Posted on: 30 de junho de 2020 Posted by: Teia dos Povos Comments: 5

Por Erahsto Felício e Joelson Ferreira

 

Estamos diante de um conjuntura em que a aproximação de um governo fascista nos faz revelar o quão fascista já era o Estado nacional brasileiro em sua sanha sanguinária contra pretos e indígenas. Os protestos seguidos à morte do estadunidense George Floyd pelo mundo — e em menos grau no Brasil — nos revelam que o racismo sempre foi internacionalizado. Contudo o combate ao racismo não possui uma agenda internacional aplicável ao Brasil. E é por isso que eu e Mestre Joelson Ferreira (MST e Teia dos Povos) vamos discutir terra e território em uma série de textos.

O debate sobre reforma agrária não é um eixo estrutural da pauta do movimento negro no Brasil, ou melhor, não é seu carro chefe. Contudo, ninguém questiona o fato que a lei de terras de 1850 seja um dos elementos centrais do racismo do país. O fato de que uma legislação dificultou o acesso à terra de pretos livres e escravizado e aprofundou o latifúndio. A abolição não promoveu qualquer tipo de reparação, como doação de terras devolutas para os ex-escravos. De 1850 para cá, as políticas agrárias não envolveram uma política de distribuição de terras para os pretos. Porém os imigrantes brancos tiveram acesso à terra e se territorializaram, tanto que há cidades “alemãs”, “italianas”, “polonesas” e etc no sudeste e sul do país.

Essa territorialidade com acesso à terras foi negada aos povos pretos que seguiram se desterritorializando nas grandes cidades, perdendo a capacidade de se organizar em nações, como ocorria por todo século XIX nas grandes cidades. Os marcadores de nação dos terreiros, de congadas e outras manifestações tradicionais são um resquício das antigas territorialidades e organizações próprias dos povos pretos. Mas não temos uma cidade “angola”, uma vila “ketu”, um território “benguela”. Tudo isso o racismo impediu. Nós vimos reformas urbanas ceifar o modo como os pretos se organizavam nas principais cidades, seja com a destruição dos cortiços e mocambos no Rio de Janeiro, seja com reformar urbanas de Salvador que retiram os pretos de seus territórios na região central.

O nome favela é emblemático. Conta-se que é o nome do morro que os soldados cariocas ocuparam à frente do Arraial de Belo Monte (Canudos) quando foram combater aqueles rebeldes no sertão baiano (1897). Ao retornar ao Rio, viram que muitos pretos, expulsos de seus antigos mocambos, estavam fazendo barracos em morros. O nome surgiu de uma violência e seguiu uma história de violência até os dias de hoje. Só que invés da favela representar a violência de Estado contra populações pobres, como em Canudos, no Rio ela era o lugar a ser violentado pelo Estado.

“O problema é que povo está tudo nas periferia das cidades, está tudo amontoado e isso também foi uma estratégia de guerra contra nosso povo”

Nosso país é assim: os pretos são 75% dos mais pobres e os brancos são 70% dos mais ricos. É didático demais. Não tem como errar. E os pretos são maioria na favela. É nessa periferia, no Rio ou em Maceió, que ocorrem as maiores violências de Estado das polícias contra populações. Agora mesmo em São Paulo, a polícia reprimiu um bairro inteiro, Vila Clara, por protestarem contra o assassinato do jovem Guilherme Guedes (15). No Rio nem mesmo respeitar a ordem do STF de não realizar operações militares em favela no tempo de pandemia, a polícia respeita. Estamos falando de uma polícia que chega a requintes de puro sadismo e crueldade arrancando a cabeça literalmente de seus alvos periféricos, como ocorreu na Bahia.

O ano de 2019 foi o que teve o menor número de mortes violentas da série histórica acompanhada desde 2007, ainda assim o Brasil registrou 41.635 homicídios violentos. Estamos falando de apenas uma parte dos números globais do que chamamos de genocídio.

A esta violência se somam muitas outras: falta de água, de saneamento, de condições de construção de moradia seguras, etc. Periferias do DF, de Porto Alegre, de Salvador, de São Paulo e tantas outras capitais sofreram com ausência de água em suas torneiras em meio à pandemia. Só em São Paulo mais de 200 pessoas morreram por deslizamento de terra nos últimos 20 anos. Não é descuido, é política. Saúde, educação, lazer… o espaço da periferia não possui ação de Estado que favoreça o avanço a soberania do povo, mas se investe em polícias “pacificadoras”, câmeras de vigilância e toda sorte de violência policial.

“Meu vô era agricultor, meu vô plantava e a minha geração já não tem mais nenhuma relação com a terra. (…) É necessário ter essa relação com a terra, é necessário ter essa relação com a natureza, é necessário a gente entender a nossa responsabilidade com a natureza, é necessário entender que nosso futuro tem a ver com a terra e é necessário reconquistar esse território que a gente perdeu. A gente foi se amontoando, se acumulando, se violentando dentro das cidades e perdendo essa ideia de território, de coletividade”

Dra. Andreia Beatriz, comando Vital da Reaja.

As periferias se avolumaram com o êxodo rural da segunda metade do século XX. Muita gente pobre saindo das regiões agrícolas para tentar a vida nas grandes cidades. O MST surgiu também de um retorno de parte dessa população que se frustrou com a vida no espaço urbano. Porém a luta pela terra não caiu no gosto dos movimentos negros urbanos e o próprio MST, sendo o movimento social organizado com maior número de pretos no país, não reivindicou a organização da demanda de terra para os pretos. Essa contradição é aprofundada por uma grande onda de colonização de terras por brancos sulistas. Noutras palavras, enquanto uma parte significativa dos povos pretos nas grandes cidades não reivindicam terra, há brancos migrando de regiões no país para tomar terra e fomentar uma economia contra nossos povos.

João Franciosi é um gaúcho de mais de 50 anos que agora se reivindica como “baiucho” por ter muito tempo vivendo na Bahia. Ele chegou ao oeste baiano quando o hectare da terra custava 20 reais. Comprou 200 hectares e levou seus irmãos para produzir soja. Hoje

Juntando as fazendas que têm hoje, Franciosi e os irmãos são donos de 90 mil hectares. Entre os produtores da região, são o segundo maior. Produzem em áreas de sequeiro e irrigadas e a soja ocupa mais de 70% das terradas. Mas a área de algodão tem aumentado a cada ano.

O que eles chamam de MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), o nosso cerrado, está tomado por latifundiários brancos. Cidades como Luís Eduardo Magalhães em 2010 possuíam 31% de residentes que não eram naturais do estado da Bahia. Ou seja, enquanto não há um grande frente preta em busca de terra, as que existem estão sendo tomadas legal ou ilegalmente por brancos sulistas. E também por estrangeiros. Há uma empresa sul-coreana chamada Doalnara que atraiu 500 estrangeiros para viver no oeste baiano em busca do sonho de “criar nosso paraíso”. São produtores de alimentos orgânicos com finalidade de alimentar o povo da Coreia do Sul. Eles não apenas vieram produzir, mas fundaram uma comunidade com seus valores, seu idioma e etc em pleno cerrado baiano. E este é o problema. Toda expansão branca e estrangeira nas terras agricultáveis é para produzir para o estrangeiro e não para alimentar nosso povo.

Tanto o é que esses brancos sulistas fomentaram um projeto de separação de parte do oeste baiano para fundar um novo estado chamado São Francisco. Esta proposta sempre ressurge ali e acolá mostrando também aí como há um incômoda em pertencer ao estado da capital mais preta fora de África. Há o nem sempre sutil racismo neste tipo de atitude. Isto pode ser observado também na (não)coincidência em que o município de Luis Eduardo Magalhães, o mesmo com 31% de população forasteira, foi um dos 4 municípios onde Bolsonaro venceu as eleições na Bahia, um total de 417 municípios baianos.

Estamos claramente falando de uma migração branca, reacionária, sulista, de descendentes de italianos e europeus para terras de povos indígenas dizimados, para terras que deveriam ser quilombolas. E não se trata de tomar apenas as terras, mas também e, sobretudo, a água. Estamos falando de um dos maiores aquíferos brasileiros, o Urucuia. Cada dia mais utilizado na irrigação para produção de alimentos que não servem à alimentação do povo brasileiro.

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