No extremo sul da Bahia, um território marcado por conflitos agrários e pela devastação ambiental testemunha a perseverança do povo Pataxó na luta pela preservação de suas terras ancestrais. A Aldeia Alegria Nova, fundada em março de 2003, é hoje um símbolo dessa resistência. Localizada na Terra Indígena (TI) Comexatibá e inserida nas fronteiras do Parque Nacional do Descobrimento, em processo de renomeação para “Maturembá”, a aldeia representa o esforço contínuo do povo Pataxó em garantir seus direitos territoriais e culturais.
Um Território Marcado pela História
A história da Aldeia Alegria Nova está intrinsecamente ligada à trajetória de Romilda Pereira Pires, Imbirema Pataxó, uma parteira tradicional e liderança Pataxó que, com coragem, conduziu sua família de volta ao território ancestral. “Minha vó Romilda Pereira Pires vivia aqui nessa terra, nessa margem do Rio Cahy, entre Corumbau e Cumuruxatiba. A vida era por aqui mesmo, cuidando das coisas, das plantações, caçando, pescando, vivendo da forma tradicional”, relembra o cacique Welington Akari Pataxó, neto de Romilda, ao descrever a ligação profunda da família com o território.
Na década de 1970, a região do extremo sul da Bahia começou a sofrer um processo de devastação ambiental impulsionado pela chegada de grandes empresas interessadas na exploração de madeira e na expansão de monoculturas. “Essa área era toda preservada e cuidada pelo povo Pataxó. A empresa Brasil-Holanda foi uma das principais responsáveis pela expulsão de nossos parentes, ao desmatar a área e expulsar os habitantes originários. Minha vó resistiu ao massacre de 1970, quando pistoleiros expulsaram nosso povo dessas terras,” relembra o cacique. “Ela sempre nos dizia que essa terra é nossa, que a gente tinha que voltar pra cá” explica.
A partir de 2003, Romilda, junto com seus filhos e netos, decidiu retornar ao território ancestral, enfrentando inúmeros obstáculos. “Passamos por vários percalços. Plantamos mandioca, milho, feijão e abóbora. Fizemos uma roça coletiva grande para poder já começar a produzir e garantir nosso mantimento”, lembra Welington. Durante esses anos, a comunidade enfrentou pressões constantes dos fazendeiros, assim como do IBAMA, que na época geria o parque e, posteriormente, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), quando este assumiu a responsabilidade.
Já o processo de autodemarcação da Aldeia Alegria Nova começou em 2004, quando a comunidade estabeleceu um perímetro de 8 km² para garantir sua presença na terra. “Desde o início, enfrentamos pressões para sair daqui, mas resistimos, com a força e a união da nossa gente. Nós tivemos que usar nossa estratégia de luta, de guerreiros, para nos manter hoje onde é a reserva”, conta Welington, destacando a importância da organização comunitária e das alianças estratégicas para a sobrevivência da aldeia.
Conflitos Territoriais e a Luta pela Retomada
A luta dos Pataxó vai além da resistência territorial. A proximidade da Terra Indígena Comexatibá com o balneário de Cumuruxatiba, um destino turístico popular, trouxe novas ameaças.“Lidamos cotidianamente com ameaças de fazendeiros e empresários do ramo hoteleiro. Mas nossa luta é pela terra, pelo nosso direito de existir e viver de acordo com nossas tradições.”, destaca.
Hoje, o Território Comexatibá já foi identificado pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, publicado no Diário Oficial da União no dia 27 de julho de 2015, após a realização de um estudo antropológico realizado pela FUNAI que identificou mais de 28 mil hectares dentro da TI.
Visando atender o crescimento da comunidade e ampliar a área de produção e o acesso da mesma à infraestrutura básica, como saneamento, água e luz, em 22 de junho de 2022, a aldeia ocupou uma área que foi devastada pelo cultivo de eucalipto, um lugar que carrega as cicatrizes de um passado violento, conhecido pelos moradores como “o Massacre”, quando entre os anos 2000 e 2001, pistoleiros expulsaram brutalmente os Pataxós dessa terra, conhecida como Pequi Velho.
A monocultura do eucalipto estava simplesmente destruindo o território, sem respeitar a lei orgânica do municipio, os mesmos era plantados a menos de 100m da margem do rio, às vezes, a menos de 20 metros das nascentes. “A gente ouvia as máquinas trabalhando dia e noite, destruindo o que restava da nossa mata, espalhando veneno, acabando com a água, novas pragas surgindo e destruindo nossas lavouras. Então, fizemos essa ocupação e não vamos desistir”, afirma Welington, expressando a determinação da comunidade em reverter os danos ambientais causados pelo monocultivo.
No entanto, essa resistência teve um custo alto. Em setembro de 2022, Gustavo Silva da Conceição, um jovem Pataxó de 14 anos, foi assassinado durante um ataque de pistoleiros no território. “Esse guerreiro foi para além de nós, por nossa aldeia, por nosso território. Ele tinha o sonho de ser médico, sempre acompanhou as lideranças”, conta o cacique, evidenciando a dor e o impacto da violência sobre a comunidade.
O assassinato de Gustavo, seguido por outros episódios de violência, revela a vulnerabilidade do Estado brasileiro em proteger as comunidades indígenas em seus territórios. “O Estado mostrou sua fragilidade em proteger os verdadeiros donos desse território, que somos nós, o povo Pataxó,” lamenta.
Mesmo diante de tanta adversidade, a Aldeia Alegria Nova não recuou. Pelo contrário, a comunidade se fortaleceu. Em 22 de julho de 2024, a aldeia celebrou dois anos de ocupação, marcando esse período com conquistas importantes. “Hoje, já temos escola funcionando, as famílias estão plantando em volta de suas casas, produzindo para sustentar nossa gente,” afirma Welington. “Está todo mundo junto, lutando e acreditando em um futuro melhor.”
A Luta pela Preservação e Autonomia
A luta do povo Pataxó na Aldeia Alegria Nova é, acima de tudo, uma batalha pela preservação de suas tradições e pela recuperação de um território devastado. O cacique Welington destaca a importância de reflorestar as áreas destruídas pelo monocultivo de eucalipto e pela exploração predatória dos recursos naturais. “Nosso objetivo aqui é reflorestar toda essa área que foi degradada, produzir e ter alimento saudável para o nosso povo,” explica. “Queremos voltar o nosso território ao que era antes, todo preservado e cultivado, de forma tradicional.”
A luta na Aldeia Alegria Nova reflete um conflito mais amplo, que envolve a grilagem de terras, a expansão do agronegócio e a negligência das autoridades na proteção dos direitos indígenas. Para o povo Pataxó, a resistência não é apenas uma questão de sobrevivência física, mas também de preservação cultural e espiritual. “Essa terra é nossa, sempre foi e sempre será,” conclui Welington. “Vamos lutar até o fim para protegê-la.”