Por Mariana Cruz, Rafique Nasser e Joelson Ferreira.
Este é o primeiro texto de uma série sobre a importância das sementes de milho crioulo na conquista da soberania alimentar, da terra e território e, sobretudo, da autonomia dos povos.
Um punhadinho. Dedos entrelaçados guardando, na palma de uma mão, 9 mil anos de história e ciência dos povos. Um punhadinho. Terra viva zelando, em berço escuro e quente, passado-presente-futuro. Nossas sementes crioulas cabem em punho cerrado de luta e rebeldia e, na companhia delas, a Teia dos Povos semeia vida e multiplica territórios de autonomia e fartura.
Um punhadinho delas D. Maria Muniz levou para sua roça, na aldeia Catarina Paraguassú, em Pau Brasil/BA. Isso foi o bastante para que durante a 3ª Jornada de Agroecologia, em dezembro de 2014, 50kg de sementes de milho fizessem seu caminho de volta das terras Pataxó Hã-hã-Hãe para o Assentamento Terra Vista. Anos antes, em 2008, Joelson Ferreira foi ao Rio Grande do Sul e de lá trouxe em suas mãos um outro punhadinho. Chegadas ao Assentamento Terra Vista, essas preciosidades foram dadas aos cuidados de dona Tereza e seu André, mestres da agricultura. Plantadas no quintal aos fundos de casa, o que chegou punhadinho rendeu duas grandes bacias. Multiplicadas, tornaram a virar punhados e, de mão e mão, a semente ganhou mundo.
Por onde anda dá, com fartura, alimento de sustança para as crianças, jovens e mais velhos, para bichos de criação, passarinhos e abelhas e é também fundamento de nossas festas, como é o caso do São João. São muitas as fomes que ela sacia. Percorrer seus caminhos, costurados que estão na aliança dos povos, é aprender a história das resistências contra-colonizadoras neste continente. Estas últimas, por sua vez, nada seriam não fosse nossa teimosia em guardar e espalhar as sementes.
Esse mutirão constante que une gente e terra na defesa da vida e do território é a própria substância da revolução que a Teia cultiva. Precisamos estar imbuídos/as de sentimento revolucionário para cuidar das nossas sementes, trabalhar com elas para que se espalhem e se mantenham, preservando o trabalho e o saber de nossos ancestrais e garantindo a fartura para nós e quem vier depois. A semente é a continuidade da vida. E a vida vivida em partilha com todos os seres é o nosso horizonte, assim como é a nossa tradição. Por isso, a revolução brasileira será preparada com as coisas mais simples: o cuidado das sementes, o cuidado com nós mesmos.
A crise potencializada pela pandemia do COVID-19 vai se aprofundar. Este período de grande dificuldade, desemprego, fome e confusão que estamos vivendo, tende a se agravar. Mas não nos enganemos. Neste grande território que chamamos hoje Brasil, as consequências das epidemias sempre atingiram os povos indígenas e pretos, as mulheres e os pobres de forma mortífera. Além disso, desde a invasão, o genocídio dos povos e destruição da natureza caminham juntos. Quando os europeus aqui chegaram, roubaram além de terras e gentes, também os frutos das ciências dos povos. A batata, o milho e as tecnologias de cultivo a eles associadas, foram levados ao continente europeu para salvar sua população da fome. Para nós restou a terra arrasada, o desprezo aos nossos conhecimentos e a guerra contra nossos territórios de resistência. Nessa perspectiva, pouco mudou em 520 anos.
Os inimigos continuam sendo os mesmos: o agronegócio, o Estado, o capital. A violência dos de cima avança a passos mais largos quanto mais nos ludibriamos com suas promessas – quando acreditamos nas soluções fáceis e mágicas oferecidas ora pelo agronegócio e seus pacotes pseudo produtivos; ora pelos governantes e suas esmolas e falsas abolições. Se são sementes híbridas, leis ou benefícios emergenciais, não importa. Em cinco séculos de história pós invasão, o que nos propuseram, mesmo que com nomes diferentes, foram pactos ilusórios que acabaram por nos tirar liberdade e autonomia.
Para construir uma liberdade verdadeira, preferimos percorrer os caminhos abertos por nossos ancestrais, nos aliando aos conhecimentos e formas de luta dos povos indígenas, pretos e camponeses. Não fosse a capacidade de observação, seleção e experimentação dos povos indígenas da América, não conheceríamos a mandioca, a batata, o milho. Não fosse a ciência e a sagacidade dos povos africanos, não seríamos capazes de cultivar, por exemplo, o arroz. Mulheres e homens escravizados brutalmente sabiam que não bastava saber: trouxeram trançadas em seus cabelos as sementes que garantiriam sua continuidade aqui neste continente. A colonização capitalista segue seu curso, mas somos nós que tivemos, todo esse tempo, a capacidade de multiplicar a vida em meio à escassez e à pobreza de espírito. Podemos tomar como exemplo Canudos. O território tornado comum pela aliança dos povos era conhecido na região como o lugar em que os rios vertiam leite, os barrancos eram puro cuscuz.
Das montanhas do sudoeste mexicano, temos a notícia de que os deuses, reunidos em assembleia, decidiram fazer pessoas a partir do milho. Os povos indígenas Ch’ol, Tzeltal, Tzotzil, Tojolobal, Mam e Zoque, descendentes dessa gente, se cansaram de séculos de roubo e opressão colonial e capitalista, e em 1994 formaram um exército e retomaram terras invadidas por latifundiários e suas plantations. Desde então, vem recobrando a sua autonomia, o que passa necessariamente pela construção de um sistema autônomo, agroecológico.
Do povo Guarani da terra Indígena Tenondé Porã, em São Paulo, aprendemos mais uma lição. Em 2018, com o aumento de sua população, eles retomaram o cultivo de sete qualidades tradicionais de milho, de diferentes cores e características. Certa vez, um fotógrafo da Folha de São Paulo pediu uma espiga a uma liderança da comunidade, e esta lhe negou instantaneamente. O milho é sagrado, e o povo Guarani teme que, ao sair do seu território igualmente sagrado, ele seja amaldiçoado e pare de se desenvolver. É preciso muito cuidado com o que vive e nos faz viver.
A capacidade de nos auto-sustentar com abundância não é nem metáfora nem visagem; é o próprio fundamento da (re)existência dos povos. A verdadeira liberdade só é possível com terra, território e soberania alimentar. Ou seja, se da terra depende nosso sustento mais fundamental, se ela é o esteio da vida, não teremos independência enquanto não tivermos poder para construir, junto dela e de todos os seres que nela habitam, nossos territórios de acordo com nossos próprios princípios, anseios e conhecimentos. Queremos multiplicar a fartura que é nossa tradição saber produzir. E, para fazê-lo, nossas maiores aliadas são as sementes crioulas. São elas que guardam, em sua genética e nas histórias que carregam, milhares de anos de estudo, experimentação e seleção; são elas a morada de seres sagrados que nos alimentam também espiritualmente. As plantas que cultivamos há gerações são produtivas, saborosas, resilientes e sagradas – são, enfim, as que melhor sabem se adaptar aos desequilíbrios ambientais e ao nosso paladar; são, com suas diversas bonitezas, o melhor espelho para a gente se mirar; são, por fim, as que melhor estabelecem as conexões entre nós e nossos encantados, nkissis, voduns e orixás.
Nós precisamos andar com nossas duas pernas, andar com o nariz empinado, olhando pra frente. Quem tem terra, território e capacidade de armazenar água, pode trabalhar sua independência. Eu sou filho de agricultor, meu pai sempre teve esse cuidado com a liberdade, com a independência, mas ele sabia que a liberdade tava na terra, depois ele levou nós pra estudar em Guaratinga, mas para ele, para o sentido dele, a liberdade é na terra. Isso é importante. Nós estamos praticando aqui esse processo.
– Joelson Ferreira
O velho ditado “saco vazio não para em para em pé” se confirma a cada dia que passa. Afinal, é muito difícil erguer e manter um mundo novo sem a força e a energia que só o bom alimento, rico em nutrientes e valores, pode trazer. Se queremos avançar na luta dos povos, se queremos resistir neste país, não será por meio apenas de palavras críticas ou de ideias abstratas e vazias de sentido existencial. Nossa tarefa primeira é voltar para a terra e construir a defesa de nossos territórios, pois os povos só serão livres quando a terra também o for. E, com as sementes crioulas, nós poderemos produzir e reproduzir vida. Esta é nossa tarefa permanente. Só assim, poderemos reconstruir nossa existência com autonomia, liberdade e dignidade. Por isso, a agroecologia é nosso instrumento de moderação e transformação. É a partir dela que podemos superar as fragmentações impostas aos povos oprimidos, fortalecer o diálogo entre nossas ciências e múltiplas agriculturas e retomar nossa capacidade de produzir o alimento. A retomada de uma cultura alimentar baseada no milho, originado da semente crioula, é, mais que tudo, uma estratégia pelas nossas sobrevivências e um retorno ao exercício do bem viver, com o qual nossos ancestrais se mantiveram de pé e organizaram a sua vida. A revolução será com as sementes, ou não será.
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O Canal Rural comemorou, em 2019, o milho como uma “nova história de sucesso no agronegócio brasileiro”. Mas, qual tipo de milho é esse? Qual semente lhe gerou? Pra onde vai e como chega nas nossas casas? E, não menos importante, quais as configurações históricas têm as terras onde a agroindústria constrói o seu poder, corrompendo o Estado nacional para atuar em seu favor? Com o quê queremos alimentar nossos corpos e espíritos?
Em artigo, a EMBRAPA informa que, nas últimas décadas, essa produção se tornou a principal renda do agronegócio mundial. De acordo com dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), divulgados no mesmo ano da comemoração do Canal Rural, o milho exportado foi medido em 44,9 milhões de toneladas, o que deu ao Brasil o título de maior produtor de alimento no ano, superando, inclusive, os EUA.
Se este cultivo tem se tornado tão potente, como se explica o fato de que, de acordo com o relatório internacional “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2020″ (State of Food Security and Nutrition – SOFI), 690 milhões de pessoas passam fome no mundo?
Esses são eixos sobre os quais pretendemos nos debruçar nessa série de textos que serão escritos com o objetivo de promover o debate sobre os temas que nós da Teia já temos abordado há nove anos: Terra, Território e Soberania Alimentar. Entremos nessa seara, façamos esta discussão, plantemos no chão e em nós a semente da liberdade e a coragem para compor as estratégias necessárias para construí-la. Em mutirão.
LEIA OS OUTROS TEXTOS DOS CAMINHOS DA SEMENTE:
O Caminho das Sementes #4: REDE DE SEMENTES – UMA CONSTRUÇÃO NECESSÁRIA PARA UM TEMPO URGENTE
Caminho das Sementes #3 – SOMOS COMO SEMENTES
CAMINHOS DAS SEMENTES #2: O Agronegócio Transforma o Milho em Ração, Entrevista com José Maria Tardin.
Parabéns pela intrepidez nessa resistência! Isso nos inspira, nos motiva e nos ajuda!
MUITO BOOOOOM!!!!
Belo exemplo de resiliência, resistência e vida!
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Olá, tenho interesse em ter espigas do milho crioulo.