Posted on: 8 de maio de 2024 Posted by: bruno Comments: 0

Por Neto Onirê Sankara e Erahsto Felício

Há dois anos nós que vivemos entre o sul e sudoeste da Bahia vivenciamos a catástrofe das inundações por dois anos seguidos (2021 e 2022). Nas cidades perderam-se casas, móveis, automóveis, locais de trabalho, infraestrutura pública e privada. Nos territórios vimos plantações, rebanhos, trabalhos comunitários serem levados pelas águas. Desde o lugar de quem vive da terra, da água, do clima, nós não podemos ter raiva do rio que sobe. Olhamos agora as imagens devastadoras do sul do Brasil e a única raiva que nos chega é o do capitalismo e dos maus governos que deixaram nossa gente nessa situação. Sobrevivemos e temos fé que os povos de luta no Rio Grande do Sul também sobreviverão. É deste lugar de atingidos pelo clima, desde um território de luta por reforma agrária, que decidimos que teremos de enfrentar a catástrofe climática com nossas próprias mãos, sem esperar pelos governos e por maiorias que seguem no papel de vítimas e não de sujeitos da história.


Estamos nas margens do Rio de Contas na Bahia. Viemos para a beira do rio como refugiados da pobreza, da miséria nas cidades. Viemos para cá para plantar alimentos e poder ter alguma dignidade. Não temos outro lugar para ir. Vivemos num assentamento popular, quer dizer num assentamento à margem do INCRA e da política de reforma agrária do Estado Brasileiro. Num assentamento do MST que não vai esperar um documento formal do Estado para construir vida digna. Somos pessoas pretas, pessoas à margem da cidadania oferecida nesse país. Vivemos em tantas margens que nunca soubemos o que é centro. Aqui sofremos com a cheia devastadora do Rio de Contas em 2021 e 2022. E aqui pensamos: como pode o clima virar assunto de especialistas nas universidades se nós, agricultores, trabalhadores da terra, dependemos essencialmente das condições climáticas para poder existir? E foi assim que decidimos que íamos construir nosso ambientalismo radical dos povos, um ambientalismo feito por quem vive no território e construído, assentado, nos fundamentos de quem quer construir soberanias populares numa comunidade sem-terra. Estamos assustados com tudo que vemos, mas não podemos dizer que não fomos avisados. Antônio Conselheiro avisava que o sertão ia virar mar. Muitos pesquisadores, climatologistas, ecologistas, não pararam de falar ao longo dos últimos 50 anos sobre a necessidade de dar limites ao capitalismo para evitar a catástrofe das mudanças climáticas. O que os governos e bilionários fizeram nesse tempo? Então, pensamos nós: se seremos nós os principais atingidos, se nós já somos e seremos ainda mais refugiados climáticos, por que é que não somos nós os protagonistas dessa reflexão?


Sempre olhamos para os céus para plantar. Fosse pela lunação, movimento das nuvens ou pela sensação de umidade, o cuidado da terra que fazer sempre teve no clima um fator decisivo. Não há agricultura sem um olhar para o clima. A historiadora Juliana Meato pensou alto outro dia: nós fomos a última geração que presenciou as estações do ano definidas. E é estarrecedor pensar em como os povos da terra estarão mais vulneráveis sem conseguir olhar para os céus e confiar no seu plantio.


Permita-nos contar a história de um rio que veio a óbito. Perto daqui há uma cidade chamada Ipiaú (BA). Ela tem esse nome porque teria rio com piaus (peixes). Pois bem, abençoada a cidade ficava entre as águas do nosso Rio de Contas e do finado Rio Água Branca. Nossos pais viram o finado rio correndo suas águas e levando seus peixes para mesa do povo trabalhador. Nossas filhas não verão. Hoje quem passa na cidade de Ipiaú só vê ela sendo banhada por um rio. Mataram o outro ou feriram com gravidade. Nas inundações de 2021 e 2022 nós vimos resquícios do velho Rio Água Branca correndo suas águas novamente. O espírito dele permanece ali e nos dá fé que podemos lutar por ele ainda. Ora, nós sabemos que matar um rio é como matar muitos seres que ali vivem e dele vivem. Quem sabe quantos de nós morremos pela metade com a morte de um rio? Hoje sabemos que aqui bem perto, na caatinga baiana, há pontos de desertificação, lugares que deixarão de ser semiáridos para se tornarem áridos. Matamos ali não apenas os açudes, rios, córregos, lagoas, mas até a chuva. Por que esse ódio à água?


Ora, sabemos como gente preta que desde que pisamos forçadamente nessas terras sempre houve um genocídio a acompanhar nossas sombras. Mesmo depois de nos livrarmos oficialmente da escravidão, nunca nos sentimos exatamente livres. Nós conquistamos terras em luta por reforma agrária para nos libertar da miséria. Há tanto tempo esquivando das violências que nos perguntamos: será que genocídio agora não será terceirizado na forma catástrofe climática? Olhem as vítimas, quem vive nas encostas, quem mora nos morros, nas vazões secundárias e terciárias dos rios? Se somos nós, então não há tempo a perder. Precisamos urgentemente de escola de ambientalismo radical que arregace as mangas em luta para mitigar os impactos das catástrofes e que debata isso com nossos povos.


Na prática estamos fazendo isso em regime de urgência desde a pandemia. Destinamos duas toneladas de alimentos aos nossos irmãos pretos prisioneiros na maior penitenciária do Estado em Salvador no pior momento da epidemia de COVID 19, quando sem visitas dos familiares, já faltava alimentos para eles. Fizemos o mesmo com bairros periféricos de nossa mesorregião naquele momento difícil, chegamos a doar cinco toneladas de alimentos durante a quarentena com a produção da nossa brigada do MST. Quando em 2021 as inundações do sul da Bahia começaram, nós montamos uma cozinha comunitária e distribuímos 500 refeições em Jitaúna, 600 em Ipiaú e 3 mil refeições em um dos municípios mais castigados daquela catástrofe que foi Dário Meira. Ao final de nossa cozinha, ainda preparamos 120 cestas de alimentos para deixar com o povo daquele município devastado pelas águas. Pensamos que talvez fosse o momento de deixarmos de apagar incêndios e nos prepararmos de uma vez por todas para enfrentar a catástrofe de forma estratégica.
Assim, estamos nos comprometendo com um ano de atividades intensas aqui no Assentamento Popular Claudomiro Dias Limas (MST, Jitaúna-BA) para construir uma Escola de Ambientalismo Radical Terra de Preto. Vamos começar com a construção de um viveiro de mudas nativas e frutíferas, pois entendemos que não há luta desde a terra sem subir florestas. Com essas mudas iremos reflorestar a mata ciliar do Rio de Contas em nosso assentamento e ajudar a parceiros a fazer o mesmo. Para erguer essa escola precisaremos de uma sala de aula que será uma agrofloresta de um hectare para poder ensinar as crianças e a juventude como fazer florestas, produzir alimentos sem agrotóxicos e gerar renda cuidando do bioma. Queremos ao final desse um ano de atividade conseguir doar 7.500 mudas para companheiros e companheiras seguirem o trabalho de sustentar o céu. Para realizar essas ações, nós estamos contando com o apoio do Instituto Alameda que é formado por companheiros e companheiras que constroem um debate substantivo sobre catástrofe para além do imediatismo liberal.


Para nós esse é o sentido de ambientalismo radical dos povos, quer dizer, uma ação prática ao rés do chão, ali onde a ecologia e as questões fundiárias se encontram. Para nós, cada assentamento, cada aldeia, cada quilombo, cada comunidade ribeirinha, pesqueira, é lugar biodiverso, onde seu povo cuida daquele bioma como zeladores da natureza como bênção divina na terra. Onde os povos vivem é também onde há a melhor experiência de conservação ambiental. Contudo queremos sugerir que sendo muito, ainda é pouco. Queremos dizer que é necessário formar nas comunidades dos povos centros de ambientalismo popular e radical, de onde irradiam práticas de defesa dos aguados, das matas, viveiros para distribuição de mudas, momentos de aprendizagem de educação ambiental com as crianças e jovens e, sobretudo, formação política para enfrentar a catástrofe que o capitalismo colocou contra nós.
Diante da queda do céu, do futuro devastador que se anuncia, pensamos que talvez devêssemos deslocar a pauta da luta por terra. Se antes estávamos ocupando latifúndios improdutivos para produzir alimentos e dar àquela terra sua função social, agora acreditamos que precisaremos ocupar latifúndios que estão destruindo o planeta Terra. Fizemos isso em Jaguaquara (BA) quando criamos o Assentamento Rosemeire Conceição (MST) num latifúndio cujos vestígios de uso eram retiradas ilegais de areia e madeira. Esse deslocamento da luta por terra será necessário se quisermos proteger o planeta Terra!
Então queremos convidar você que está nos lendo. Queremos chamar vocês para construir junto conosco esse ambientalismo popular e radical sem o qual talvez o debate sobre as mudanças climáticas só chegue à nossa gente empobrecida após a devastação na qual serão vítimas. Colocar esse tem na ordem do dia deve ser papel do campo da esquerda. Porém não é possível fazer de qualquer jeito, apenas com palavras e sem um sentido prático da construção coletiva. Permita-nos, então, começar! Vamos avaliar essa caminhada juntos e juntas. O que queremos de fato é que o debate ambiental deixe de ser apenas sobre os riscos abaixo e passem a ser sobre os riscos que correm os poderosos com a construção da nossa unidade possível para defender as condições de vida no planeta.


Desde a transição da Mata Atlântica para a Caatinga, aqui no Assentamento Popular Claudomiro Dias Lima (MST, Jitaúna-BA), nesse outono chuvoso do ano de 2024,


Terra de Preto

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