Por Hamilton Borges Walê da Organização Política Reaja ou Será Mort@ – texto de 2016
“Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? Nem dá... nunca te dei porra nenhuma Você fuma o que vem... entope o nariz Bebe tudo o que vê... faça o diabo feliz” (Racionais Mcs)
Sabe irmão, me dirijo a você – preto como eu – você que é alvo, que segue na alça de mira das forças de segurança, das milícias, dos grupos de extermínio, dos pé de pato e dos cabos eleitorais dos partidos. Mano, em ano eleitoral todo mundo quer te colocar uma algema. Toma cuidado. O voto ou o edital do governo são nocivos. Se você escapa dessas tretas, dessas armadilhas florescentes, sobra ou a bala da polícia ou as grades. Não facilite para nenhum desses inimigos. Posso te falar com franqueza? Ver meu povo se destruindo, se enterrando vivo, se matando pelos becos, vielas e quebradas, sem noção de futuro, sem entender o que é progresso, largando os filhos com as mães e as avós, sem responsabilidade, sem preocupação ou culpa: isso me dói muito. Me vejo refletido em você irmão e eu me importo com você. Quero te falar. Agora veja, fique atento, na moral. Chego nessas letras sem maldade, na humildade mesmo – sou um irmão mais velho querendo falar com os irmãos cheios de energia – circulando por entre as armadilhas da supremacia branca. Derrotar a supremacia branca começa por matá-la dentro de nós.
Assim sendo, vamos lá:
Parece Inofensiva a mistura de whisky com energético pra ganhar a cena de uma balada. Uma mescla e uma pílula no bolso, o toque quente do ácido na língua. A leveza da fumaça te fazendo viajar, olhar a lua, aplaudir o pôr do sol no colo da loirinha do curso de direito. Andar de skate com o cara de humanas, doidão. Tudo depois que eles já estudaram bem e você ficou vagando pela quebrada esperando a sexta-feira com seus mistérios e alegria. Você se esforça tanto para chegar no “pico” em que a playbozada se encontra… Você sabe irmão, a playboyzada, por mais liberal e esquerdista que seja, tem sua rede de proteção branca que começa na família, uma boa roda de amigos e todo o sistema agindo para blindá-la. Você não tem nada haver com a playboyzada. Se oriente rapaz.
Lembra truta: boy é boy e tá nem ai pra você, pros seus corres ou pra sua vida. Veja o facebook deles, as rodas de amigos leais deles e eles se autoelogiando nos bares depois de uma ação para mudar o mundo. Branco com branco, amigos brancos, vida branca, amores brancos e o boy tá certo. Vai dizer que é errado cuidar de seu povo e se proteger entre si? Temos que fortalecer laços com nosso próprio povo porque é o que eles fazem. Eles não rompem com o primo fascista. Eles seguem aos domingos frequentando o clube e passeando de barco com o tio racista. E é você quem vai ficar nessa de amar seu opressor até no mais profundo afeto que temos pra dar? Guarde sua semente para fortalecer nossa luta de libertação.
Parece inofensivo ficar doidão no meio da pista: olhos vermelhos, rindo como uma hiena, pagando de palhaço, o sujeito mais alegre da faculdade, da balada, do coletivo partidário. Você não tem um conto pra sustentar o vício, vira avião da “Patizinha” descolada e tem delírios de desejo pela pele rosada da menina. Sai dessa maluco, faça o seu, construa seu mundo, um malote te espera no final do arco-íris. Você tem que conquistar! Cola com nós que nós temos um plano de fuga pra você sair desse castelo da Disney.
Parece inofensivo pagar de facção, dar o salve com as mãos, tirar de patrão, gritar a palavra de ordem que localiza sua quebrada, andar montado com pistola e rádio comunicador, corrente grossa no pescoço – enquanto sua mãe conta moedas pro pão.
Ostentar uma marca de tênis, bermuda e camiseta. Ou um Astra Sedan, uma Blazer ou Camaro na garagem de parede sem reboco. Sair com uma Kawasaki que só pode rodar por becos e vielas dali mesmo. E no final, tomar pipoco na guarita sendo olheiro da boca, sair vazado de bala e transportado numa caixa de zinco do IML, ou passar meses numa delegacia fedorenta, comendo dois pães secos, café ralo, a cada intervalo da tortura. Caminhar pela cela de 6 metros, lotada de homens sem medo, sem sonhos e sem futuro. Dormir com os ratos e a escabiose passeando por seu corpo. Beber a água suja em que o agente policial lavou as mãos depois de ir ao banheiro do distrito, só pra te humilhar e dizer quem manda. Ai sim já é bandidão.
As verdadeiras facções criminosas sentadas nos governos, nas casas legislativas, agradecem sua contribuição para aquecer a lucrativa indústria da criminalidade.
Honro meus irmãos encarcerados, seu sofrimento. Abomino a politica de drogas de segurança e de encarceramento que atualiza a escravização negra no Brasil.
Mas mano, “Crime é Crime, eu sou eu”
Parece inofensivo o doutor pesquisador, cheio de dentes e humildades, querendo nos fazer de ratos de seu laboratório criativo, seus fichamentos e as gordas bolsas. Seu comportamento com nós, sempre querendo dar aula. No calor, aquele leque sacudindo em nossa cara. Sua boa educação, seus conselhos de como devemos promover a luta, sua camisa rasgada embaixo do braço e sua sacolinha de “hortifrútis” contendo: o computador de última geração, seu passaporte todo carimbado, seu empenho em nos tirar as táticas que a vida louca das ruas constrói a cada dia. Tudo isso pra depois sumir e buscar outro rato pra seu laboratório. Não mano! Manda essa turma vazar, ralar peito. A maioria quer seguir sua carreira, quer uma senha para entrar em seu mundo. Querem se qualificar para entregar nossos códigos. São inimigos e chegam antes dos fuzis. Lembrem das bases comunitárias e UPPs. Vamos nós, estudar e romper com essa lógica de “objeto”, “publico alvo”. Seremos Sujeito no bagulho.
Tenho meio século, truta. Escolhi as encruzilhadas do mundo. Fui escolhido pelo ferro e as pedras de yangi, os ferros do dono do céu (Alabedé Orum). Por isso te falo aqui escrevendo e olhando os barracos defronte minha casas – as amarguras, as dores, as angústias dessas avós e mães que fazem de tudo para nos manter de pé.
Eu aqui estou, truta, na quebrada. Te olhando na bolinha dos olhos, sem álcool nas veias, sem fumaça nos pulmões, sem “pacá”, sem “pó”. Por mim a ambev e a Souza Cruz se lascam. Quero meu corpo inteiro e meus manos vivos. Meu plano é simples: que a gente comece a boicotar as corporações que nos matam.
A indústria do tabaco, das bebidas, a boca da quebrada que drena nosso dinheiro para a zona nobre da cidade, a indústria das armas que facilita aquela pistola adaptada, pra nos matarmos e nos exibirmos em redes sociais como se isso fosse vantajoso para nossa gente. Mano, a supremacia branca nos odeia e fica tranquila no parquinho cuidando do filho enquanto a gente se mata.
Mas vou assim, me fortalecendo com você. Nada adianta em meu plano se você não vem comigo.
Eu te proponho que a gente pare agora com o que nos enfraquece, que a gente pare juntos.
Eu te proponho que a gente busque um sacerdote ou uma sacerdotisa e fortaleça nosso espirito debilitado por séculos de agressões
Vai no templo e oferece uma oferenda, uma cântico com os levitas, um salmo cadenciado de Davi, um galo para Exu, um vinho para Ogum no meio da Estrada, dobra o joelho para Alá, faz uma oração para Krishna. Mas vamos recuperar nossa espiritualidade mergulhada em tanta dor , ódio e auto destruição.
Certo, mano? Fica atento, não folga para as armadilhas. Se precisar, pode contar comigo. Mas eu pretendo seguir nosso plano de reconstrução espiritual e politica centrada na nossa preservação.
Boa Noite Mano, se cuida.
Salvador Cidade Tumulo, Fevereiro de 2016
Hamilton Borges dos Santos (Walê)