Posted on: 25 de novembro de 2020 Posted by: Erahsto Felício Comments: 0

A Editora Reaja lança agora a 2ª edição do livro de crônicas de Hamilton Borges Salvador, Cidade-Túmulo. O livro pode ser adquirido através das redes sociais da organização ou do próprio autor por apenas R$50 com frete grátis. Esta obra foi traduzida para o inglês (Salvador, Tomb City), mas estava com sua versão em português esgotada. Para essa nova edição eu escrevi um novo prefácio e vocês podem ler um trecho deste texto logo abaixo. Na minha visão, o livro de crônicas de Hamilton é uma obra de amores interrompidos pela violência racial cuja metáfora Cidade-túmulo fala sobre corpos que apesar de vivos estão condenados à cruel morte do genocídio preto, bem como uma espécie de ‘túmulo’ como memória, pois o autor faz questão de registrá-las nos seus escritos como forma de impedir a outra forma de morte que é o apagamento, o esquecimento. Não deixem de fortalecer o trabalho autoral e autônomo da Editora Reaja, pois esta é uma das fontes de financiamento de todas as campanhas e ações desta importante organização política do povo preto.


Prefácio à 2ª edição de Salvador, Cidade-Túmulo por Erahsto Felício

Não estamos apenas diante de um livro de literatura, mas de um verdadeiro manifesto contra o esquecimento, a banalização e despolitização da morte preta. De alguma forma cidade-túmulo aqui representa tanto a crítica do genocídio da população preta como a luta para que, de fato, exista um túmulo, um mausoléu, uma lápide que seja, contando as histórias, memórias e vida de cada um daqueles que os jornais policiais insistem em transformar apenas em números. Hamilton Borges não está escrevendo, ele está marchando contra o genocídio preto em cada página que o leitor tem em mãos. A literatura que encontramos romantiza apenas no sentido de transformar em microrromances cada dor silenciada pela macronarrativa romantizada de uma Roma Negra. É a inversão da violência da branquitude e de seus colaboradores, é a devolutiva feita por uma editora preta e autônoma, pois como diz um dos contos “nenhum branco fila da puta deu nada ali para depois tá alegando”.

E não se engane pelo título, o livro que tens em mão é um livro sobre amor. Na estrutura visceral das histórias é o amor o fio que tenta ser condutor, mas é impedido, sentenciado, por um ódio racial que compele cada história a uma tragédia violenta. O amor das avós, das mães, dos namorados, dos companheiros, dos amigos, das mães de santo… cada amor tenta evitar uma sentença sem julgamento previsto para ocorrer sem aviso prévio. Destaco que o amor hetero-cis-normativo é quase estranho às paisagens imaginativas que Hamilton elabora aqui. Os viado, as travesti, as nega, estão todas se amando e lutando para se amar contra uma sociedade que achou que não bastava oprimir social e racialmente, mas também negar a subjetividade e afeto que restou para aquelas pessoas. É um livro de amor, mas um estranho livro de amor que tenta garantir os finais felizes sem conseguir. Um fracasso. O autor não consegue mentir ou maquiar por uma força muito poderosa e cruel presentificada na cidade-túmulo.

Para confrontar com uma desolação e desesperança natural de quem tem chamado a si mesmo de “coveiro amador”, Hamilton recorre a passagens de resistência de trabalhadores que buscaram enfrentar o desmando e ousaram reconstruir suas vidas numa cidade pouco auspiciosa para um exílio. Em certo sentido o livro também é sobre exílios. Há refugiados pela violência de outras regiões da Bahia, outros que fugiram de seus bairros por força de facção ou de polícia, fugitivos de famílias fundamentalistas e reacionárias que não aceitam a identidade de gênero, há, inclusive, quem tentava fugir do próprio corpo. O problema de Salvador é que não há um campo de refugiados, não há médico sem fronteiras ou qualquer organismo que cuide desta gente. Cada um precisa buscar uma maloca, uma quebrada, um outro corpo, uma outra identidade, uma entidade, uma nova família, uma garrafa de cachaça, uma pedra, ou beck. Os únicos abrigados, protegidos e que encontram refúgio são os brancos, ou como diz um personagem “até morto, os brancos mora bem”.

A ausência da Organização Política Reaja ou Será Mort@ se faz presente de forma singela nas passagens. Ali e acolá é como se faltasse uma ação política para evitar aquele túmulo, para impedir este conto de existir, para que o grito de “Presente!” fosse uma realidade, não um desejo. Estas fabulações narradas por Hamilton são, portanto, realistas demais para que uma organização política, por mais combativa que seja, pudesse dar outros desfechos para as tramas. O narrador mesmo não nega, ele diz que “não tem santo nessas histórias, tem vícios, amores, coração”. Cada impactante personagem como Herculano, Borboleta, Akane Turê, Arcanja não podem ser heróis porque as contradições dos territórios em que vivem lhes colocaram a obrigação da sobrevivência. É como a avó de Gajé que se humilhava em faxina e lavação de roupa para conseguir a sorte para o filho e neto. Esta sorte baseada na humilhação parece ser um encosto em cada personagem que não possui um fim trágico nestes contos.

… continua.

Hamilton Borges, escritor, maloqueiro, quilombista da Reja Ou Será Mort@

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