*O texto a seguir é a fala emocionada da liderança quilombola Nina (Renilda Cruz), presidente da Associação Quilombola Comunitária de Maria Quitéria (AQCOMAQ) de Feira de Santana (BA).
Se a voz travar em algum momento é de emoção.
Faço memória aqui da nossa primeira reunião, quando enviei os convites para as entidades para a gente poder realizar o nosso Novembro Negro, e Bel é a pessoa que está sempre ao meu lado, a qualquer momento – qualquer conselho ou dúvida que eu tenho, converso e pergunto a ela – está sempre do meu lado. E aí ela sempre falava: “Nina, a gente precisa ver a questão do Novembro Negro”, e aí a gente foi deixando, deixando… e como os outros anos, o oitavo ano, a gente acabou deixando as coisas quase que para cima da hora, mas como sempre, no final, tudo deu certo. E a gente imaginava: “Meu deus, como fazer essa reunião online? Eu não tenho prática com as redes sociais, não tenho prática com tecnologia, como fazer essa reunião?”. Aí Karen foi me orientando: “Mainha faz assim”, “faz desse jeito”, “prepara dessa forma”, “a senhora vai fazendo assim”. E aí mandei o convite pra gente fazer essa reunião.
E a gente teve essa primeira reunião, onde a gente demandou muitas coisas, idealizou muitas coisas, e acabou que a gente fez. Fez a primeira reunião, e ficou certo: vamos fazer o Novembro Negro Virtual, o oitavo Novembro Negro será virtual. E aí a gente começa essa caminhada, essa luta pra gente fazer o Novembro Negro. Temos a segunda reunião, em meio às conversas, em meio aos diálogos, surge o tema. Isabel dá para nós esse tema: Memória, Vivências e Resistência da Ancestralidade: as Águas da Lagoa Grande de São José das Itapororocas. Eis o nosso tema!
E nós trabalhamos em cima desse tema, cada um fazendo a sua parte, cada uma dando a sua ideia; um concorda, outro discorda, a gente soma e aí a gente consegue formar o nosso Novembro Negro. Dentro do grupo, várias entidades, várias pessoas, pensamentos diferentes, atitudes diferentes – ora concorda, ora discorda –, mas no final a gente chega num determinador comum e formar o Novembro Negro.
Acontece o nosso Novembro Negro dia 19, nosso primeiro dia no Novembro Negro. E o Cacique Juvenal, Carlinhos, Seu Véi com as suas sabedorias, com as suas ancestralidades, com as suas vivências nos deixam emocionados; nos deixam com o coração radiante, chorosos, mas satisfeitos com o que aconteceu. Que bom! Os internautas, o pessoal do Youtube, todo mundo participando, que coisa boa!
E eis que o Cacique [Juvenel Payayá] deixa para nós esta frase:
Nós precisamos dialogar. Nós precisamos dialogar.
E segue o segundo dia com ciranda infantil, onde as meninas da negritude da comunidade, jovens quilombolas, realizam essa ciranda tão emocionante que chorei com Verônica, quando Verônica começou a fazer o momento de animação com as músicas que eram da nossa infância – pulava na cadeira e chorava juntamente com ela. E aí segue o Cine Debate. Não deu certo colocar o documentário, mas não importa, esses obstáculos nós vencemos. Mesmo nas redes sociais nós conseguimos vencer a situação, e tivemos um debate belíssimo, falas maravilhosas, testemunhos maravilhosos, vivências vivas, memórias vivas nos apresentaram.
Segue a noite, o nosso momento da nossa roda de conversa, onde a gente fez revivendo e reinventando, revisitando os temas do Novembro Negro do ano de 2011 ao ano de 2019, e vêm outras falas. Inicia com Camila (criança que não vê, mas enxerga) nos deixa tão forte com a sua fala, com o seu testemunho, com a sua força e com a sua resistência; que nós devemos lutar, não devemos desistir. Segue a roda de conversa, onde nós debatemos sobre a nossa experiência esses anos: quanto crescemos, quando foi construído em cada um de nós. O choro de Dona Adriana nos faz chorar junto com ela; a experiência de [Mestre] Caciano; a autonomia, a experiência, a vivência de Isabel; a criatividade de Girlene; a experiência de Zé Raimundo quando nos ajudou a construir o nosso primeiro Novembro Negro.
Falas que não puderam estar presentes e outros não se sentiram a vontade na hora de falar – Mestra Maria das Graças, Mestre Eduardo –, mas que estão em nosso coração, a fala deles ecoa nos nosso ouvidos, são a nossa essência. Somos hoje porque tivemos nossos ancestrais que nos antecederam, que nos fizeram esse povo de luta, esse povo de raça, esse povo da resistência. E a gente segue ouvindo a experiência de Sônia nesse Novembro Negro com a barraca de acarajé, com as suas delícias e depois no ano de 2019, a feira da economia popular e solidária – que foi uma inovação no nosso Novembro Negro.
Aí a gente prepara o momento cultural com a banda Pagoplay – que eles preparam o momento, mas infelizmente as redes sociais têm essas falhas, não aconteceu. Mas a boa vontade deles já valeu à pena. Depois vem Dai Morais, e canta pra nós um pouco, para nos alegrar nesse momento cultural e aí a gente segue.
A autodemarcação
O dia de hoje! A expectativa! A hora de colocar as nossas placas! Chegou o grande momento.
Amanheci, 4h40 da manhã e já estava de pé. Fiz meu momento de oração, me arrumei, chamei meu esposo e a gente desceu. Fomos pegar Seu Zezito, Bujão (Sanfoneiro), Zé Bombeiro, peguei [Mestre] Caciano, as ferramentas e descemos para a lagoa. Que emoção chegar na lagoa e já encontrar o povo reunido; povo da Lagoa da Camisa, povo de Casa Nova, povo da Fazenda Roma e a Comunidade de Lagoa Grande chegando. Aí a gente começa a colocar em prática esse desejo – essa ideia que nos foi colocada pelo companheiro Henrique de fazermos essa Alvorada. Como será essa alvorada no tempo de pandemia? E o Senhor, ele nos fez realizar um momento tão lindo. A gente começa a nossa alvorada colocando aquela placa lá – a demarcar uma parte do nosso território, da nossa lagoa, o nosso recurso natural que vem cada dia mais sendo destruída. Está sendo destruída. Mas basta!
Nós não queremos mais a destruição da nossa lagoa, vamos lutar por ela. Começa a emoção. A fala de [Mestre] Cassiano nos remete que nós precisamos lutar. Nós precisamos sonhar junto com [Mestre] Cassiano, que muitas vezes é criticado, mas que é ele que nos dá força; como várias vezes a Bel repetiu ontem à tarde quando ela dizia:
Eu não sei andar sem Cassiano, eu preciso de Cassiano.
E a gente foi lá, a gente correu e [Mestre] Cassiano chegou. E [Mestre] Cassiano hoje amanheceu inspirado pelos nossos ancestrais, por aqueles que nos antecederam e ele faz a sua fala. Ele nos encoraja, ele nos mostra que a gente não pode desistir, que a gente não pode abaixar a cabeça para aquilo que está posto. Mas nós precisamos nos unir coletivamente e mais uma vez vem a fala do Cacique Juvenal: Nós precisamos dialogar.
Escola Vasco da Gama, Escola José Tavares Carneiro, Escola Francisco Martim, Escola Paula de Freitas, UFRB/Cetens FSA, IFBA/FSA, UEFS, Incubadora [de Economia Popular e Solidária], Comunidade de Lagoa Grande, Juventude Quilombola! Nós precisamos dialogar! Nós precisamos estar de mãos dadas! Chega de briga, chega de apontar. Nós precisamos dialogar.
E [Mestre] Cassiano segue – põe [Mestre] Cassiano dentro de um carro de som trilhando – após ter colocado a primeiro placa, vamos colocar a segunda. A gente segue essa procissão. E [Mestre] Cassiano vai no carro falando; nos trazendo lembranças dos nossos ancestrais, lugares que estavam marcados por eles; aonde eles viviam, aonde eles tinham a sua alimentação, onde eles tinham a vida social, a vida comunitária, a vida familiar. Ele vai nos fazendo reviver esses anos de luta. Ele vai nos fazendo reviver que a nossa lagoa não é aquilo que está posto, por isso nós não aceitamos. Nós queremos a nossa lagoa de volta e não vamos conseguir isso sozinhos, não vamos conseguir isso com o coletivo, nós vamos conseguir de mãos dadas.
Sigamos juntos meus irmãos, sigamos juntos meus companheiros na luta para revitalizar a nossa lagoa. O sonho de [Mestre] Cassiano hoje será o nosso sonho de ter a nossa lagoa de volta. E digo para vocês, a partir de hoje nós já vamos deixar atividades que precisamos realizar, vamos marcar um grande mutirão – deixa passar esse momento de pandemia. Vamos marcar o nosso grande mutirão pra gente limpar essa lagoa, deixar a nossa lagoa limpa. E, acima de tudo, cada morador, cada pessoa da Comunidade Quilombola de Lagoa Grande, cada pessoa que está em torno do seu território: cada um terá a sua responsabilidade de ser guardião da lagoa.
Agradeço a deus por ele ter me permitido viver esse momento tão lindo nesses três dias de Novembro Negro. Foi um Novembro Negro Diferente, mas foi o Novembro Negro que vai deixar marcado na nossa história o que nós desejamos para nós – essa geração – e para as gerações futuras. Precisamos educar as nossas crianças, precisamos educar aqueles que vão nos suceder, nós precisamos lutar pela nossa lagoa. Agradeço a todos que estão nesse grupo, a todos que vão ouvir esse áudio. O que nós vivemos, o que a comunidade de Lagoa Grande viveu nesses três dias é algo que vamos levar para nossa vida inteira.
Sigamos juntos meus companheiros!