O pensamento revolucionário de Thomas Sankara se aliou à inovação do saber tradicional feita por Yacouba Sawadogo para parar a desertificação do Sahel no norte de Burkina Fasso. Embora as florestas foram eficazes para parar a desertificação, bilhões e bilhões de dólares estão sendo introjetados por multinacionai para mudar a agricultura tradicional de África e introduzir o modelo de agronegócio que conhecemos no cerrado brasileiro.
Um revolucionário contra o deserto
A década de 1980 foi um tempo de grandes desafios no continente africano, sobretudo para os povos que estavam na região do Sahel, pois viam um processo de desertificação acelerada expulsar pessoas de suas aldeias em busca de água e comida. Burkina Fasso, quando ainda não tinha esse nome, enfrentava esta realidade ao mesmo tempo que buscava enfrentar uma sequência de governos golpistas e corruptos a serviço dos impérios. É neste cenário que conhecemos Thomas Sankara, um jovem capitão comunista que lutou, ao mesmo tempo, contra tradições de autoviolência de seu povo e contra o imperialismo que os atormentava. De um olho na política e com o outro politizando a crise ambiental, o jovem capitão via uma desertificação da região do Sahel avançar 7km anualmente. Na mesma época, mas do outro lado Atlântico, o jovem Bill Gates começava entre corrupções e inovações, uma trajetória revolucionária no mundo da informação, criando a Microsoft e apostando em seu sistema operacional para microcomputadores. No ano em que Gates lançava seu Windows 2.0, Sankara era assassinado em um golpe que pôs fim aquele legado humanista próspero e rebelde. Sabemos como Gates se tornou um dos homens mais ricos do mundo e hoje alardeia contra o aquecimento climático enquanto investe mais de 6 bilhões de dólares em África nos últimos 17 anos. O que conhecemos pouco é como seu investimento busca impor o modo de produção capitalista nas terras africanas e deve acelerar o processo de desertificação que os burquinenses lutavam para parar.
A luta contra a desertificação é uma luta contra o imperialismo. O imperialismo é o incendiário de nossas florestas e savanas.
Thomas Sankara
Em 15 meses o governo popular de Sankara construiu 7 mil viveiros populares e cada aldeia tinha que plantar ao menos 100 árvores, buscando atingir 10 milhões de árvores plantadas. Aquele projeto visava parar a desertificação que avançava, fazendo famílias abandonar suas aldeias e até seu país em busca de oportunidade em outros lugares. O governo revolucionário tinha um olhar integral para o problema ambiental. Via o problema desde o imperialismo nas ajudas humanitárias que doavam comida, mas não doavam melhores instrumentos para a produção alimentar na região, até aperfeiçoar fogões para utilizar menos lenha e assim diminuir as derrubadas ilegais.
Thomas Sankara
Um plantador no deserto
Foi no contexto do governo revolucionário de Sankara que, no norte de Burkina Fasso, um jovem muçulmano escutou o apelo contra a desertificação e abandonou seu pequeno comércio para subir florestas. A partir da crítica do método de plantio tradicional e inovações orgânicas, Yacouba Sawadogo conseguiu parar a desertificação em sua comunidade e gerar mais alimentos para seu povo. Yacouba foi reconhecido mundialmente por seu feito e se lembra em que contexto ele começou sua luta contra o deserto:
Thomas Sankara lançou um apelo para desenvolver iniciativas para impedir o avanço do deserto e quando veio ver o meu trabalho me perguntou que técnica eu estava usando e eu disse a ele que era zai. É por isso que também sou conhecido como Yacouba Zai.
Yacouba Sawadogo
Enquanto seu povo não permitir plantar fora da época tradicional das chuvas, Yacouba enfrentou e começou a afofar a terra, cercá-la com pedras para reter mais a água das chuvas e ampliou a profundidade do berço onde punha as sementes e a adubou à espera das chuvas. A técnica zai revolucionou a paisagem em desertificação do norte de Burkina Fasso e fez as florestas subirem.
A floresta de Yacouba não apenas parou o deserto: ela era biodiversa, com espécies desconhecidas por agricultores daquela região. Foi graças ao reflorestamento de aproximadamente 30 hectares que foi possível constituir uma casa de sementes onde campesinos iam de longe para buscar semente e onde o próprio mestre morava. Caso os visitantes não tivessem recursos para adquirir a semente, Yacouba pedia apenas que na colheita lhe trouxesse um pouco de semente de volta. Apesar de revolucionar a forma tradicional de plantio, o modo de vida comunitário estava no fundamento daquele reflorestar. Fosse na preparação do solo, fosse na colheita, o mutirão familiar e local se formava e a escola da prática se constituía com jovens e idosos aprendendo as técnicas inovadoras daquele camponês inspirado por Sankara.
Bilhões para a agricultura em África
Muitos anos se passaram e em 2007 a União Africana lançou um projeto para construir uma Grande Muralha Verde para parar a desertificação de um Saara que estavam 10% maior do que era em 1920. De alguma forma o pensamento revolucionário de Sankara e saber tradicional de Yacouba geravam uma consciência da necessidade de enfrentar o deserto como forma de soberania para os povos de África. Três anos antes a Fundação Bill e Melinda Gates começava suas doações para África num discurso que misturava aquecimento global com necessidade de desenvolver a agricultura africana.
O que está por trás dos bilhões de dólares em doações para a “África” dos Gates? Vejamos o que nos explica compas do GRAIN:
Nas últimas duas décadas, o cofundador da Microsoft, Bill Gates, injetou uma parte imensa de sua fortuna na tentativa de convencer pequenas e pequenos agricultores do Sul Global a adotar o que dizem ser “as opções mais modernas de sementes, pesticidas e fertilizantes”, comercializadas e desenvolvidas pelas maiores empresas do agronegócio do mundo.
Trata-se, portanto, de mudar a forma como as africanas e os africanos produzem seus alimentos, uma tentativa – na oposição de Sankara – de controlar as sementes e impor as técnicas capitalistas. Não estamos falando, portanto, apenas de produção de alimentos, madeira, o que quer que seja. Estamos falando de controle das forças produtivas, transformação da forma de trabalho para uma que se adéque às demandas dos sistemas das chamadas Big Tech. É importante entender este aspecto: Gates valoriza a terra e tem se tornado um dos maiores concentradores de terra do seu país, mostrando que diferente das esquerdas, sabe que a terra é central para o poder. Porém, o que sua engenharia social está operando é a mudança das condições e formas de trabalho para que milhões de campesinos africanos virem novos agricultores com seus smartfones na mão, recebendo informações por satélite sobre chuvas, cotação de commodities, dicas de agrotóxicos e as inovações genéticas disponíveis a um clique e alguns dólares. Nós sabemos que a agricultora mecanizada, a agricultura 4.0, a agricultura do futuro, aquela dos drones pulverizadores e do 5G não cabem tantos campesinos assim. Conhecemos esta história ao olhar para o cerrado brasileiro.
Então é de se esperar um flagelo social causado por uma expulsão de campesinos numa África à venda como nova fronteira agrícola para o agronegócio mundial – um flagelo muito superior ao êxodo rural causado pelos cercamentos no surgimento do capitalismo industrial na Europa. Estima-se que dos 1,2 bilhão de africanos e africanas, 70% viva da agricultura. Estamos falando, portanto, de centenas de milhões de pessoas que já vivem inovações no campo da agricultura, mas que agora passam a sofrer o assédio de megacorporações para que estas inovações representem o aprofundamento das mudanças na relação de trabalho. São novas tecnologias e empreendimentos que inspiram o capitalismo e pressionam para saídas que mudam as agriculturas orgânicas de África: 4Afrika da Microsoft, Apple Watch da Agworld (Apple) e a WeFarm da Amazon, para ficarmos em três conhecidas gigantes da tecnologia. Seja no Cerrado ou como no que se aprofunda agora em África, as populações nativas, racializadas, passam a ver seus territórios serem invadidos não apenas por empreendedores brancos, mas por técnicas, tecnologias e ideias brancas.
O importante é mudar os modos de produção africanos
A técnica zai de Yacouba, a agricultura baniwa, ashaninka ou xukuru (no caso do Brasil), embora repletas de inovações em relação à agricultura convencional, não são enxergadas como saída para os desafios de enfrentar a fome, o desmatamento, a desertificação, etc. Quando Yacouba subiu sua floresta, estudiosos de universidades africanas e europeias, órgãos multilaterais internacionais e empresas já tinham tentado desenvolver experiências com milhões de dólares investidos, mas sem um retorno eficaz. Então a zai usando enxadete, estrume, cinzas, pedras e trabalho coletivo conseguiu conter a desertificação. Uma coisa, então, é o desafio do povo frente a crise ambiental, outra coisa é a busca incessante de valorização do valor no capital. Parar a desertificação é importante para a vida e para a economia, mesmo a capitalista. Estima-se que “o prejuízo para a economia global é estimado em US$ 1,3 bilhão por dia devido à perda de terras agrícolas, para pastagem de gado, à perda de terras que poderiam ser usadas para turismo e habitação humana”. Contudo, a prioridade dos investimentos desses capitalistas em África não está aí, mas na transformação do trabalho e do uso das terras.
Nós aprendemos em Marx e Engels que “a burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas”. Ou seja, o que estamos vendo com o avanço de startups e engenharias de informação e produção na agricultura africana e no cerrado brasileiro, é a transformação das formas de produção e, por conseguinte, das relações sociais para sobrevivência do capitalismo destrutivo como nós o conhecemos. É como nos explica García Linera:
O capitalismo, portanto, não desenvolve indiscriminadamente as forças produtivas, mas sim as mutila, as reprime a fim de que apenas sigam a rota que potencialize a valoração do valor. Trata-se de uma unilateralização que anula as possibilidades multilaterais das capacidades materiais de trabalho, fomentando apenas as suscetíveis de servir, de ser compelidas à lógica do valor. (A potência plebeia, p. 40)
A zai propunha ainda um modo de vida comunitário, surgindo na defesa de aldeias que se esvaziavam com a fuga de famílias inteiras em busca de água e alimentos. Com a floresta, a água voltou e com ela as pessoas firmaram na vida e trabalho naqueles territórios. Mas o propósito da nova agricultura que tem olhos para África não é senão a desterritorialização dos povos pretos em seu continente uma vez mais. Mutirões, trabalho com cantos, alimentos nativos, soberania alimentar dos territórios, tudo isto vai sendo substituído pela expressão “agricultura de precisão”. Novamente García Linera explica que
Não há forças produtivas ingênuas ou neutras. Cada ferramenta, cada meio de trabalho fruto da sociedade contemporânea incorpora em sua qualidade material e nas formas de seu uso um conjunto de intencionalidades sociais, um conjunto de dispositivos de ordem que comprimem habilidades, prescrevem comportamentos, priorizam tais e quais saberes, descartam outros, difundem tal ou qual atitude grupal e esmagam outras conforme as demandas históricas gerais de época que acompanham as estratégias de valorização do valor. (Ibidem, p. 41)
Agroecologia X agricultura capitalista
E para isto talvez seja relevante falar das diferenças entre um modelo de agricultura convencional e da agroecologia dos povos no que diz respeito aos conteúdos ideológicos implícitos no trabalho. A agricultura capitalista monocultora cria um afastamento entre as plantas e o solo das demais espécies daquele bioma alegando que as plantas competiriam umas com as outras. Esta competição seria por sol, nutrientes disponíveis no solo ou na adubação. Já a agroecologia dos povos escolhe plantas distintas para consorciarem, cooperarem entre si num arranjo onde uma ajuda a outra a se fortalecer, a crescer. As plantas são escolhidas pela sua capacidade de produção de biomassa, de fixação de nutrientes, nitrogênio, fósforo e outros no solo, ou seja, invés de disputarem, elas servem de nutrição para o solo através dos manejos, das podas. Só nesta anteposição competição-cooperação já é possível perceber que o sistema capitalista promove uma tese científica agrícola que contraria o funcionamento das florestas, onde o solo é vivo e saudável.
Para a agricultura capitalista a produção depende necessariamente de insumos, adubos químicos, sementes transgênicas acessíveis apenas por compra, agrotóxicos, para que as plantas possam produzir. O solo, então, é uma espécie de fábrica que recebe matéria-prima (insumos vindo de fábricas poluentes) e produz plantas para a comercialização. Porém na agroecologia dos povos, as sementes são nativas, são crioulas, reproduzidas nos territórios e conta com a solidariedade dos povos em suas trocas para gerar a vida. Invés de insumos químicos e agrotóxicos, usa-se as próprias podas, cascas, folhas, matéria orgânica morta para enriquecer o solo. A lógica não é um solo que precisa transformar insumos em planta, mas trabalhar para construir um solo vivo, saudável e ele junto com o manejo (trabalho) conseguirá produzir plantas saudáveis, como diria Ana Primavesi. Ou seja, para o capitalismo o solo é apenas um meio, mas para os povos é um sistema vivo, cheio de bactérias, fungos e insetos que fazem parte da vida que gera novas vidas.
Defender a agroecologia dos povos em África
Desse modo o que está em jogo em África é impor uma visão capitalista para o sentido das terras e da agricultura. É a luta por modificar as formas de socialização, de interação no trabalho, as culturas comunitárias. Eis uma das táticas basilares para o novo projeto da branquitude e do capitalismo internacional para os pretos, porém as agriculturas comunitárias de África seguem resistindo:
Apesar dos milhões — talvez bilhões — investidos, nos centros internacionais de pesquisa que promovem essas tecnologias e programas, como a Aliança para uma Revolução Verde na África (Agra), esses esforços tiveram pouco impacto, e o índice de adoção dessas tecnologias continua baixo. (grifo meu)
GRAIN
Uma pista possível para esta baixa adoção está no fato que embora a Fundação Gates financie empreendimentos agrícolas em “África”, a verdade é que seus donativos focam em agentes externos ao continente. Sim: “quase 90% deste financiamento foi para grupos da América do Norte e Europa; só 5% é canalizado diretamente através de ONGs africanas”. Ou seja, não confiam nos povos africanos para serem agentes de seu próprio desenvolvimento. Junto com a Fundação Rockefeller, a Fundação Gates criou a AGRA (Alliance for a Green Revolution in Africa), para quem doam a maior parte de seus donativos e embora afirmem que são para campesinos africanos, a maioria dos recursos chegam para centros de investigação e destes a maioria está na América do Norte e Europa. Ou seja, é a construção de uma “Revolução Verde”, de uma agricultura de precisão, pensada de fora da África, mas para impor às africanas e aos africanos uma forma de trabalho e uso do solo brancas, capitalista.
Em certo sentido parece que a resistência às formas capitalistas de produção sugere um conservadorismo em relação às inovações tecnológicas ou ao capitalismo tal como podemos ler em Costumes em comum de E.P. Thompson. Ou seja, é possível que exista uma rebeldia dos de baixo contra um conjunto de mudanças que seguem o curso do desenvolvimento de forças produtivas que aprofundam a dominação sobre estes. Isto não quer dizer que estejamos defendendo aqui qualquer medo do desenvolvimento da técnica, mas enquanto esta for desenvolvida e dominada pelas elites imperialistas do mundo, é preciso ficar vigilante, pois a luta revolucionária não tem se ampliado e aprofundado no seio de nossas sociedades neste mundo permeado de tecnologias que cabem na palma da mão. Tal como a diminuição do tempo de realização das tarefas pela máquina não ajudou o trabalhador a se organizar politicamente, as redes sociais, o desenvolvimento dos meios de transporte não tornaram mais fáceis as irrupções rebeldes. Assim, uma rede rebelde que enseja na busca por um horizonte revolucionário não deve forjar o desenvolvimento de forças produtivas capitalistas no seio de sua comuna sob o risco da alienação do trabalho enfraquecer as bases de sua caminhada irruptiva. Ou seja, enquanto estamos mirando a luta rebelde, é preciso ainda hoje construir formas de trabalho – desde já – que vá libertando mentes e corações da dominação capitalista.
Embora seja uma realidade objetiva o fato das nações africanas precisarem de crédito para investimento, também é verdade que precisam de condições também objetivas de semear sua soberania, sobretudo as nações que vivem um processo acelerado de desertificação de seus solos. Então desde o Brasil urge mostrarmos o que tem se tornado o solo de nosso cerrado após a implementação veloz e violenta do agronegócio, urge mostrarmos às irmãs e irmãos africanos o que tem ocorrido com as populações nativas onde estes megaempreendimentos chegam. Sobretudo é fundamental apontar para a seca do sudeste e sul do país para dizer que um bem tão escasso em grande parte da África estará em risco: a água. Neste contexto, defender a floresta de Yacouba e as agriculturas dos povos é reter duas desertificações: uma causada pelo avanço do Saara e a outra causada pela poderosa onda de transformação capitalista da forma de produção e, consequentemente, das relações sociais em África. Ao defender o espírito comunitário que ronda a luta por parar a desertificação, estamos falando que a prioridade dos povos é manter a vida, a água e as condições de existência de forma soberana para os povos, tal como pensou Sankara há 37 anos.
[…] Source: Teia dos Povos. […]