Por André Muniz*
PARTE I
Conflitos de terras são comuns na arena política, e recentemente tem sido cada vez mais. Enquanto garimpeiros, madeireiros, latifundiários, hidrelétricas e grandes empresas buscam cada vez mais lucrar em cima da destruição dos ecossistemas e invadir e tomar as terras onde vivem povos e comunidades tradicionais, essas pessoas: indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais sem terra, por outro lado, lutam para preservar e proteger o lugar onde vivem e de onde retiram seu sustento, retomando terras perdidas quando necessário.
A preocupação com a territorialidade não deveria ser apenas uma questão política, mas também teológica. A Bíblia Sagrada, no Antigo Testamento, apresenta diretrizes para a posse de terras na comunidade de Israel, e ainda que a tradição cristã entenda que a lei mosaica não deve ser aplicada diretamente no mundo contemporâneo, ela reconhece a Torá como palavra de Deus, divinamente inspirada e de onde se podem retirar princípios e lições em todo e qualquer período da história.
Terras, territórios e territorialidades
Cada sociedade constrói uma relação única com o ambiente em que vive e as fronteiras e relações de poder que o delimitam, bem como suas próprias concepções acerca desse todo relacionado. Sendo assim, definir os termos “terra” e “território” é uma tarefa complexa, pois os povos indígenas e quilombolas vivem tal significação de formas variáveis entre si e mais ainda em relação a negros e brancos em contexto urbano. Em busca de definições amplas, mas igualmente unânimes, Samara Carvalho Santos (2019) explica que “o território guarda relação com a ancestralidade indígena, com o cosmos e tudo aquilo que lhe é sagrado. Já a terra, é o espaço físico que compõe esse território, e isso justifica a garantia de direitos aos indígenas sobre elas, uma vez que se constitui como espaço essencial para a prática e manutenção de sua cultura no presente e para as gerações futuras”.
Outro conceito importante para a discussão é o de territorialidade, que “pode ser compreendida como um conjunto de condutas que ajudam a compor o território, que por sua vez, é um produto histórico de processos sociais e políticos” (SANTOS, 2019). A partir desses significados, teríamos que o território do Antigo Israel, por exemplo, compreendia a região que foi prometida à descendência de Abraão por uma divindade, conquistada em batalhas épicas e lar dos ancestrais das tribos israelitas. Terra é a porção física desse território, onde as pessoas erguiam suas casas, retiravam seu sustento e viviam suas vidas. Quando Israel precisava defender suas fronteiras de nações invasoras ou quando anexava novas porções de terra ao seu território, estava exercendo sua territorialidade.
Os contextos do povo de Israel e suas leis
Israel, originalmente formado por clãs nômades, viveu um período de quatrocentos anos de escravidão no Egito, segundo conta a sua própria história. Voltaram ao nomadismo logo em seguida, tentando se estabelecer na região de Canaã, onde se envolveram em alianças e conflitos com a população nativa, ora dominando, ora sendo dominados, entre os séculos XII a X a.C. Conseguiram um curto período de sucesso com o Reino de Davi, mas menos de cem anos depois, a nação foi dividida entre Israel e Judá e ambos sucumbiram ante os Impérios que os rodeavam. No curto período de tempo em que os israelitas possuíram seu próprio território, contudo, o Pentateuco orientou como deveria ser o uso correto da terra, segundo os padrões sociais, culturais e teológicos do povo de Javé.
O nomadismo e as ameaças constantes influenciaram grandemente a construção do pensamento israelita em torno da terra. Como apontado pelo teólogo Gerstenberger (1976) “A esse povo não foi possível desenvolver tranquilamente uma certeza de possuir terra e pátria. A posse dos meios de sustento sempre esteve ameaçada. Desenvolveu, porém – talvez como substitutivo –, uma fé de ser eleito por Deus”. Em contrapartida, a estabilidade se tornou uma esperança escatológica, produzindo uma promessa de que um dia Israel teria para si um território eterno. E ainda assim, nos curtos períodos em que os hebreus tiveram posse de um território, desenvolveram leis que serviam tanto para a manutenção da terra que possuíam no momento, quanto a que lhes era prometida para o futuro.
Tais leis podem ser encontradas principalmente na Torá. O livro de Levítico, no capítulo 25, ordena que a cada seis anos a terra descanse e nada seja plantado nela; e a cada quarenta e nove anos, façam “soar a trombeta por toda a terra de vocês. Santifiquem o quinquagésimo ano e proclamem liberdade na terra a todos os seus moradores. Esse será um ano de jubileu para vocês, e cada um de vocês voltará à sua propriedade, cada um de vocês voltará à sua família” (v. 9-10). Quando ocuparam as terras de Canaã, estas foram distribuídas entre os israelitas, segundo as suas famílias, clãs e tribos (Js 11.23), de modo que não deveria haver israelita sem-terra. Porém, reconhecendo que alguém poderia empobrecer (seja por maus negócios ou questões ambientais, como pragas e secas) e, por isso, vender a sua terra ou até a si mesmo para sanar suas dívidas, a cada quarenta e nove anos todo israelita escravizado deveria ser liberto, e toda a terra devolvida ao seu proprietário original.
Todavia, não vivemos mais na nação teocrática de Israel. Quais são, portanto, os princípios que nortearam o estabelecimento do Ano do Jubileu, e como aplica-los na contemporaneidade, nos Estados laicos da América Latina? Em Levítico, a ordenança de Javé é “que ninguém explore o seu próximo; cada um, porém, tema o seu Deus; porque eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (v. 17). O temor a Deus é, portanto, o que deve impedir os israelitas de explorarem seus irmãos, visto que Ele é o Senhor, justo, misericordioso, amoroso e fiel. “Também a terra não será vendida em definitivo, porque a terra é minha; pois vocês são para mim estrangeiros e peregrinos” (v. 23).
A conclusão final é de que para os israelitas a terra pertence ao Senhor, não a humanos que possam possuí-la de fato para si, e deve ser administrada conforme a sua vontade. A terra não era um fim em si mesma, mas existia para que as pessoas tivessem de onde tirar seu sustento, alimento e moradia. “Deus quer que todos os homens sob seu controle tenham uma vida plenamente realizada. Isso leva automaticamente a reconhecer a dimensão social da posse de terra bem como de quaisquer outros patrimônios” (GERSTENBERGER, 1976). A Lei deveria ser cumprida rigorosamente pelos israelitas, “para que não haja pobre no meio de vocês. Porque o Senhor, o Deus de vocês, os abençoará ricamente na terra que lhes dá por herança, para que vocês tomem posse dela, se apenas ouvirem atentamente a voz do Senhor, seu Deus, cumprindo todos estes mandamentos que hoje lhes ordeno” (Dt 15.4-5).
Apesar das diretrizes legais de Israel, a narrativa bíblica mostra que, aparentemente, nenhuma dessas ordenanças foi cumprida. A denúncia dos profetas era “porque vendem o justo por dinheiro e condenam o necessitado por causa de um par de sandálias” (Am 2.6). O descaso com os pobres e oprimidos era entendido pela literatura profética como uma das principais causas do castigo divino, representado pelo cativeiro na Babilônia, que pode ser visto claramente nos oráculos pré-exílicos, como Amós, Oseias, Jeremias e Isaías.
*SOBRE O AUTOR
André Muniz é graduando em Teologia pela Faculdade Latino-americana (FLAM) e estuda psicanálise no Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica (IBPC), foi missionário pela JOCUM e hoje é membro da Primeira Igreja Batista de Paracambi. Seu Twitter profissional é o @leitormuniz e o instagram é @leitordeandremuniz.
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