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Por Erahsto Felício e Joelson Ferreira
Estamos diante de um conjuntura em que a aproximação de um governo fascista nos faz revelar o quão fascista já era o Estado nacional brasileiro em sua sanha sanguinária contra pretos e indígenas. Os protestos seguidos à morte do estadunidense George Floyd pelo mundo — e em menos grau no Brasil — nos revelam que o racismo sempre foi internacionalizado. Contudo o combate ao racismo não possui uma agenda internacional aplicável ao Brasil. E é por isso que eu e Mestre Joelson Ferreira (MST e Teia dos Povos) vamos discutir terra e território em uma série de textos.
O debate sobre reforma agrária não é um eixo estrutural da pauta do movimento negro no Brasil, ou melhor, não é seu carro chefe. Contudo, ninguém questiona o fato que a lei de terras de 1850 seja um dos elementos centrais do racismo do país. O fato de que uma legislação dificultou o acesso à terra de pretos livres e escravizado e aprofundou o latifúndio. A abolição não promoveu qualquer tipo de reparação, como doação de terras devolutas para os ex-escravos. De 1850 para cá, as políticas agrárias não envolveram uma política de distribuição de terras para os pretos. Porém os imigrantes brancos tiveram acesso à terra e se territorializaram, tanto que há cidades “alemãs”, “italianas”, “polonesas” e etc no sudeste e sul do país.
Essa territorialidade com acesso à terras foi negada aos povos pretos que seguiram se desterritorializando nas grandes cidades, perdendo a capacidade de se organizar em nações, como ocorria por todo século XIX nas grandes cidades. Os marcadores de nação dos terreiros, de congadas e outras manifestações tradicionais são um resquício das antigas territorialidades e organizações próprias dos povos pretos. Mas não temos uma cidade “angola”, uma vila “ketu”, um território “benguela”. Tudo isso o racismo impediu. Nós vimos reformas urbanas ceifar o modo como os pretos se organizavam nas principais cidades, seja com a destruição dos cortiços e mocambos no Rio de Janeiro, seja com reformar urbanas de Salvador que retiram os pretos de seus territórios na região central.
O nome favela é emblemático. Conta-se que é o nome do morro que os soldados cariocas ocuparam à frente do Arraial de Belo Monte (Canudos) quando foram combater aqueles rebeldes no sertão baiano (1897). Ao retornar ao Rio, viram que muitos pretos, expulsos de seus antigos mocambos, estavam fazendo barracos em morros. O nome surgiu de uma violência e seguiu uma história de violência até os dias de hoje. Só que invés da favela representar a violência de Estado contra populações pobres, como em Canudos, no Rio ela era o lugar a ser violentado pelo Estado.
“O problema é que povo está tudo nas periferia das cidades, está tudo amontoado e isso também foi uma estratégia de guerra contra nosso povo”
Nosso país é assim: os pretos são 75% dos mais pobres e os brancos são 70% dos mais ricos. É didático demais. Não tem como errar. E os pretos são maioria na favela. É nessa periferia, no Rio ou em Maceió, que ocorrem as maiores violências de Estado das polícias contra populações. Agora mesmo em São Paulo, a polícia reprimiu um bairro inteiro, Vila Clara, por protestarem contra o assassinato do jovem Guilherme Guedes (15). No Rio nem mesmo respeitar a ordem do STF de não realizar operações militares em favela no tempo de pandemia, a polícia respeita. Estamos falando de uma polícia que chega a requintes de puro sadismo e crueldade arrancando a cabeça literalmente de seus alvos periféricos, como ocorreu na Bahia.
O ano de 2019 foi o que teve o menor número de mortes violentas da série histórica acompanhada desde 2007, ainda assim o Brasil registrou 41.635 homicídios violentos. Estamos falando de apenas uma parte dos números globais do que chamamos de genocídio.
A esta violência se somam muitas outras: falta de água, de saneamento, de condições de construção de moradia seguras, etc. Periferias do DF, de Porto Alegre, de Salvador, de São Paulo e tantas outras capitais sofreram com ausência de água em suas torneiras em meio à pandemia. Só em São Paulo mais de 200 pessoas morreram por deslizamento de terra nos últimos 20 anos. Não é descuido, é política. Saúde, educação, lazer… o espaço da periferia não possui ação de Estado que favoreça o avanço a soberania do povo, mas se investe em polícias “pacificadoras”, câmeras de vigilância e toda sorte de violência policial.
“Meu vô era agricultor, meu vô plantava e a minha geração já não tem mais nenhuma relação com a terra. (…) É necessário ter essa relação com a terra, é necessário ter essa relação com a natureza, é necessário a gente entender a nossa responsabilidade com a natureza, é necessário entender que nosso futuro tem a ver com a terra e é necessário reconquistar esse território que a gente perdeu. A gente foi se amontoando, se acumulando, se violentando dentro das cidades e perdendo essa ideia de território, de coletividade”
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As periferias se avolumaram com o êxodo rural da segunda metade do século XX. Muita gente pobre saindo das regiões agrícolas para tentar a vida nas grandes cidades. O MST surgiu também de um retorno de parte dessa população que se frustrou com a vida no espaço urbano. Porém a luta pela terra não caiu no gosto dos movimentos negros urbanos e o próprio MST, sendo o movimento social organizado com maior número de pretos no país, não reivindicou a organização da demanda de terra para os pretos. Essa contradição é aprofundada por uma grande onda de colonização de terras por brancos sulistas. Noutras palavras, enquanto uma parte significativa dos povos pretos nas grandes cidades não reivindicam terra, há brancos migrando de regiões no país para tomar terra e fomentar uma economia contra nossos povos.
João Franciosi é um gaúcho de mais de 50 anos que agora se reivindica como “baiucho” por ter muito tempo vivendo na Bahia. Ele chegou ao oeste baiano quando o hectare da terra custava 20 reais. Comprou 200 hectares e levou seus irmãos para produzir soja. Hoje
O que eles chamam de MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), o nosso cerrado, está tomado por latifundiários brancos. Cidades como Luís Eduardo Magalhães em 2010 possuíam 31% de residentes que não eram naturais do estado da Bahia. Ou seja, enquanto não há um grande frente preta em busca de terra, as que existem estão sendo tomadas legal ou ilegalmente por brancos sulistas. E também por estrangeiros. Há uma empresa sul-coreana chamada Doalnara que atraiu 500 estrangeiros para viver no oeste baiano em busca do sonho de “criar nosso paraíso”. São produtores de alimentos orgânicos com finalidade de alimentar o povo da Coreia do Sul. Eles não apenas vieram produzir, mas fundaram uma comunidade com seus valores, seu idioma e etc em pleno cerrado baiano. E este é o problema. Toda expansão branca e estrangeira nas terras agricultáveis é para produzir para o estrangeiro e não para alimentar nosso povo.
Tanto o é que esses brancos sulistas fomentaram um projeto de separação de parte do oeste baiano para fundar um novo estado chamado São Francisco. Esta proposta sempre ressurge ali e acolá mostrando também aí como há um incômoda em pertencer ao estado da capital mais preta fora de África. Há o nem sempre sutil racismo neste tipo de atitude. Isto pode ser observado também na (não)coincidência em que o município de Luis Eduardo Magalhães, o mesmo com 31% de população forasteira, foi um dos 4 municípios onde Bolsonaro venceu as eleições na Bahia, um total de 417 municípios baianos.
Estamos claramente falando de uma migração branca, reacionária, sulista, de descendentes de italianos e europeus para terras de povos indígenas dizimados, para terras que deveriam ser quilombolas. E não se trata de tomar apenas as terras, mas também e, sobretudo, a água. Estamos falando de um dos maiores aquíferos brasileiros, o Urucuia. Cada dia mais utilizado na irrigação para produção de alimentos que não servem à alimentação do povo brasileiro.
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Então as regiões agricultáveis são cada vez mais brancas e de estrangeiros e as periferias cada dia mais entulhadas de pessoas pretas. Terra tem valor por si, ainda que o que gera renda e capital seja fruto do trabalho, ela é um bem no capitalismo. É um meio de produção. Não termos acesso a ela é estarmos com menor condição de autonomia. Há muitas autonomias possíveis, soberania alimentar e hídrica, por exemplo, hoje são fundamentais em meio à pandemia. Estamos falando de um país com 10% da população vivendo sem ter acesso a água e que ainda vê este acesso como se fosse apenas uma demanda ou pleito ao poder público.
O impacto disto chegará nas cidades. A Chapada Diamantina, na Bahia, é o berço de muitos rios necessários para o abastecimento de muitas cidades do estado. A irrigação extensiva e o uso abusivo de agrotóxico (que envenenam os lençóis freáticos, riachos e rios) já gera uma guerra por água na região. A verdade é que a ameaça de abastecimento da capital baiana será uma realidade em anos próximos porque este tipo de ocupação violenta da terra não tem atenção com cuidado com nascentes, matas ciliares e etc. Há anos que o baixo volume de chuva coloca em risco o abastecimento das mais de 5 barragens que alimentam a capital baiana.
Esta nova colonização branca ocorre em terras ancestrais de povos originários, onde vivem povos quilombolas, que passam a ser ignorados frente ao volume de capital que chegam neste processo rápido de ocupação. Trata-se de uma territorialização via agronegócio, concentradora de renda e que reproduz pobreza e desigualdade. Ou seja, é a representação mais caricata do que é a maquinaria colonial brasileira: devasta um bioma, ignora os povos daquele território e gera capital com atividade agrícola exportadora.
Exemplo da importância que a terra tem para os brancos ricos é que Daniel Dantas — banqueiro flagrado em casos de corrupção — se tornou bilionário graças à tomada de terra, sobretudo no Pará. A sua empresa Agropecuária Santa Bárbara possui 500 mil hectares e adquiriu a terra com dinheiro do Estado e através de negócios suspeitos. Esse mesmo empresário que ajuda na destruição da Amazônia no norte também toma território pesqueiro e tradicional em praias e ilhas na Bahia. Claro está que a terra é muito valorosa para os capitalistas ao ponto que um tradicional banqueiro hoje se converte em um grande latifundiário e minerados, ambas atividades com impactos na aquisição de terras.
O latifúndio é o grande protagonista do Estado brasileiro. Os congressistas atuais possuem mais de 107 mil hectares de terras declaradas. Quando falamos de uma bancada ruralista, não estamos falando apenas de lobby, mas de poder contra o povo.
Esse inimigo nós conhecemos bem. O latifúndio é o mais antigo e constante inimigo dos povos no Brasil. Ele tem crescido em meio à diminuição da agricultura familiar, esta responsável por 70% da nossa alimentação. É isso que revela o Censo Agropecuário do IBGE. Estamos falando de uma queda de 9,3% de imóveis rurais dedicados à agricultura familiar, queda de 16,5% de empregados e mais de 400 mil hectares deixaram de ser usados para este fim. Ainda assim, é a agricultura familiar a responsável por 67% dos empregados em regiões agrárias no país.
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Há vários elementos para pensar sobre isto. Atualmente a população urbana representa 84% do total de habitantes no Brasil. O esvaziamento do campo é ao mesmo tempo uma realidade como também uma ideologia — ou uma realidade fantasiosa como fala mestre Joelson — que prega que a vida na cidade é mais cheia de oportunidade e conforto. Que ressalta sempre que o trabalho no campo é pesado e incerto. Acaso ter 13,7 milhões de trabalhadores de aplicativos, motoristas e entregadores (2019) é ter conforto e segurança? Nós estamos vendo casos de pessoas com deficiência de locomoção trabalhando como entregadores para não morrer de fome. Ou mesmo pessoas se prostituindo com todo o risco de pegar e transmitir COVID-19 porque não há outras condições de sobrevivência para elas — é isso ou fome.
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Em meio à pandemia nós estamos percebendo um retorno de pessoas para seus antigos territórios, saindo, sobretudo, das grandes cidades. Há casos de ônibus clandestinos saindo de São Paulo com direção a Pernambuco e Paraíba recentemente. Na Bahia foi registrado ônibus trazendo migrantes retornados e contaminados com COVID-19. Nas comunidades surge ali e acolá a situação de ter de receber parentes — doentes ou não — vindos de grandes centros. São pessoas que abandonaram na marra a ilusão da vida na grande cidade. O que fazer com esses retornados? Há algum programa político para debater este tema? Sobre isto, mestre Joelson comenta:
“Voltar boa parte do povo que foi pra cidade para equilibrar a cidade. As cidades estão desequilibradas. O campo também está desequilibrado porque quando foi muita gente pra cidade desequilibrou o campo. Nós sozinho não tem condição de produzir comida pra esse tanto de gente. Nós precisamos voltar muita gente pra produzir nossa comida”
Nós precisamos descolonizar a ideia de que o campo é um atraso e ruim de viver. Pelo contrário é ali onde é possível uma maioria viver bem. Pensemos apenas no aspecto violência urbana que já apontei acima. Falamos que houve mais de 41 mil assassinatos no país, quase todo esse número é decorrente da violência urbana. Para termos uma comparação, o número global dos conflitos agrários foi de 1.489, segundo o relatório da CPT que acompanha anualmente a violência rural, sendo que 32 são assassinatos. E isso em um ano que o conflito teve crescimento estimulado pelo discurso bolsonarista. É claro que há muitas outras violências que os povos que vivem fora das cidades são submetidos, mas olhando para o crime violento o panorama da periferia é muito mais avassalador.
O campo ou as áreas de produções agrícolas não são mais a imagem que se vendeu para fomentar o êxodo rural ao largo do século XX. A Teia dos Povos possui um programa semanal transmitido pelo youtube diretamente de um assentamento no sul da Bahia. As matas, as florestas, os manguezais e etc são complexos e possuem muitas diferenças e desigualdades regionais. Nem todos que vivem no campo é um produtor de alimentos. Há professoras, médicos, enfermeiros, agentes de saúde, cozinheiros, técnicos em informática, artistas, pintores, mecânicos, etc. É preciso descortinar a ideia de que é um espaço isolado e pouco dinâmico. Mas é, sobretudo, muito capaz de nós impormos nossa territorialidade.
Diferente das periferias onde a milícia ou facção militarizou e domina quase a totalidade dos territórios, o campo ainda não possui um domínio completo — longe disso — e, pelo contrário, existem muitas comunidades que conseguem através da organização fazer frente a estas territorializações violentas. O que garante a segurança é, quase sempre, a organização do povo, o censo de pertencimento e a capacidade que estes construam uma vida em comunidade frente à violência desenfreada desses mercados neoliberais de ilícitos.
Terra é condição de garantia de vida num momento de gravíssima crise no sistema capitalista. A burguesia latifundiária não cederá terras facilmente. Mas precisamos entender que nosso inimigo seria também inimigo da própria nação se não tivessem tomado o Estado nacional para eles. Os latifundiários devem quase um trilhão de reais à União. São péssimos pagadores, recebem todos os anos anistias bilionárias por parte dos governos — reacionários e progressistas — que nos governaram recentemente. Então é urgente que a marcha para a terra entenda que se tratam de inimigos dos povos, que não há que pedir nada a quem tem milhares, milhões de hectares.
Foi muito sangue indígena e preto para que eles tivesses estas terras. Nada pagará os genocídios e os tempos de escravidão. Mas pensamos que talvez terra seja um início de reparação. Se os “condenados da terra” deixam a condição de colonizados e passam a reconquistar território, então mesmo que exista influxos nas políticas públicas, pense bem, seguirão podendo produzir comida, ter acesso a água e renda de seu próprio trabalho, sem patrão, sem senhor.
O tema exige profundidade e vamos escrever mais. No próximo texto vamos discutir como as pessoas que não tem (mais) vínculo com a terra deverão voltar ao seio desta grande mãe. É preciso um programa e muitos cuidados nesta caminhada.
Este texto levanta questões importantes do Brasil atual, dá sugestões para solucionar problemas. Boa matéria para reflexão.
Este texto levanta questões importantes do Brasil atual, dá sugestões para solucionar problemas. Boa matéria para reflexão.
Texto esclarecedor. Conte comigo nessa luta.
Texto esclarecedor. Conte comigo nessa luta.
Muito bom esse texto. Me deixou pensativa sobre muitas coisas, inclusive sobre terra como reparação! Obrigada.