Primeiramente, quero agradecer muito sua disponibilidade de fazer essa conversa. Tá escrito no Por Terra e Território que não é comum termos publicações de militantes de base de movimentos sociais. Por mais que tenham grandes diferenças, as entrevistas podem ajudar um pouco a divulgar as histórias e ideias desses companheiros que são fundamentais serem de conhecimento do povo, ou dos povos de forma geral.
Pra iniciar, você poderia contar um pouco da sua história pessoal, e de como começou a luta como militante popular, ambientalista e agrofloresteiro.
Olá, bom dia, satisfação estar contribuindo aí na construção da nossa luta. Nós estamos aqui na Bacia do Descoberto, no Pré-Assentamento Canãa, em Brazlândia, Distrito Federal, e minha história com o campesinato vem da minha ancestralidade. Minha mãe veio do exodo rural de Goiás, de Rochedo, teve que sair cedo de casa com 19 anos. Criou 3 filhos, juntou dinheiro, conseguiu comprar um chacrinha aqui em Padre Bernardo, e isso me conectou com o campo.
Eu venho do movimento ambientalista, de uma organização chamada Amigos das Veredas, aqui em Brazlândia, a qual tem um histórico de luta aqui na criação do Parque Ecológico Veredinha e de várias ações na Bacia do Descoberto. Mas quando minha mãe comprou essa chácara me conectei de novo com a terra, fiz um curso de agrofloresta em 2008 e desse curso que fiz me encantei, comecei com algumas experiências aqui na chácara da minha mãe na Bacia do Sal, em Monte Alto, e depois, dentro da militância no movimento ambientalista conheci o MST, na qual fui convidado a ocupar um monocultivo de eucalipto aqui em Brazlândia, na Bacia do Descoberto, da extinta Pro-Flora, numa área no INCRA-6.
Ocupamos essa área em abril de 2011 e mudou minha vida. Me tornei coordenador do Canãa, o Canãa que trouxe um ascenso ao MST no Distritro Federal, no qual ocupamos várias áreas, num processo de luta pelo assentamento. Conseguimos nomear um liquidante para vender a massa da falida Pro-Flora, uma estatal do GDF que foi criada na década de 80 para desmatar o cerrado, plantar pinus e eucalipto e estocar terra. Ela plantou mais de 20 mil hectares de pinus e eucalipto aqui no Distrito Federal. Nomeamos esse liquidante e foi retirado um massivo florestal de 368 hectares aqui no Canãa e também lá no Paranoá Parque onde tem hoje unidades habitacionais do Minha Casa Minha Vida.
Em 2016 nós caímos pra dentro da terra, partimos a corda, e desde o acampamento trabalhamos a sensibilidade da companheirada para fazermos a transição agroecológica aqui. Logo nesse ano pegamos a tratoragem e começamos a trabalhar as primeiras linhas de agrofloresta com nativas do Cerrado. Depois conseguimos dois fomentos e implantamos aqui em torno de 45 agroflorestas no Canãa. Através desses fomentos nós hoje tiramos o sustento dessas agroflorestas aqui trabalhando frutas, hortaliças e medicinais. Estamos plantando água fazendo a transição agroecológica. Mas mesmo assim o Canãa ainda não está regularizado, ele é um pré-assentamento.
Esquerda: Imagem aérea de meio hectare de agrofloresta com mais de 4 anos de manejo na parcela Camponês Cerratense no do Pré-Assentamento Canãa. Onde era somente terra de pastagem com toco e eucalipto agora é uma área que vêm trazendo biodiversidade, com o povo plantando água, chegando ao sistema de abundância. Direita: Linha de agrofloresta medicinal na mesma parcela do Flavão no Canãa. Foto: Flavão Cerratense.
Desde a ocupação em 2011, o Canãa ainda não foi regularizado pelo estado brasileiro. Como está essa luta pela regularização? Quais foram os avanços já conquistados e quais as perspectivas para no futuro?
O Canãa está no território do Alexandre Gusmão, em Brazlândia, no PICAG, Projeto Integrado de Colonização e Reforma Agrária Alexandre Gusmão, que compreende do INCRA-1 ao INCRA-9. Esse território foi criado a partrir de um decreto presidencial para abastecer a capital federal, na criação, com frutas e hortaliças. Era Juscelino Kubitschek na época, e os japoneses detinham todo o conhecimento da revolução verde e foram beneficiados pela reforma agrária aqui com todo o apoio aqui no PICAG. Brazlândia hoje é o maior produtor de morango do centro-oeste, devido a cultura de plantio dos japoneses. E aí foi negado toda a agricultura tradicional brasileira e os próprios brasileiros, porque foram assentados tanto pelo PICAG, no Descoberto, tanto pelo PAD/DF (Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal), que fica lá em planaltina, na Bacia do São Bartolomeu. Lá foram trazidos principalmente os gaúchos para a produção de grãos (PAD/DF), e aqui para hortaliças e frutas os japoneses. A área do Canãa é uma parte da área do INCRA-6 que ficou desgarrada desses monocultivos de pinus e eucalipto, que nós do movimento nos articularmos e ocupamos em abril de 2011. Enquanto isso a outra parte virou Floresta Nacional na década de 90.
Até hoje é negado a regularização, o direito à reforma agrária, mesmo a gente estando em uma área que foi antropizada por eucalipto, cheia de toco, ácida, e estarmos recuperando solo, trazendo biodiversidade, plantando água. É tirado esse direito básico de um cidadão brasileiro de ter acesso ao programa de reforma agrária. Hoje temos vários avanços aqui, temos várias CSAs (Comunidades que Sustentam a Agricultura), trabalhamos também na Feira da Ponta Norte e em várias feiras os agricultores aqui trabalham.
A especulação imobiliária é muito grande aqui no Distrito Federal e essa Pro-Flora foi criada na década de 80 e faliu na de 90, até porque não daria certo mesmo, porque esses eucaliptos não interagem nem com a fauna nem com a flora do Cerrado. Do ponto de vista econômico foi um fracasso, e o impacto ambiental… A barragem na Bacia do Descoberto abastece 65% da água potável do Distrito Federal e não foi nada estratégico plantar esses monocultivos de eucalipto aqui.
Pois bem, hoje nós estamos fazendo a transição agroecológica aqui com sistemas agroflorestais. O Canãa, das áreas do movimento, é a área que tem mais agrofloresta hoje no Distrito Federal. Com muita dificuldade. Só aqui no Canãa já perdemos 10 agroflorestas por incêndios criminosos. Nesse ano, mais uma vez. A minha aqui, era um hectare de agrofloresta, pegou fogo em meio hectare. Isso tudo é ataque da especulação imobiliária. O direito à reforma agrária está sendo negado [com] todo o apoio ao mini agronegócio aqui da região.
Módulo de agrofloresta no Canãa de 6 anos de manejo que foi queimado em incêndio criminoso relacionado à grilagem de terras e especulação imobiliária.
Foto: Flavão Cerratense.
A questão de hoje do Canãa nesses treze anos de luta é uma questão de direitos humanos, a gente ter acesso, em uma área que é do INCRA, que falta vontade política de regularizar e a gente ser de fato emancipado como agricultores, tendo acesso a todos os direitos e políticas públicas que um agricultor tem.
Então hoje nós estamos aqui na resistência, mas a questão do Canãa é uma questão de direitos humanos negados, pelo INCRA, pelo governo federal, que não regularizam uma área que é um contraponto a todo o processo de devastação do Cerrado aqui na Bacia do Descoberto.
Em relação a esse contraponto que o Canãa é, de uma área onde só se era plantada uma monocultura de eucalipto ao pré-assentamento com mais de 40 agroflorestas, pode dar mais detalhes de como aconteceu essa transição agroecológica na prática?
No Canãa nós tivemos dois fomentos. Um fomento da WWF (Fundo Mundial para a Natureza), com insumos e mudas, tudo bem pontual. Fizemos todo o trabalho em sistema de mutirão nessas implantações, na mão mesmo, através de mutirões da companheirada. O outro fomento que nós tivemos foi também semelhante, bem pontual mas também com assistência técnica, vindo de um projeto do CIRAT (Centro Internacional de Água e Transdisciplinaridade). Projetos esses que a gente aceita, mas que temos que fazer uma autocrítica do que é destinado ao agricultor.
A gente trabalha em sistema de mutirão aqui, várias famílias trabalham por afinidade, e nós temos aqui duas associações e o movimento que está com a gente e que sempre trabalhou a formação política na questão de trabalhar a transição agroecológica dentro das nossas áreas. Até agora a gente não teve nenhuma política pública da reforma agrária.
Foto da Agrofloresta da parcela do Flavão no Pré-Assentamento Canãa tirada em dia de poda e plantio. Os resíduos das podas das árvores frutíferas são incorporados ao solo para retroalimentá-las. Nas entrelinhas foi feito o adensamento com café, rúcula, pimentão, alface, coentro, brócolis e repolho. Foto: Flavão Cerratense.
A questão de hoje do Canãa nesses treze anos de luta é uma questão de direitos humanos, a gente ter acesso, em uma área que é do INCRA, que falta vontade política de regularizar e a gente ser de fato emancipado como agricultores, tendo acesso a todos os direitos e políticas públicas que um agricultor tem.
Então hoje nós estamos aqui na resistência, mas a questão do Canãa é uma questão de direitos humanos negados, pelo INCRA, pelo governo federal, que não regularizam uma área que é um contraponto a todo o processo de devastação do Cerrado aqui na Bacia do Descoberto.
O INCRA até hoje deve apoio aqui, não teve até hoje nenhum fomento ou política pública do INCRA. Tem muito ataque da especulação imobiliária, devido a todo o processo de enfrentamento contra esse modelo de produção aqui no território. Mas estamos firmes, estamos na resistência.
Nós estamos esperançosos que ainda nesse ano saia o processo de regularização aqui no Canãa, porque é muito difícil a gente trabalhar todo esse enfrentamento, toda essa diversidade, de fazer uma transição agroecológica em uma área sem nenhum apoio. E pelo contrário: perseguição da especulação imobiliária e perseguição dessa conjuntura fascista que se encontra no nosso país, em especial no GDF (Governo do Distrito Federal).
O Canãa tem uma importância grande no abastecimento de água na Bacia do Descoberto. Mas como está o acesso a água pra consumo e plantio no pré-assentamento? E o controle de vocês sobre esse acesso, como na possibilidade de construção de poços artesianos?
A questão de água aqui no Descoberto é complicada. Nós não temos outorga, não temos direito de furar poço. Os poços que a gente fez aqui, porque a gente tem direito porque a gente tá plantando água, a maioria são cisternas artesanais mesmo. Já teve o cúmulo do absurdo da ADASA, que saiu uma normativa de lacrar todas as cisternas aqui mas isso foi um absurdo, que a própria EMATER não concordou com esse posicionamento. Aqui tá proibido a outorga, então a grande dificuldade nossa aqui é á água. Eu mesmo abri um poço na qual respondo a um processo. Tive que sair correndo daqui como se fosse marginal porque a polícia veio porque teve denúncia. Não temos acesso a água, essa é a realidade.
Pra nós tem essa perseguição, agora pra especulação imobiliária, os condomínios e os parcelamentos irregulares aqui, todos tem poços artesianos e a ADASA faz vista grossa. Nós da reforma agrária temos toda essa dificuldade de ter acesso a água para trabalhar o plantio e a manutenção das agroflorestas que foram criadas.
Pra finalizar, gostaria que você falasse como está vendo a conjuntura política atual em relação a reforma agrária e a conservação da natureza e do Cerrado. Por um lado, meses atrás tiveram declarações de lideranças históricas de que o governo federal não estava fazendo nada pela reforma agrária. Por outro lado, Lula há pouco tempo “tomou para si a questão da reforma agrária” segundo fontes ligadas ao palácio do planalto.
A conjuntura da reforma agrária continua complicada. Não teve avanços significativos. São várias áreas históricas, algumas de 20 anos, que até hoje não chegou a regularização. É questão de direitos humanos mesmo. A reforma agrária é o único instrumento para a gente fazer um enfrentamento à crise climática, para a gente fazer uma agricultura de regeneração, uma agricultura de transição agroecológica nessas áreas.
A maioria das áreas que são destinadas à reforma agrária já são de solos doentes, antropizados, terras improdutivas. A gente coloca, o movimento, o MST, que o nosso modo de produção é a transição agroecológica, mas infelizmente os movimentos sociais não estão tendo um avanço significativo na regularização de áreas históricas de enfrentamento à toda essa conjuntura de agravamento pelo agronegócio nos nossos biomas. Então tem que avançar. É inconcebível o agronegócio ter mais de 470 bilhões para poluir nossos rios, nossos biomas, botar fogo nos canaviais, sendo dinheiro do BNDES e do Plano Safra pra envenenar e colocar fogo nos nossos biomas. Essa grana não tá chegando pra agricultura familiar, e os processos de regularização estão continuando morosos e o acesso a nova áreas também. São acampamentos e pré-assentamentos que a gente não vê a regularização chegando.
É uma choradeira só dos gestores do INCRA, falando que não tem pessoal e corpo técnico para avançar nos processos de liberação dessas áreas. Mas a gente vê que para o agronegócio os órgãos estão disponíveis para acelerar toda a destruição dos nossos biomas.
A reforma agrária é o único instrumento que a gente vê para trabalhar nessa conjuntura de crise climática que é emergencial. Nessa crise temos que ter ações de regeneração emergenciais. É a reforma agrária com o modelo de produção da transição agroecológica que nós temos para avançar com a segurança e soberania alimentar do nosso povo, já que é a agricultura familiar que abastece 70% dos alimentos do nosso país, enquanto o agronegócio é só o mercado de commodities para destruir todos os nossos biomas. Vejo que o governo Lula tem muito a avançar, já se vão dois anos e a gente não vê avanço significativo na questão da reforma agrária.
Então vamos ter que nos reunir, estar nos organizando, unindo a periferia, os movimentos indígenas, quilombolas, o campesinato, pra fazer luta para destravar a reforma agrária, porque a gente vê que ainda não tem força política e nem vontade política para que de fato aconteça a reforma agrária no nosso país.