede online internacional chamada de “Tapeçaria Global de Alternativas”. As conversas e as pesquisas do grupo indicam que essas opções viáveis, não importa onde estejam, tendem a ser baseadas na autossuficiência e na solidariedade comunitárias.

Esses valores estão em conflito com os da globalização, os quais oferecem aos habitantes do Norte Global (os privilegiados, não importando sua localização geográfica) muitas coisas que nós passamos a considerar como essenciais, desejáveis. Em contraste, com a promessa de crescimento contínuo da riqueza material que sustenta nossa civilização, povos que vivem à suas margens têm uma infinidade de visões para bem viver, cada uma delas adaptada às especificidades de seus ecossistemas e culturas. Para nos afastarmos da beira do precipício da desestabilização irreversível da biosfera, acreditamos que devemos possibilitar estruturas alternativas, como as das agricultoras Dalit, dos conservacionistas Quechua e dos voluntários de Lisboa, para que elas floresçam e se conectem em uma tapeçaria que cubra todo o globo.

Uma Jornada Iluminadora

Crescer na Índia, onde estilos de vida que estão intimamente ligados ao ambiente natural ainda resistem, inquestionavelmente, influenciou minhas ideias sobre a verdadeira sustentabilidade. Na década de 1970, como um estudante de nível médio que adorava observar pássaros nas florestas ao redor de Delhi, juntei-me a colegas de classe para protestar em frente à embaixada da Arábia Saudita, quando alguns príncipes chegaram ao país para caçar a grande abetarda indiano (uma ave agora em perigo de extinção). Esse protesto, junto com o da comunidade Bishnoi no Rajastão, que tradicionalmente protege esses pássaros e outros animais selvagens, envergonhou o governo indiano e culminou na solicitação para que os caçadores retornassem a seu país. Muitos do grupo passaram a fazer campanha pela proteção da Floresta de Delhi, uma das maiores selvas urbanas do mundo. Com o intuito de sistematizar seus esforços, em 1979, formamos o grupo ambientalista Kalpavriksh, nome de uma árvore mítica que torna os desejos realidade, simbolizando a nossa consciência crescente de que a natureza tudo nos dá.

O ativismo ensinou ao grupo tanto quanto a escola e a faculdade. Ao investigar as fontes de poluição do ar de Delhi, por exemplo, entrevistamos moradores que viviam no entorno de uma usina movida a carvão fora da cidade. Eles acabaram sendo muito mais afetados por sua poeira e poluição do que os moradores da cidade – embora não tenham acesso à eletricidade gerada por ela. Os benefícios do projeto se direcionaram, principalmente, para aqueles que já estavam em condições socioeconômicas mais favoráveis, enquanto os mais desassistidos experimentaram a maior parte dos prejuízos.

No final de 1980, o grupo viajou para o oeste dos Himalaias para encontrar os protagonistas do icônico movimento Chipko. Desde 1973, as mulheres da aldeia vêm protegendo com seus corpos as árvores destinadas à extração de madeira pelo departamento florestal ou por empresas baseadas nas planícies indianas. Segundo essas mulheres, as árvores deodars derrubadas, bem como como os carvalhos, os rododendros e outras espécies, eram sagrados, além de serem essenciais para a sua sobrevivência. Eles fornecem forragem para o gado, fertilizantes e alimentos silvestres e sustentam suas fontes de água. Mesmo como um estudante urbano, percebi o papel central desempenhado pelas mulheres rurais na proteção do ambiente – bem como a injustiça de burocratas distantes tomarem decisões com pouca preocupação com a forma como eles impactavam aqueles no território.

O Parque de la Papa no Peru é uma das terras originais da batata. Crédito: Ashish Kothari

O povo indígena Quechua governa a região como um território de “patrimônio biocultural”, conservando uma notável diversidade de batatas. Crédito: Ashish Kothari

O povo indígena Quechua governa a região como um território de “patrimônio biocultural”, conservando uma notável diversidade de batatas. Crédito: Ashish Kothari

Mulheres indígenas quechuas vendendo batatas. Crédito: Ashish Kothari

Mulheres indígenas quechuas vendendo batatas. Crédito: Ashish Kothari

Logo em seguida, o grupo tomou conhecimento sobre o plano de construção de 30 grandes barragens na bacia do rio Narmada, na Índia central. Milhões de fiéis adoram Narmada como uma deusa tempestuosa, mas generosa – tão imaculada que acredita-se que a Ganga a visite todos os anos para se lavar de seus pecados. Com o trekking, os passeios de barco e a viagem de ônibus ao longo de 1.300 quilômetros, ficamos deslumbrados com as cachoeiras que mergulhavam em gargantas espetaculares, em encostas densamente arborizadas, repletas de vida selvagem, campos com diversas plantações, aldeias prósperas e templos antigos. Tudo isso seria submerso. Começamos a questionar o próprio conceito de desenvolvimento. Não seria certo que a destruição superaria, em muito, quaisquer benefícios possíveis? Quase quatro décadas depois, nossos medos se mostraram tragicamente verdadeiros. Centenas de milhares de pessoas deslocadas ainda aguardam a devida reabilitação, e o rio a jusante das represas tornou-se um fio – fazendo com que a água do mar alcance 100 quilômetros para o interior.

Com o passar dos anos, foi possível compreender como poderosas forças econômicas alcançam todo o mundo, vinculando intimamente a injustiça social com a destruição ecológica. A era da colonização e escravidão expandiu enormemente o alcance econômico e militar de alguns estados-nação e suas corporações aliadas, permitindo a extração mundial de recursos naturais e exploração do trabalho para alimentar a revolução industrial emergente na Europa e América do Norte. Historiadores econômicos, antropólogos e outros demonstraram como essa história dolorosa lançou as bases da economia globalizada de hoje. Além de causar danos ecológicos irreversíveis, este sistema impede o acesso de muitas comunidades aos bens comuns – rios, prados e florestas essenciais para sua sobrevivência – enquanto criam uma dependência de mercados externos. O enorme sofrimento durante a pandemia apenas expôs essas falhas históricas e contemporâneas.

Durante minhas andanças ao longo das décadas e, especialmente, enquanto pesquisava um livro com o economista Aseem Shrivastava, tomei conhecimento de uma tendência muito esperançosa. Em todo o país e, na verdade, em todo o mundo, centenas de movimentos sociais estão apoiando os grupos humanos marginalizados a retomarem o controle sobre suas vidas e seus meios de subsistência. Em 2014, Kalpavriksh iniciou uma série de encontros chamados Vikalp Sangam, ou Confluência de Alternativas, no qual impulsionadores desses esforços vigorosos poderiam se reunir, compartilhar ideias e experiências e colaborar, ajudando a construir uma massa crítica para a mudança. Essas interações trouxeram insights sobre uma questão de investigação vital: quais são as características essenciais dessas alternativas desejáveis e viáveis? Felizmente, eu estava longe de estar sozinho nessa busca. Em uma conferência sobre decrescimento em Leipzig, em 2014, ouvi com satisfação Alberto Acosta, economista e ex-político do Equador, falar sobre buen vivir: uma visão de mundo indígena baseada em bem viver uns com os outros e com o restante da natureza. Embora Acosta não falasse inglês e tampouco eu falasse espanhol, tentamos nos comunicar animadamente, recebendo então a ajuda do especialista em decrescimento Federico Demario na tradução. Decidiram em conjunto trabalhar em uma compilação de alternativas prósperas em todo o mundo – registrando 20 ideias possíveis no verso de um envelope. Mais tarde, foram agregados o crítico ao desenvolvimento Arturo Escobar e a ecofeminista Ariel Salleh como co-editores de um volume chamado Pluriverse e o número de registros sobre iniciativas aumentou para mais de 100!

Comunialidades

Embora incrivelmente diversas, as alternativas emergentes em todo o mundo compartilham certos princípios básicos. O mais importante é manutenção ou o resgate da governança comunitária dos bens comuns – da terra, dos ecossistemas, das sementes, da água e do conhecimento. Na Inglaterra do século 12, pessoas poderosas começaram cercando (ou fechando mesmo) campos, prados, florestas e riachos que tinham sido até então usados por todos. Esses cercados realizados por proprietários privados e industriais se expandiram pela Europa e se aceleraram com a revolução industrial, forçando dezenas de milhões de pessoas despossuídas a se tornarem operários ou emigrarem para o Novo Mundo, despossuindo as populações nativas. Nações imperiais apreenderam grande parte dos continentes e reconfiguraram as economias das colônias, extraindo matéria-prima para as fábricas, capturando mercados para exportação de produtos manufaturados e obtenção de alimentos como trigo, açúcar e chá para a classe trabalhadora recém-criada. Desta forma, os colonizadores e seus aliados estabeleceram um sistema de dominação econômica perpétuo que gerou o Norte Global e Sul Global (o mundo dos marginalizados, não importando sua localização geográfica).

A onda de movimentos anticoloniais surgida nas primeiras décadas do século XX, muitos deles bem-sucedidos, gerou temores de que os suprimentos de matérias-primas para indústrias e de mercados para produtos acabados de maior valor seriam perdidos. O presidente Harry S. Truman respondeu lançando um programa de redução da pobreza no que ele descreveu como “áreas subdesenvolvidas” com suas economias “primitivas e estagnadas”. Conforme detalhado pelo ecologista Debal Deb, instituições financeiras recém-criadas e controladas pelos países ricos ajudaram as ex-colônias a “se desenvolver” ao longo do caminho traçado pelo Oeste, fornecendo materiais e fontes de energia e criando mercados para carros, refrigeradores e outros bens de consumo. Um aspecto integrante do desenvolvimento, como assim concebido, propagado e geralmente executado por condições restritivas associadas a empréstimos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, tem sido a privatização ou o confisco estatal de bens comuns para extrair metais, petróleo e água.

Material da Federica Fragapane em “Alternatives Transformation Format: a Process for Self-Assessmentand Facilitation towards Radical Change”. Gráfico preparado por Kalpavriksh para ACKnowl-EJ. Tradução: Arthur Melo Sá | Imagem: Victória Oswaldino.

No entanto, como foi demonstrado por Elinor Ostrom, vencedora do Prêmio Nobel em Ciências Econômicas de 2009, os bens comuns são governados de formas mais sustentáveis pelas comunidades do que por governos ou empresas que os reivindicam e dos quais as destituem. Essa noção deu origem a inúmeros esforços de base para proteger os bens comuns remanescentes e restabelecer o controle sobre os outros. O conceito de bem comum foi expandido para incluir “os recursos físicos e os conhecimentos de que todos nós compartilhamos para benefício de todos”, explica a socióloga Ana Margarida Esteves, que colabora com a European Commons Assembly, uma organização guarda-chuva para centenas de tais empreendimentos.

Muitos desses esforços se assemelham ao DDS e ao Parque de la Papa na governança comunitária de bens comuns para potencializar a agroecologia (agricultura familiar que sustenta solo, água e biodiversidade) e a soberania alimentar (controle sobre todos os meios de produção de alimentos, incluindo terra, solo, sementes e o conhecimento de como usá-las). O movimento para a soberania alimentar La Via Campesina, que se originou no Brasil em 1993, inclui atualmente cerca de 200 milhões de agricultores em 81 países. Essas tentativas de autogestão e a governança das comunidades se estendeu também a outras necessidades básicas, como à energia e à água. Na Costa Rica, Espanha e Itália, cooperativas rurais vêm gerando eletricidade localmente e controlando sua distribuição desde década de 1990. Centenas de aldeias no oeste da Índia se mobilizaram no sentido de uma “democracia da água”, com base na captação descentralizada e na gestão comunitária de zonas úmidas e de águas subterrâneas. Mobilizar as pessoas para sustentar, construir ou reconstruir sistemas locais de conhecimento é essencial para tais empreendimentos.

Direitos adquiridos para governar os bens comuns também são importantes. Na Amazônia equatoriana, indígenas Sapara lutaram muito pela conquista de direitos coletivos sobre seu território na floresta tropical. Eles agora estão defendendo-o contra a indústria petrolífera e os interesses da mineração enquanto desenvolvem um modelo de bem-estar econômico que combina suas cosmovisões tradicionais – formas de conhecer, ser e fazer que estão física e espiritualmente ligados aos seus territórios – com novas atividades como o ecoturismo liderado pela comunidade. A receita do turismo caiu durante a pandemia, mas suas florestas e a ética comunitária dão quase todos os alimentos, água, energia, habitação, remédios, diversão, saúde e aprendizagem de que precisam. Eles agora estão oferecendo sessões online sobre suas cosmovisões, análise de sonhos e cura. A participação de sessões presenciais em seu acampamento de ecoturismo Naku, em 2019, foi uma experiência notável. A versão virtual não é tão envolvente, mas ainda assim representa uma forma inovadora de adaptação às circunstâncias.

Tornar cidades mais verdes ou mais acolhedoras, como os centros sociais de Lisboa estão fazendo, também requer governança baseada nas comunidades e nas economias de cuidado e compartilhamento. Em todo o Sul Global, os projetos de desenvolvimento têm levado centenas de milhões de pessoas para as cidades, onde vivem em favelas e trabalham em condições perigosas. Moradores ricos da cidade poderiam fazer sua parte consumindo menos, o que reduziria a extração e o despejo de resíduos que levam ao deslocamento de pessoas e a precarização da vida em lugares distantes. Um espectro de caminhos para cidades mais equitativas e sustentáveis surgiram e estes incluem, por exemplo, o movimento Cidades em Transição, que tenta regenerar os bens comuns e tornar as cidades europeias neutras em carbono. O movimento do municipalismo está criando uma rede de cidades sem medo, entre elas Barcelona, Valparaíso, Madrid e Atenas, para fornecer ambientes seguros para refugiados e migrantes. A agricultura urbana em Havana fornece mais da metade de suas necessidades de alimentos frescos e inspirou muitas outras iniciativas agrícolas urbanas em todo o mundo.

Cinco Pétalas da Flor da Transformação

Essas iniciativas apontam para a necessidade de transformações fundamentais em cinco dimensões interconectadas. Na esfera econômica, precisamos nos afastar do paradigma de desenvolvimento – incluindo a noção de que o crescimento econômico, como medido pelo produto interno bruto (PIB), é o melhor meio de alcançar objetivos humanos. Em seu lugar, precisamos de sistemas para respeitar os limites ecológicos, enfatizando o bem-estar em todas as suas esferas e localizando as trocas que permitem a autossuficiência – bem como boas medidas desses indicadores. Butão há muito faz experiências com a Felicidade Interna Bruta (FIB) como índice e a ideia gerou variantes, como o recente foco da Nova Zelândia em saúde mental e em outras medidas de progresso.

Também precisamos estar livres do controle monetário e financeiro centralizado. Muitos experimentos em moedas e economias alternativas baseadas na confiança e em intercâmbios locais estão em andamento. Talvez o mais inovador deles seja o “banco de horas”, um sistema de troca de serviços baseado no princípio de que todas as habilidades ou ocupações merecem igual respeito. Pode-se, por exemplo, dar uma aula de ioga de uma hora com crédito que pode ser resgatado por uma hora de trabalho no conserto de bicicletas.

Em muitas partes do mundo, os trabalhadores estão procurando controlar os meios de produção: terra, natureza, conhecimento e ferramentas. A exemplo da Vio.Me, uma fábrica de detergentes que visitei em Thessaloniki, na Grécia. Sua gestão foi assumida pelos trabalhadores, sua produção foi convertida para processos mais sustentáveis (com a adoção de azeite de oliva na sua composição ao invés de componentes químicos) e foi estabelecida uma paridade nos pagamentos, independentemente do tipo de trabalho de cada trabalhador. O slogan na parede da empresa proclama: “Não temos patrão!”

De fato, mundialmente, o próprio trabalho está sendo redefinido. A modernidade globalizada criou um abismo entre trabalho e lazer – é por isso que esperamos tanto pelo final de semana! Muitos movimentos buscam preencher essa lacuna, permitindo maior prazer, criatividade e satisfação. Nos países industrializados, as pessoas estão resgatando formas manuais de fazer roupas, calçados e alimentos, sob faixas que dizem “o futuro é feito à mão!” No oeste da Índia, muitos jovens estão deixando as rotinas de trabalho que “matam almas” nas fábricas para voltar a tecelagem em tear manual, o que lhes permite controlar seus horários enquanto provê um rendimento criativo.

Trabalhadores como Dimitris Koumatsioulis administram coletivamente a Vio.Me, uma fábrica de detergentes ecologicamente corretos em Thessaloniki, Grécia. Crédito: Ashish Kothari.

Trabalhadores como Dimitris Koumatsioulis administram coletivamente a Vio.Me, uma fábrica de detergentes ecologicamente corretos em Thessaloniki, Grécia. Crédito: Ashish Kothari.

Em Praga, República Tcheca, as pessoas compram e vendem localmente em um mercado de agricultores e produtores. Crédito: Ashish Kothari.

Em Praga, República Tcheca, as pessoas compram e vendem localmente em um mercado de agricultores e produtores. Crédito: Ashish Kothari.

Na esfera política, a centralização do poder inerente aos estados-nação, seja democrático ou autoritário, enfraquece muitos povos. A nação Sapara no Equador e os Adivasis da Índia central defendem a democracia direta, onde o poder reside principalmente na comunidade. O estado – na medida em que continua a existir – ajudaria principalmente na coordenação em maior escala, sendo estritamente responsável pelas unidades de tomada de decisão nos territórios. A antiga noção indiana de swaraj, literalmente traduzida como “autogoverno” é particularmente relevante aqui. Ela enfatiza que o indivíduo, a autonomia coletiva e a liberdade estão ligadas à responsabilidade e ao respeito pela autonomia e liberdade dos outros. Uma comunidade que pratica swaraj não pode represar um riacho, por exemplo, se isso ameaçar o abastecimento de água a jusante nas aldeias: seu bem-estar não pode comprometer o dos outros.

Essa noção de democracia também desafia as fronteiras dos estados-nação, muitos dos quais são produtos da história colonial e romperam com áreas ecológica e culturalmente contíguas. O povo curdo, por exemplo, está dividido entre Turquia, Irã, Iraque e Síria e por três décadas tem lutado para alcançar autonomia e democracia direta com base em princípios de sustentabilidade ecológica e libertação das mulheres, sem fronteiras que os dividem. Grupos indígenas no México, coletivamente identificando-se como zapatistas, há mais de três décadas afirmam e sustentam uma região autônoma baseada em princípios semelhantes.

Mover-se em direção a uma democracia tão radical sugeriria um mundo com muito menos fronteiras, tecendo dezenas de milhares de comunidades relativamente autônomas e autossuficientes em uma tapeçaria de alternativas. Essas sociedades conectariam uns com os outros através de redes “horizontais” de equidade e respeito troca, bem como através de instituições “verticais”, mas responsáveis que gerenciariam processos e atividades em uma ampla paisagem.

Vários experimentos em biorregionalismo de grande escala estão em andamento, embora a governança da maioria deles permaneça sendo um tanto quanto de cima para baixo. Na Austrália, a iniciativa Great Eastern Ranges visa compatibilizar a conservação de ecossistemas em 3.600 quilômetros com a sustentação dos meios de subsistência e saúde das comunidades. Um projeto que abrange seis países nos Andes visa conservar como Patrimônio Biocultural Mundial o Qhapaq, uma área de 30.000 quilômetros de uma rede de estradas construída pelo Império Inca, junto com o patrimônio cultural, histórico e ambiental relacionado.

A autogovernança local pode, é claro, ser opressora ou excludente. Os conselhos intensamente patriarcais e casteístas de aldeias tradicionais em muitas partes de Índia e as abordagens xenófobas anti-refugiados da direita na Europa ilustram essa situação. Uma terceira esfera crucial de transformação é, portanto, a justiça social, abrangendo lutas contra o racismo, casteísmo, patriarcado e outras formas tradicionais ou modernas de discriminação e exploração. Felizmente, o sucesso em desafiar o sistema econômico dominante muitas vezes anda de mãos dadas com vitórias contra a discriminação, como no caso das mulheres Dalits agricultoras que desestrutura séculos de opressão casteísta e patriarcal para alcançar a soberania alimentar.

Autonomia política e autossuficiência econômica não precisam significar isolacionismo e xenofobia. Em vez disso, trocas culturais e materiais que mantêm a autossuficiência local e respeito à sustentabilidade ecológica substituiriam os dias atuais da globalização – que perversamente permite que bens e finanças fluam livremente, mas detém humanos desesperados nas fronteiras. Este tipo de localização seria aberto à pessoas necessitadas; refugiados das mudanças climáticas ou de guerras seriam bem-vindos, como na rede de Fearless Cities na Europa. Práticas de base e mudanças políticas poderiam ajudar na transição em direção a esse sistema. Necessárias, claro, são as tentativas de reconstruir sociedades em regiões de conflito para que as pessoas não tenham que fugir delas.

Tais mudanças radicais também requerem transformações em uma quarta esfera: a cultural e do conhecimento. A globalização desvaloriza línguas, culturas e sistemas de conhecimento que não são adaptadas à noção de desenvolvimento. Vários movimentos estão enfrentando essa tendência homogeneizadora. A nação Sapara está tentando ressuscitar sua língua quase extinta e preservar seu conhecimento da floresta trazendo-os para o currículo da escola local, por exemplo. Muitas comunidades estão descolonizando mapas, colocando de volta seus próprios nomes dos lugares e desafiando fronteiras políticas. Até o mercator da era colonial, projeção usada para gerar o mapa-mundi familiar, está sendo derrubado (o que permitiu a minha percepção recentemente de que a África é grande o suficiente para conter a Europa, a China, os EUA e a Índia juntos). Cada vez mais, as ciências tradicional e moderna estão colaborando para ajudar a resolver os problemas mais complexos da humanidade. A Avaliação da Biodiversidade do Ártico, por exemplo, envolve cooperação entre povos indígenas e cientistas universitários para enfrentar as mudanças climáticas.

Um grave problema reside no fato de que as instituições de ensino treinam os graduados de modo a equipá-los para servir e perpetuar o sistema econômico dominante. Contudo, atualmente, as pessoas estão trazendo a comunidade e a natureza de volta aos espaços de aprendizagem. Esses esforços incluem as Escolas Florestais em muitas partes da Europa que proporcionam às crianças um aprendizado prático em meio à natureza, as escolas zapatistas autônomas que ensinam sobre diversas culturas e lutas, e a Aliança Ecoversities, centros de ensino superior em todo o mundo que permitem que os estudantes busquem conhecimento que estão para além das fronteiras que normalmente separam as disciplinas acadêmicas.

A esfera de transformação mais importante, no entanto, é a ecológica, com o reconhecimento de que somos parte da natureza e que outras espécies são dignas de terem seus direitos respeitados. Em todo o Sul Global, as comunidades estão liderando esforços para regenerar ecossistemas degradados e populações de vida selvagem e conservar a biodiversidade. Dezenas de milhares de “territórios da vida” (ou TICCAS, uma categoria de unidade de conservação internacional) estão sendo governados por comunidades indígenas ou outras comunidades locais, por exemplo. Esses incluem áreas marinhas gerenciadas localmente no Pacífico Sul, territórios indígenas na América Latina e na Austrália, florestas comunitárias no sul da Ásia, e os territórios de domínio ancestral nas Filipinas. Também digno de nota é legislação recente sobre os Direitos da Natureza e as sentenças judiciais em vários países afirmando que rios, por exemplo, gozam das mesmas proteções que as pessoas. A Declaração das Nações Unidas sobre a Harmonia com a Natureza, de 2009, é um importante marco nesse sentido.

Valores

Muitas vezes somos questionados sobre como escalar alternativas de sucesso. Seria contra producente, no entanto, tentar escalar ou replicar um DDS ou um Parque de la Papa, pois a essência desta abordagem é a diversidade: o reconhecimento de que cada situação é singular. O que as pessoas podem fazer – e isso, de fato, é como as iniciativas de sucesso se propagam – é entender os valores subjacentes e aplicá-los em suas próprias comunidades, enquanto trabalham em rede com iniciativas semelhantes para multiplicar seu impacto.

O processo Vikalp Sangam identificou os seguintes valores como cruciais: solidariedade, dignidade, interconexão, direitos e responsabilidades, diversidade, autonomia e liberdade, autoconfiança e autodeterminação, simplicidade, não violência e respeito por toda a vida. Em todo o mundo ambas as cosmovisões antigas e as modernas centradas na vida articulam princípios semelhantes. Os povos indígenas e outras comunidades locais têm vivido de acordo com visões de mundo como buenvivir, swaraj, ubuntu (uma filosofia africana que vê o bem-estar de todas as coisas vivas como interconectado) e muitos outros sistemas éticos que há séculos estão se reafirmando. Simultaneamente, abordagens como decrescimento e ecofeminismo surgiram de dentro das sociedades industriais, semeando contraculturas poderosas.

No cerne dessas visões de mundo está um princípio simples: a de que todos nós somos detentores de poder. E no exercício deste poder, não apenas afirmamos nosso própria autonomia e liberdade, mas também somos responsáveis por garantir a autonomia dos outros. Tal swaraj se funde com a sustentabilidade ecológica para criar um eco-swaraj, abrangendo o respeito por toda forma de vida.

Claramente, essas transformações fundamentais enfrentam um status quo profundamente enraizado que retalia violentamente o que percebe como uma ameaça. Centenas de defensores ambientais são assassinados todos os anos. Outro sério desafio é a falta de familiaridade que muitas pessoas no Norte Global têm com ideais de uma vida boa para além do sonho americano. Mesmo assim, o fato de muitas iniciativas estarem prosperando e de novas estarem surgindo, sugere que uma combinação de resistência e de reexistencia, com a criação de novas alternativas, têm uma chance.

A pandemia de covid-19 é uma catástrofe que apresenta à humanidade uma escolha. Vamos voltar para o velho “normal” ou adotaremos novos caminhos para sair das crises ecológicas e sociais globais? Para maximizar as possibilidades dessa última opção, precisamos ir muito além da abordagem do Green New Deal nos EUA, Europa e em outros lugares. Seu foco intenso sobre a crise climática e os direitos dos trabalhadores é valioso, mas também precisamos desafiar padrões de consumo insustentáveis, desigualdades gritantes e a necessidade de estados-nação centralizados.

As recuperações verdadeiramente sustentáveis enfatizariam todas as esferas do eco-swaraj, através de quatro vias. Uma é a criação ou reavivamento de meios de subsistência dignos, seguros e autossuficientes para dois bilhões de pessoas, com base em governança coletiva dos recursos naturais e da produção em pequena escala em processos produtivos como agricultura, pesca, artesanato, manufatura e serviços. Outro é um programa de regeneração e conservação de ecossistemas, conduzido pelos povos indígenas e comunidades locais. Um terceiro é o investimento público massivo em saúde, educação, transporte, habitação, energia e outras necessidades básicas, planejadas e atendidas pela governança democrática local. Finalmente, incentivos e desincentivos para gerar padrões de produção e consumo sustentáveis são cruciais. Essas abordagens integrariam sustentabilidade, igualdade e diversidade, dando a todos, especialmente aos mais marginalizados, uma voz, uma chance. A proposta de geração de um milhão de empregos climáticos na África do Sul, assim como um plano de recuperação feminista para o Havaí e várias outras propostas dessa natureza, contribuem para a justiça social em vários países.

Nada disso será fácil, mas talvez seja essencial se quisermos fazer as pazes com a Terra e entre nós.

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