por Walter Lippold1
Nossos olhos já não se entrecruzam.
Bits por segundo tornados imagens em movimento são absorvidos pelo meu nervo ótico…
pausa para propaganda….. anúncio segmentado….operação fitness…. Otimize seu mindset e seu bodybuilding… torne-se uma versão melhor de você….ganhe dinheiro rapidamente…mostre o quanto seu desempenho melhorou, mostra quantas horas correu, de preferência mostre os biodados capturados em sua smartpulseira que mede seus batimentos cardíacos, passos, horas de sono.
Nem as crianças, nem os animais ou plantas podem plenamente existir, sem a exposição de suas imagens. Transformamos a vida dos nossos filhos humanos ou pets em um Show de Truman, um reality show. O rosto de nossos filhos já estavam expostos e algoritmizados, diretamente do ventre, quando postamos a ecografia nas redes “sociais”.
Capitalismo e valor de exposição como religião.
Do dadaísmo ao dataísmo.
Do sonho utópico de uma internet livre ao pesadelo distópico do vigilantismo digital.
É o inferno do igual – descrito por Han – ou melhor o inferno do padrão algorítmico. Liberdade para escolher “suas” séries, “sua” música, coloque uma música na sua foto dos stories, seja maestro de sua vida, com sua própria trilha sonora, seja um projeto, seja o espetáculo, um ceo-de-si, seja mais um influencer acometido pelo burnout psicopolítico. Liberdade desde que seja liberdade dentro da plataforma deles. Reafirmo aqui: a plata-forma reproduz mais ideologia que o conteúdo. Quando a nuvem se dissipa, vemos os fios, as placas, os chips, o trabalho precarizado que os construiu – ou treinou as inteligências artificiais – o trabalho análogo à escravidão que extraiu os minérios, o garimpo que envenena, assassina em massa os povos indígenas. Quando a nuvem desaparece vemos o garimpo ilegal, em terras Yanomami, Munduruku e Kayapó, os golpes por lítio, vemos – como diriam Mbembe e Banerjee – os mundos da morte do necrocapitalismo. Mesmo totalmente imersos na tecnologia digital, temos pouco conhecimento sobre o opaco mundo dos algoritmos que regem as redes sociais e plataformas.
A quem pertence a tecnologia? A tecnologia pode ser hackeada em prol da libertação, da emancipação? É possível uma tecnologia anticapitalista e anticolonial, em sua forma e conteúdo, em seu design e essência? Começamos com estas perguntas fundamentais, para estes tempos de controle, monopólio e alienação tecnológicos, onde necrocorporações extraem minérios, onde a “disrupção” e “inovação” dependem das velhas formas de exploração do ser humano e destruição da natureza…tudo para alimentar a indústria de hardware, de placas e chips, para rodar as “nuvens” e a “internet das coisas”.
Durante a luta de libertação nacional da Argélia, Fanon estudou o fenômeno da apropriação e reelaboração da tecnologia pelo povo argelino. No ano de 1959, Fanon publicou sua obra L’An V de la Revolution Algérienne, conhecida posteriormente como Sociologia de uma Revolução. No livro, ele estuda alguns elementos da luta argelina, incluindo o fenômeno da descolonização da tecnologia, no caso, o uso da radiodifusão. O rádio chega na Argélia como uma tecnologia do colonizador, não havia programação em árabe ou kabilye, somente em francês, os programas não eram adequados para a cultura magrebina islamizada. A necessidade de comunicação, em um país de não alfabetizados, fez a Frente de Libertação Nacional (FLN) enviar guerrilheiros para expropriar transmissores e criou-se um espaço de engenharia reversa, um verdadeiro laboratório de experimentação tecno-midiática em plenas djebels (montanhas). Não só a radiodifusão era descolonizada e colocada a serviço do povo argelino, diz Fanon que a própria língua francesa foi colocada a serviço da guerra de libertação nacional.
Ao criarem a Rádio Voz da Argélia Combatente, e transmiti-la para o povo, os revolucionários atraíram ataques dos colonialistas franceses, que iniciaram uma guerra eletrônica com os rebeldes, fazendo jamming, ou seja, empastelando eletronicamente em uma verdadeira guerra de ondas e frequências. Não só a tecnologia do rádio era descolonizada, mas outras experiências revolucionárias na comunicação midiática foram realizadas: zines e jornais produzidos nas zonas liberadas pela guerrilha, criação de um sujeito coletivo anônimo na produção de textos, onde Fanon era colaborador. Foi a partir deste estudo de Fanon sobre tecnologia, e das pesquisas do Professor Ivo Queiroz, sobre descolonização dos horizontes tecnológicos, que eu e o Professor Deivison Nkosi Faustino, pensamos na necessidade de um diálogo hacker-fanoniano: queríamos que @s hackers estudassem Fanon e pudessem aprender seus ensinamentos sobre o uso revolucionário da tecnologia, queríamos mostrar o potencial do seu pensamento no século XXI, principalmente as correlações entre capitalismo, colonialismo e racismo. Nosso objetivo era, humildemente, incentivar que movimentos sociais buscassem conhecimentos sobre autodefesa digital, criptografia, software livre, pedagogia hacker.
Frequentando espaços hacker, em um encontro do Fórum Internacional do Software Livre, na cidade de Porto Alegre, experienciei um dos momentos de salto-ruptura intelectual, que direcionou minha caminhada para os estudos hacker, acabava de entrar em uma oficina da Professora Ka Menezes, integrante do Raul Hacker Clube de Salvador e docente da UFBA, enquanto ela falava em pedagogia hacker, na História dos Clubes Hacker, eu fui catalisando e ligando com minhas experiências educativas com tecnologia e letramento digital. Aquela fala, aquela aula me atingiu profundamente. Depois, lendo a produção de intelectuais hacker como Ka Menezes, que surgiu a ideia dos perilabs, laboratórios de periferia, onde o processo de democratização e descolonização da tecnologia poderiam se encontrar. Descobri que na minha cidade Porto Alegre, havia o Mate Hackers, e logo me uni ao seu grupo do telegram, onde debates sobre tecnologia, mídia, comunicação popular, era feitos ao mesmo tempo em que metiam a mão na massa, ou melhor no hardware e no software. Visitei o Mate e conheci o espaço que fica no Bairro Floresta, ver a pedagogia hacker em ação é algo impactante, saber que há outros caminhos de ensino e aprendizagem, fundamentados na coletividade, na produção coletiva, longe da ideologia californiana interindividualista da big techs.
Enquanto escrevíamos a obra Colonialismo Digital: por um crítica-hacker fanoniana, eu e Nkosi ficamos sabendo do Núcleo de Tecnologia do MTST, de experiências com cooperativas de trabalhadores comandando plataformas, formação e letramento hacker no movimento social. Isto redobrou nossa esperança na resistência, na luta pela descolonização da tecnologia. Os movimentos sociais precisam criar espaços hacker, de alfabetização digital, fugindo desta asquerosa (anti)pedagogia corporativa, que introduz a linguagem do marketing como linguagem universal, capturando elementos da pedagogia hacker, esvaziando-os de todo potencial revolucionário e adequando-os ao modo de produção capitalista neste início de século XXI. A militância por uma descolonização da tecnologia pode unir a crítica anticapitalista e anticolonial de Fanon aos estudos, lutas e pedagogia hacker, nunca esquecendo que a luta contra o capitalismo das corporações do Vale do Silício, é uma luta pela vida, pela natureza, pois desfaz a ilusão da fuga para o metaverso, para a nuvem, para o ciberespaço, para a virtualização cibernética, enquanto o mundo arde em chamas.
- Walter Lippold é doutor em História pela UFRGS e editor da Proprietas. É pesquisador FAPERJ do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT Proprietas)da Universidade Federal Fluminense e do Núcleo Reflexos de Palmares da Universidade Federal de São Paulo. Membro do Grupo de Pesquisa História, Memória e Luta de Classes da Universidade Federal Fluminense, coordenando o tema História da Ciberguerra. É professor do Curso Uniafro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador de colonialismo digital, história da tecnologia, cibercultura, hacktivismo, da obra de Frantz Fanon e da história da Argélia. Membro do Coletivo Fanon, é autor de Fanon e Revolução Argelina (Proprietas, 2022) e , junto com Deivison Faustino, escreveu o livro Colonialismo Digital: por uma crítica hacker-fanoniana (Boitempo, 2023) ↩︎