Com plantios fermentando nutrição, alimento e fartura, pedimos licença para pisar na terra: com respeito e com firmeza, sem medo e sem romantização. Radicalizadas pela urgência da transformação, mudança e recuperação das florestas, matas, águas e memórias ancestrais dos povos, pela retomada das terras, retomada das tradições, retomada das ancestralidades, retomadas das lutas e a retomada da soberania: por terra, território e bem viver.
Retomada é uma palavra de ordem de forte presença, que estimula a revigoração da territorialização. A defesa das retomadas, das terras dos povos e da territorialização envolve a compreensão não somente de certa luta por reconhecimento, pela demarcação de terra e do fortalecimento étnico, mas também se apresenta como uma questão de sobrevivência física, espiritual e existencial em todas as suas dimensões. É só lembrarmos do passado recente, em 2021, quando os povos indígenas em Brasília lutavam contra o Marco Temporal, brandamos ao som dos maracás representando bem a nossa urgência: é lutar ou morrer!
Para cessar a violência da política de morte, os povos indígenas estão bem cientes do momento conjuntural lutando para o fim do latifúndio monocultor (e, por efeito, do agronegócio) e do urgente fim do capitalismo, sendo a retomada um saber vivo coletivo cuja persistência e luta se dá hoje, no tempo presente. Compreendemos que os processos de luta por terra não nascem prontos e pré-determinados, eles vão ganhando força motriz quando conectam a junção da vida existencial, coletiva e cotidiana à luta política contra a expropriação, a renda especulativa da terra e a violência sanguinária de conflito envolvida nesses processos.
Seguimos na busca por avanço de novos caminhos e trilhas, ou seria do retorno a raízes já existentes que nunca foram cogitadas? Seja na cidade ou no campo, buscamos a aliança dos povos e comunidades em luta que possuem a territorialização, ou que a buscam, como horizonte político e da construção do poder popular. Em passos calmos, com cautela para conter as águas das chuvas (sem desperdício, embora com fartura), com firmeza no caminhar, entendemos que levará algum tempo, muito compromisso e convicção firme dos saberes preservados e recuperados dos povos nos roçados, pescas, mares, rios e mangues para conseguirmos segurar o céu, para adiar o fim do mundo e para construir um encantamento coletivo e poderoso capaz de se projetar em um movimento oposto ao capitalismo e seu modo engolidor de vidas como porta voz da destruição das mulheres, dos homens e dos biomas. E foi assim, através destas reflexões, que chegamos a mais uma ação da Comissão Pró – Teia dos Povos Pernambuco, dessa vez em Orocó, Sertão do São Francisco, na Terra Indígena Pankará de Brígida.
Salve Povo Pankará de Brígida!
Entre os dias 09 a 11 de Setembro, uma delegação da comissão Pró – Teia dos Povos Pernambuco acompanhou os ventos, entre a transição de uma verde Caatinga do Agreste Central, passando por uma paisagem habitada pelas sagradas juremas, paus ferro, umburanas de cheiro, angicos e mameleiros, chegando ao nosso destino: Território Indígena Pankará de Brígida, no município de Orocó, sertão do São Francisco. Antes de tudo, um salve toante agradecido para o Cacique Francisco de Assis, para Dona Severina, para o Vice-cacique Seu Orlando, para o Pajé Pedro Afonso, para Dona Zefinha, Dona Rita, Dona Osana, Dona Margarida, Cosme, Nega, Nicole, Diana, Seu Dito, Seu Severino, Maria, Clayton, Carlos, Pedrinho, Biá, Birimba… Por todas, todos e pelos sons dos maracás com os quais fomos recebidos com alegria, simpatia e risos: sejam bem vindos! Agradecemos a recepção e saudamos: Salve a todos os povos! Salve aos indígenas! Salve aos Pankará Riacho do Brígida! Salve o povo Atikum! (Também presente em nossa recepção). São pelo menos três anos na busca pela regularização da terra e pertencimento indígena expropriado pelo roubo da violência brutal do colonialismo, capitalismo e patriarcalismo, esse povo é um povo de luta!
A aldeia visitada fica à esquerda da estrada da BR-428, na direção da pista de Cabrobó para Orocó. 20,6 km antes de chegarmos à aldeia, há o canal da transposição do Rio São Francisco, sendo possível vermos a destruição antrópica causada pelo grande empreendimento. O riacho Brígida, que corta os municípios de Cabrobó e Orocó e nomeia a região, é uma sub-bacia do Rio São Francisco, que recebeu um dos braços da transposição do rio, o eixo norte, que também alimenta duas outras sub-bacias, quatro rios e dois açudes. O Opará ou velho Chico, como é carinhosamente chamado, é a bacia hidrográfica mais importante da região Nordeste, e a transposição causou grande impacto socioambiental na região. De acordo com o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, foram realocadas mais de 150 mil pessoas para esse mega projeto acontecer, entre estes, povos indígenas, quilombolas e campesinos. Os movimentos sociais, os povos camponeses, os povos da terra e pesquisas universitárias denunciam a Transposição do Rio São Francisco atendendo aos interesses expansionistas do latifúndio adaptado nos últimos anos ao modelo do agronegócio. Todo o projeto, além de realocação forçada de milhares de pessoas, ainda modificou composições biológicas aquáticas nativas, gerou o desmatamento de cerca de 340 hectares de terra com vegetação nativa, alteração do regime fluvial e outras condições que podem resultar, de acordo com os especialistas, em perda de aproximadamente 4 mil hectares de terra com potencial agricultável. Toda esta situação criada a partir do plano de suposto combate à seca, mal planejado e mal executado, especialmente no que desrespeita o legítimo direito de consulta prévia, livre e informada aos povos que seriam afetados pelo mega empreendimento, além de sua autodeterminação. Foram e são ainda incontáveis as perdas de caráter sociocultural, bem como, seu impacto ambiental em relação à transposição. A comunidade Pankará Riacho do Brígida é uma destas comunidades afetadas e que foram realocados de seus territórios para outras regiões, vivendo um processo que se arrasta quanto ao reconhecimento e demarcação das terras que reivindicam como ocupação originária de seu povo.
Em um novo ambiente, lidando com todas as situações colocadas pela mudança forçada, o povo Pankará Riacho do Brígida passa hoje por uma situação de vulnerabilidade alimentar, já que são 30 famílias que vivem em cerca de 1 ha compartilhado e mais alguns poucos hectares destinados à produção de alimentos, que não conseguem suprir a necessidade da comunidade, que precisa acessar outros meios para complementar a comida dos mais velhos e mais velhas, lideranças, mulheres e crianças. A principal atividade econômica da região é a agricultura familiar, que reproduz a lógica da monocultura, tendo como principais cultivos a macaxeira, cará, banana, goiaba, manga, maracujá e uva. A forma de plantio está longe de uma prática que não degrade o solo, polua os rios, valorize a diversidade de espécies, as necessidades locais e uma relação de trabalho igualitária – ou seja, dos princípios agroecológicos. Isto faz com que o acesso a alimentos, mesmo numa região rodeada por roças, seja mais difícil e mais cara que nos centros urbanos, como Recife.
Além disso, os mais novos estão sem perspectiva: vivem sem escola, sem emprego e disputados pelo espaço urbano, que dada a situação atual, se vende como saída para melhoria de vida. Sobre educação escolar, as crianças não possuem educação escolar indígena dentro de seus territórios nem próximos, em sua maioria, estão matriculadas nas escolas do município e possuem acesso ao transporte escolar. Entretanto, a permanência na escola é baixa – uma vez que os pais possuem dificuldades, devido à necessidade de trabalho, de controlar esta frequência. Isso evidencia a exclusão dos povos nos espaços formais de educação como projeto que segue em curso em vários lugares do Brasil, sem preocupações maiores com os índices de falta ou evasão escolar.
Sobre a saúde indígena, não há um polo de saúde que atenda as comunidades indígenas do Projeto Brígida – Orocó. As comunidades da região tem um atendimento pontual com enfermeiros e técnicos de enfermagem a cada quinze dias e médicos de forma intermitente. Estes profissionais atendem pelo polo de Santa Maria da Boa Vista, do povo Tuxi.
Esse é o quadro geral do povo Pankará de Brígida em Orocó.
Semeando esperança e propondo a aliança
Viajando na Kombi Esperança, amiga dos sonhos dos povos em nossa região, chegamos a este território, carregando sementes diversas como as de Milho Guarani, de nome Avati etei, o milho verdadeiro em Guarani, presente de nossas companheiras e companheiros da Teia dos Povos da BA; também partilhamos sementes de Favas e Feijões Xukuru da Serra do Ororubá, que também doaram mudas de Oricuri para o reflorestamento da espécie que é nativa da Serra do Araripe e que está em vias de extinção. Entre as mudas, levamos ainda babosa, capim santo, orégano, menta, alecrim, artemísia, bálsamo e manjericão, doadas pelo Quilombo Castainho, de Garanhuns, povo de luta, descendentes de Zumbi e amigos do coração.
Vindos de diferentes regiões, climas, paisagens, biomas, histórias de vida e pensamentos políticos, nossa delegação tinha (e tem!) um sentimento em comum: a luta pela terra e pelo território é digna, é justa e é nossa, de todos nós. Foram 09 pessoas convivendo intensamente dentro da kombi entre troca de palavras e sementes. Boa parte destas pessoas pouco tinham se encontrado anteriormente e algumas até mesmo nem se conheciam pessoalmente: porém o encontro tinha firmeza em comum da necessidade da luta dos povos como elo de conexão. A Teia de Pernambuco aos poucos vai se germinando, em ritmos e tempos da natureza, de acordo com as necessidades demandadas dos espaços, dos povos e de comunidades em processos de territorialização.
Chegamos à aldeia na sexta à noite e logo fomos montar acampamento para se preparar para o final de semana de trabalho coletivo: nosso propósito, obedecendo a demanda do núcleo territorial, foi semear a construção de uma horta mandala incentivando a conversa, a mobilização e a coesão interna da comunidade. O mutirão, que aconteceu no sábado pela manhã, reuniu as mais velhas e os mais velhos, os jovens e também as crianças, que estiveram conosco, colocando as mudas no chão, recebendo as sementes, cuidando da terra: um trabalho coletivo que rendeu e renderá frutos à aldeia. Bonito de ver, mais ainda de sentir, na prática, o que sai de resultado quando a aliança entre os povos se firma.
Debaixo do sol forte fizemos uma horta de plantas medicinais e plantamos algumas mudas de ouricuri, como solicitado pela comunidade. Para iniciar o mutirão e o plantio das mudas, ouvimos atentamente as dicas e informações daqueles/as que tinham mais conhecimento e, assim, seguimos capinando, pegando pedras e preparando o solo pra receber as plantas. A horta circular foi composta por diversas espécies comuns à Caatinga, rodeada por pedras típicas da região, ficou uma lindeza que só! Além da horta em formato de mandala, foram feitos outros canteiros e plantados pés isolados de ouricuri – que não ficaram menos bonitos. A transformação foi notória. Mais tarde, já no domingo de manhãzinha, foi a hora de fazermos a cobertura do solo da horta, utilizar aquilo que a própria natureza já oferece, folhas secas e verdes, para proteger o solo que virá a servir de base para o crescimento das plantas. Proteger para cuidar. Mexer na terra de forma coletiva, compartilhada, não só com os adultos, mas com as crianças é um lembrete do porquê fomos até Brígida, juntar nossas forças, compartilhar nossas experiências, articular nossos sonhos e lutar por Terra e Território pra todos/as/es.
Aos poucos vamos adquirindo acúmulo prático coletivo na elaboração, planejamento, estrutura e cultura dos mutirões: o fazer na prática é pedagógico. Os mutirões são parte das culturas do trabalho coletivo e dos saberes de povos da terra do meio rural. Assim como na terra, na cozinha não foi diferente. Nos preparos (e seus temperos) coletivos da cozinha (com fartura edistribuição de tarefas), fomos aprendendo e experimentando a quantidade exata (sem desperdício nem sobra: esse é o desafio) da quantidade de água fervida no feijão (bem temperado, diga-se de passagem), de arroz vermelho e de salada – esse foi o nosso almoço, no improviso e na pouca estrutura com um fogão com gás acabando. Comprar um novo gás ou cozinhar a lenha? Na simples dúvida, vimos na prática como comer é ato político! Em todos os sentidos: desde o preço do gás, na comida com veneno, sobras de ossos sendo vendidas… No contexto brasileiro, de acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mais de 33 milhões de pessoas passam fome no país e metade da população vive algum tipo de insegurança alimentar.
Um bom café da manhã ou almoço podem servir não só para a alimentação do corpo e da alma como também na mediação de conflitos coletivos, no fortalecimento da convivência comunitária e valorização das relações de vizinhança. Nesse último sentido, comer é constituinte também das nossas autodefesas, fortalece a saúde e as relações pessoais e coletivas da comunidade. A diplomacia da partilha alimentar deu-se entre os mais velhos e as mais velhas, crianças e jovens servidos com um bom almoço e jantar (a sopa servida estava ótima!), mais ou menos 20 pessoas. É urgente o resgate ritualístico do comer em grupo que penetram nas substâncias do bem viver, da vida na sua existência e também da política.Como cozinhar para muitas pessoas? Como cozinhar para uma multidão? São desafios que perpassam a Teia dos Povos e as alianças alimentares (na ajuda, na partilha do pão e na solidariedade) entre os povos e comunidades. Falar de territorialização é falarmos e agirmos na fartura e alimentação (sem veneno) dos povos.
Parte importante do que aconteceu nesses dias de envolvimento com a comunidade foi a troca de sementes e o diálogo sobre a Teia dos Povos, conversa que teve horizontes e perspectivas em comum buscando o fortalecimento e diálogo entre a articulação e as lideranças do território. No momento de partilha, cada pessoa da delegação falou sobre a Teia, uma fala complementando a outra, um ponto de vista exaltando algo que ainda não havia sido dito por outro: um processo de tecer a mãos livres. Foi durante esse momento que aconteceu também a entrega das sementes: uma troca potente que empolgou a todas e todos. A comunidade, por sua vez, também compartilhou seus sentimentos com nossa chegada e se abriu para essa relação com a Teia dos Povos.
Seguida da conversa no final da tarde do sábado, adentramos a noite com toda a preparação para o Toré, fato que estava nas conversas entre todas as pessoas ao longo do dia, principalmente das crianças. As comunidades vizinhas, Pankarás e Atikum, também chegaram de caminhão para estarem presentes e somarem força nesse momento tão importante, manifestando-se como um grande elo. Foi uma linda celebração para uma ocasião tão singela e importante como foi nosso mutirão.
No momento do ritual, a espiritualidade se apresenta também para essa comunidade, fato comum aos povos em luta por terra e território, como fortalecimento intrínseco e que perpetua a unidade do povo. Na força dos encantamentos, essa espiritualidade mostra os caminhos e ajuda na resistência desse povo em retomada.
Ao final da nossa jornada, já na hora da partida, não nos deixaram ir embora de “mãos vazias” (o que seria impossível já que estávamos também levando de volta para casa inúmeras experiências): Cacique Assis e Dona Severina nos doaram incontáveis sementes de inhame e cará, além de várias palmas de banana que lotaram a Kombi Esperança, que foi e voltou carregada de sementes, alimentos, sonhos e lutas.
Fico feliz com a retomada!