Posted on: 28 de abril de 2025 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Por Rede de Sementes da Teia dos Povos

Já é maio, e os milhos despontam na terra como promessas verdes. O ar se enche do cheiro do São João: fogueiras, festa, alegria que contagia. O desejo do milho assado, da canjica doce, do bolo quente, do cural que une gentes em torno da colheita. Mas, além da fartura que se compartilha, há um cuidado ancestral: guardar as sementes. Porque nelas está o futuro—não só do próximo plantio, mas da própria liberdade.

As sementes crioulas são memórias vivas. Elas carregam nas suas entranhas o suor dos avós, a sabedoria das mãos que as selecionaram por gerações, o ritmo da terra que as acolheu. São adaptadas ao lugar, resistentes como o povo que as cultiva. Não são mercadorias—são histórias plantadas, são vida que se renova a cada chuva. Mas hoje, essa herança está ameaçada. As corporações avançam com suas sementes transgênicas, uniformes, estrangeiras, cheias de venenos. Querem nos fazer crer que progresso é dependência—que é preciso comprar, ano após ano, o direito de plantar, como bem exemplifica Vandana Shiva:

“A semente e a terra criam condições para a regeneração e renovação mútuas. As tecnologias não podem fornecer um substituto para a natureza; elas não podem trabalhar fora dos processos ecológicos da natureza sem destruir a própria base da produção, nem os mercados podem fornecer a única medida de produtividade.

A semente, então , apresenta ao capital um empecilho biológico simples: dadas as condições apropriadas, ela se reproduz e multiplica.”1

A perca das sementes tradicionais está totalmente vinculada a questão da perca da soberania alimentar por partes dos povos, pois, sem a sua quantia de sementes estes povos ficam dependentes da compra de sementes, ocorrendo assim uma erosão genética, uma padronização das sementes, não respeitando as peculiaridades do local mas sim sendo sementes que são as mesmas pros mais diversos locais, sendo produzidas e comercializadas pro Brasil e o mundo todo, ficando assim refém esses povos para a produção de seus alimentos as sementes transgênicas.


O agronegócio avança como um rolo compressor, homogeneizando paisagens e culturas. Onde antes havia uma imensidão de cores—milhos vermelhos, pretos, amarelos; feijões de todas as formas—agora se ergue um deserto verde de soja, cana de açúcar, eucalipto, milho transgênica, de monoculturas que não alimentam, mas que viram commodities nas bolsas de valores. As sementes crioulas, guardiãs da biodiversidade, são tratadas como relíquias do passado, como se fossem incapazes de sustentar o futuro. Mas o futuro que o capitalismo oferece é um futuro onde não há escolha—onde até o direito de plantar se torna um privilégio pago em royalties.

A semente, outrora símbolo de vida e renovação, é agora aprisionada pela lógica do capital. A chamada “revolução biotecnológica” não trouxe liberdade—roubou da semente sua fertilidade essencial, sua capacidade de se multiplicar e se reinventar na terra. Coloniza-a por duas vias: pela técnica e pela lei.

Pela técnica, impõe-lhe grilhões invisíveis. A hibridização, por exemplo, é um desses artifícios. Cria-se uma semente que nasce apenas uma vez, estéril como o concreto, quem as cultiva é enganado pela promessa de produtividade, colhe seus frutos, mas a terra não guarda herança para o próximo plantio. A semente híbrida não se reproduz—trai seu próprio ciclo. E assim, ano após ano, as pessoas são obrigadas a voltar ao balcão das corporações, mendigando o direito de semear.


Pela lei, decreta-se o sequestro da vida. Patentes e royalties transformam a semente—um bem comum, ancestral—em propriedade privada. O que era livre passa a ter dono; o que era partilha vira contrato. E assim, o ciclo da agricultura, que sempre foi um diálogo entre os seres e a terra, vira um negócio entre pobres e poderosos.

A semente mercantilizada é uma mutilação.

Ecologicamente, é um corpo partido: não se regenera, não se basta. Por definição, a semente carrega em si o futuro—mas a semente do agronegócio carrega apenas dívidas.

Primeiro, perdeu sua força vital. A engenharia genética converteu um recurso renovável—que sempre se refez com a chuva e o sol—em algo descartável, como um plástico. Segundo, tornou-se dependente. Sozinha, não germina; exige venenos, adubos químicos, pacotes tecnológicos. E assim, as mesmas empresas que vendem a semente vendem o remédio para sua fraqueza—um ciclo perverso de vício e controle.

Com a fusão das gigantes de sementes e agrotóxicos, a lavoura virou refém. O que era um ritual de troca com a terra virou linha de montagem: a semente não se reproduz, o solo não se alimenta, os povos não decidem. E nesse processo, a biodiversidade—milhares de cores, sabores e resistências—é substituída por desertos verdes de monoculturas silenciosas, você já contemplou o silêncio de uma monocultura de eucaliptos?


A dominação capitalista não se dá apenas pelo controle da terra, mas também pelo controle da vida—e as sementes são a chave. Quando uma comunidade perde suas sementes, perde a capacidade de decidir o que plantar, quando colher, como se alimentar. Vira refém de um sistema que dita até o sabor do seu prato e o futuro da vida orgânica na terra. 

Tal narrativa foi explorada brilhantemente no filme “CANDINGA” dirigido por Jheyds Kann, que retrata ficcionalmente um mundo onde já não é mais possível a agricultura, as sementes desapareceram devido aos processos de hibridização e a degradação globalizada perpetrada pelo Capitaloceno faz com que seja preciso recorrer aos encantados para recuperar sementes de mandioca.

A produção de alimentos é reconhecida como parte integrante do modo de vida e da identidade cultural de um povo, e, portanto, deve ocorrer localmente, respeitando o equilíbrio ambiental. Desse modo, a autonomia alimentar está estreitamente relacionada a outras formas de autonomias, como a hídrica, energética, genética, sementes e territorial, de maneira que interagem e se complementam, contribuindo para preservar o modo de vida e de produção de alimentos.

Para a Teia dos Povos, a resistência ao sistema de dominação capitalista está fortemente ligada à construção de estratégias para a operacionalização da autonomia alimentar, sendo uma delas a consolidação da Rede de Sementes, pois é a autonomia das sementes que garantirá a autonomia alimentar que fundamentará e garantirá a permanência povos nos seus territórios. A produção de alimentos necessariamente tem que ser produzida localmente, porque está vinculada a um modo de vida, à cultura de um povo, respeitando o equilíbrio ambiental.

No artigo 19 “Direito as Sementes” da Declaração dos Direitos dos Camponeses e das Camponesas articulado pela Via Campesina podemos ler no item 2 a seguinte afirmação:

 

“Os camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver suas próprias sementes e conhecimentos tradicionais”.2

A afirmação é fruto do entendimento histórico do caso comprovado de que comunidades que preservam sementes crioulas e resistem ao agronegócio.3

Para Mestre Valmir as sementes são a continuação da vida, acompanharam os ancestrais e também acompanham a gente, algumas desaparecendo outras surgindo, como o caso de um milho crioulo guarani que Valmir produz, uma espécie que já tem mais de 12 mil anos.


Hoje Mestre Valmir e Luciano Payaya, guardiões de sementes, moradores das Terras do Bem Virá no assentamento Terra Vista tem no seu banco de sementes uma grande variedade de milhos crioulos, milho vermelho, milho bem virá colorido, milho branco, milho peruano, milho guarani e também uma grande quantia de feijões, quiabos, abóboras entre outras, sementes que Mestre Valmir guarda há anos desde quando morava no assentamento Carlos Marighella em Santa Maria no Rio Grande do Sul.

Em um contexto em que a agricultura industrial predomina, especialmente na América Latina, resgatar e manter as variedades crioulas é fundamental para assegurar a soberania alimentar. Além de serem essenciais para a segurança alimentar, essas sementes estão intrinsecamente ligadas à economia e à cultura locais, representando a apropriação da biodiversidade pelos povos locais.

As sementes crioulas não são a bagunça genética, nem tão pouco são relíquias paradas no tempo. Elas são fruto de mãos que há gerações as selecionam, adaptam e renovam—mãos que conhecem a terra, o sol, a chuva. São histórias vivas, tecidas na base da resistência dos povos

Colocar as contribuições dos cientistas das grandes corporações acima das contribuições intelectuais de pessoas como Mestre Valmir ou Mestre Joelson entre tantos outras agricultoras e agricultores, que multiplicam e preservam sementes que são fruto do trabalho de povos originários e tradicionais ao longo de mais de 10.000 anos é no mínimo, como afirma Vandana Shiva “um ato baseado em descarada discriminação social.”


Enquanto o capitalismo global tenta engolir a diversidade, as comunidades semeiam futuros. Nas roças, nos quintais, nas mãos das crianças que aprendem a plantar, a soberania germina. Porque a semente crioula não nasce só na terra—nasce na consciência de quem sabe que comida de verdade não tem dono. É um bem comum, como o ar, como as águas, como o canto dos pássaros ao amanhecer.

E assim, enquanto houver milho para assar na fogueira de junho e gente para guardar suas sementes com amor, haverá esperança. Porque a vida, quando é livre, sempre encontra um jeito de brotar.

“Sementes são a vida, o futuro e o presente.

Mestre Valmir

  1.   SHIVA, Vandana. Biopirataria: A Pilhagem da Natureza e do Conhecimento. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. Nesta obra, a autora denuncia a apropriação corporativa de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais por meio de patentes, caracterizando-a como uma forma contemporânea de colonialismo. Shiva critica acordos como o TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) e analisa casos como o do arroz basmati e do neem, defendendo a soberania alimentar e a resistência às monoculturas transgênicas
    ↩︎
  2. https://mab.org.br/wp-content/uploads/2021/02/DECLARA%C3%87%C3%83O-DOS-DIREITOS-DOS-CAMPONESES-E-DAS-CAMPONESAS-.pdf ↩︎
  3. https://aspta.org.br/2022/10/27/fao-e-a-defesa-das-sementes-crioulas-no-brasil-e-no-mundo/
    ↩︎

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