Texto de Melka Barros, da Teia dos Povos do Ceará
Um dia recebi uma ligação de um companheiro da Teia dos Povos da Bahia, em que me perguntava sobre batatas. Ele me contava a história do povo Maxakali e das sucessivas invasões que historicamente os territórios desse povo sofreram por não indígenas ao longo dos séculos. A cada vez que precisavam fugir do território, deixavam para trás não apenas suas casas ou a terra onde os corpos de seus antepassados estavam enterrados, mas também o alimento no solo.
Dessa forma aconteceu com as ramas das batatas que foram, uma a uma, sendo perdidas e com elas a diversidade desse vegetal. Ouvi de Neto Onirê que dentre as inúmeras estratégias de dominação utilizada pelos de cima, deixar-nos sem alimento é a principal delas. Nós sabemos e eles sabem também que não existe resistência sem alimentação. E mais importante que simplesmente alimentar-se é a produção permanente de alimentos diversos e saudáveis pelo nosso povo, em quantidade suficiente e sem comprometer o acesso a outras necessidades.
Em todas as geografias, em meio a governos autoritários ou revoluções, a preocupação com o alimento é uma constante. Lembro-me de uma amiga médica chilena que me visitou em 2018. Ela deveria passar três meses em assentamentos do Ceará, a pedido do povo Mapuche, com quem trabalhava, para que aprendesse com agricultores sobre a produção de alimentos. Explicou-me que os Mapuche previam atravessar em breve crises de abastecimento alimentar e precisavam com urgência intensificar as suas produções para garantir a saúde nutricional do seu povo. Da mesma forma, em 2016, militantes curdos procuraram assentamentos no sertão do Brasil para aprender técnicas de plantio em climas áridos, contando sobre uma nova fase pela qual a revolução deveria passar: garantir segurança alimentar e nutricional para o povo curdo.
Também me lembrei do filme Mad Max, que retrata uma sociedade futurista de fome, sede, escravidão e patriarcalismo onde um grupo de mulheres foge do governo autoritário pelo deserto e no momento ápice da fuga, quando se desprendem de todos os pesos que atrapalhem o deslocamento, uma senhora idosa se apega com força a uma caixa que acreditava conter a única esperança de sobrevivência em um novo lar… as sementes.
Utilizamos a palavra semente genericamente, pelo seu simbolismo de germinar, mas sabemos que em nossa cultura alimentar há muitas formas de plantio. As batatas são raízes que mergulham profundamente no solo. Suas ramas, quando brolham, formam teias que conectam a terra aos seres que nela habitam.
No território em que moro, no litoral oeste do Ceará, plantamos batatas há muito anos geralmente no início das chuvas. Após a ligação da qual falava, procurei Pedro Neto, agricultor e pescador assentado num território vizinho ao que eu moro. Pedro é aquele tipo de pessoa que fala com os olhos. Um olhar profundo, firme, sabedor das amarguras da vida. Um olhar que enxergou por entre grades por oito meses e que chorou aflito durante vinte anos de ameaças judiciais pelo conflito que por fim demarcou a terra em que vive.
Quando nos encontramos, eu e Pedro, li em voz alta o nome das batatas na língua do povo Maxakali e a sua tradução para a língua do colonizador, que para minha tristeza é a única que sei falar. Juntos, ficamos maravilhados pela diversidade do idioma e das batatas, algumas das quais nós não tínhamos, mas muitas outras ficavam ali embaixo do chão em que estávamos pisando.
Yiyoeh, a batata amarela de casca branca; iyit, a batata lilás com a casca branca acinzentada e ramas longas de cor clara; iyit xeka, batata roxa ou azulada com casca escura e ramas curtas de cor clara; kotin nãg, as batatas onduladas de cor branca com ramas curtas; xatõn, as batatas cor de laranja com casca branca, que são as que eu mais gosto; manemõn, as batatas brancas com casca rosa e folhas avermelhadas; xuk ní ãmix, as batatas brancas compridas com casca acinzentada e ramas escuras e kõmiy, as batatas avermelhadas com casca vermelha. Colhemos várias batatas de quatro destas espécies e enviamos por correio para Bahia.
Pedro Neto, como o povo Maxakali, foi expulso muitas vezes de seu território, alguma das quais entre tiros e ameaças, mas para ele voltou como os Maxakali procuram voltar. O nosso povo é diverso, como diversas são as batatas que procuramos, mas para todos esses povos a defesa do território é nossa bússola. Afinal, sem terra não há autonomia alimentar.
[…] Ramas que tecem a vida: a história das batatas enviadas ao povo Maxakali – Teia dos Povos […]