Posted on: 11 de novembro de 2022 Posted by: michele Comments: 0

Coral Arai Ovy. Imagem: Deriva Jornalismo

Fim de semana de 2 a 4 de setembro de 2022. Sol de inverno, brisa leve e canto dos pássaros, amparo das montanhas e da vegetação da Mata Atlântica. Neste clima, reuniram-se na Tekoa Ka’aguy Porã, aldeia da nação Mbya Guarani em Maquiné, integrantes de territórios em luta, retomadas, aldeias, ocupações e coletividades da Teia dos Povos em Luta no RS para o Encontro da Teia.

Durante três dias, as mais de 50 pessoas presentes, vindas de distintos territórios e ações de luta, do Quilombo Coxilha Negra em São Lourenço à Casa do Estudante Indígena em Porto Alegre, se colocaram em convívio. Troca de ideias, fazer conjunto, mutirão, rezo, respiro, serigrafar, cozinhar, conspirar.

Imagem: Deriva Jornalismo

De braços e corações abertos, sabendo da potência do apoio mútuo, Cacique André, liderança da Tekoa Ka’aguy Porã e sua comunidade acolheram quem foi chegando na sexta. Barracas se armando tendo o fogo sempre aceso da fogueira da cozinha guarani como farol.

A manhã de sábado foi de mutirão agroecológico. Roçar a área de manejo que vem sendo trabalhada há quatro anos pela comunidade Guarani e apoiadores. Após o almoço, a graça, o encanto de sentarmos sob o sol para prestigiar o coral Arai Ovy, orientado pelo professor Whera Xhunu.

Em seguida, na roda de conversa do sábado à tarde, formou-se um círculo no gramado ao lado da Escola Autônoma Teko Jeapo, bioconstruída num intenso processo de articulação de redes. Nos apresentamos e falamos sobre a Teia dos Povos. André contou a história de como retomaram aquelas terras. Área da FEPAGRO, uma fundação ameaçada de extinção pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Enquanto parlamentares discutiam a medida de venda do patrimônio público, iniciativa do poder executivo, em janeiro de 2017, dezenas de Mbya Guarani retomaram seu território ancestral. O vale de Maquiné é repleto de Mata Atlântica abundante e diversa, morada ancestral da Nação Guarani.

André Benites abre a roda de conversa. Imagem: Deriva Jornalismo

André narrou a história em língua portuguesa, “uma língua que engana até quem é falante nativo dela”, uma linguagem que confunde porque são confusos os não-indígenas – ou juruá, na língua Mbya Guarani. O cacique conta que a retomada daquele território deu início a uma série de outras retomadas indígenas no Estado, como na Ponta do Arado, em Porto Alegre, no município de Canela, em Cachoeirinha e em São Francisco de Paula.

“A retomada”, contou André, “é uma experiência de união e solidariedade, porque só a união e a solidariedade podem nos garantir uma boa luta”. Por isso, mais do que ação direta pela autodemarcação, retomar é, segundo o cacique, “a nação Guarani cumprindo nosso destino: cuidar da natureza, garantir um futuro pra humanidade. É por isso que a gente ocupa e cuida da terra: não para nós, mas para todo mundo, até para os juruá. Se não tem espaço para nós, não vai ter cuidado com a terra. E aí não vai ter espaço pra mais ninguém”.

Em um acampamento de convívio em que o mutirão foi atividade das manhãs e em que a cozinha, a comunicação, a limpeza, a ciranda foram autogestionadas através de grupos de trabalho, pensarmos nosso envolvimento nas tarefas para além de referenciais capitalistas é essencial. Para o cacique André, o trabalho é uma noção anti-Guarani por excelência, porque os Mbya Guarani “trabalham, sim, mas trabalham um pouco e vão fazer outra coisa – gritar, brincar, rir, chorar também”. E, ainda, trabalha com um compromisso consigo e com os seus, nunca um compromisso com um outro que se adona.

“Pra nós, estar bem é todo mundo estar bem. Ganhar ou conseguir algo é conseguir para todo mundo. Ninguém é melhor do que ninguém porque tem espaço pra todo mundo”. E assim todas e todos se sentiam, na Tekoá, em casa, “porque essa terra é de vocês também e a Nação Guarani é imensa, cabe todo mundo, couberam até os portugueses que invadiram aqui e que os Guarani acolheram, ajudaram, sem saber o que viria depois”.

A luta dos povos pela vida, ensinam os povos em retomada, não é um recomeço ou uma novidade – “para nós, não existe novidade” -, mas uma continuação da histórica luta indígena, quilombola, negra e popular, uma luta contra o terror, uma luta para expandir o mundo e garantir o futuro.

Angélica Domingos, liderança Kaingang, Imagem: Mima Freitas.

E foi isso que contou Angélica Domingos, mestra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, liderança Kaingang da histórica ocupação que inventou um novo território em Porto Alegre, retomou a UFRGS e criou a Casa do Estudante Indígena no Campus Saúde da Universidade, no começo de 2022. “Não queríamos viver lutando, gostaríamos de só viver. Mas como impedem de termos nossas vivências, precisamos lutar”. Angélica lembra que os indígenas foram alvos do maior extermínio da história e ainda seguem aqui. “Todo lugar onde a gente está é nosso território. Cada passo que a gente dá, não dá sozinho, carrega todos os Kaingang junto, carrega todos os povos indígenas junto”.

Cenira viajou quase 350 km, do interior de São Lourenço do Sul até a Tekoa Ka’aguy Porã em Maquiné. “Eu venho do Quilombo Coxilha Negra”. No seu território, uns dias antes (18 a 20 de agosto), aconteceu o Encontro da região Sul da Teia dos Povos em Luta no Rio Grande do Sul. “Agradeço a presença de quem está aqui agora e esteve lá. E convido quem não foi a conhecer o meu cantinho.  É um cantinho mesmo. Na real, nós moramos em um quilombo, né, então somos muito unidos. Ninguém ficou na rua, todo mundo arranjou um cantinho para dormir, comida teve à vontade”.

Se referindo ao que escutou de André, Cenira diz que seu povo passa por dificuldades parecidas. “Eu nunca tinha ido à Brasília, mas recentemente fui e pude perceber infelizmente que, por causa do governo Bolsonaro, mas não só por causa dele, nós passamos pelas mesmas necessidades e sofrimentos”.

Cenira fala e Alass sorri logo atrás. Imagem: Mima Freitas

Cenira contou um pouco mais do seu entendimento e realidade enquanto mulher quilombola:

“Eu sou daquelas pessoas que em qualquer lugar que eu for eu bato na mesma tecla: vou sempre priorizar a educação. Educação com os mais velhos, que eu sempre ensino para os meus filhos. E que meu pai e minha mãe ensinaram também. Educação para saber se colocar em certas situações. Porque a primeira coisa que as pessoas falam é que o negro não tem educação, o indígena é burro. É disso que nós somos taxados. Mas muitas vezes sabemos mais do que a pessoa. E não é desvalorizando vocês. Mas chega lá em casa e pergunta como é que se planta uma batata inglesa. […] Eu sei muito bem que pode chegar um universitário, um professor lá, que eu sei que ensina diferente. Eu não preciso de um caderno, de olhar para a fórmula do adubo, para um calendário para eu saber em qual lua se planta. Eu simplesmente vou pegar uma enxada, pegar a batata, ir lá para a lavoura e vou explicar manualmente. E isso, de cuidar da floresta, vocês [Guarani] ensinam muito bem. Quero parabenizar vocês por isso e pelo acolhimento”.

“Nunca deixe os outros pisarem em cima dos nossos filhos, desvalorizando eles por serem negros, ou indígena. Segunda coisa, precisamos nos juntar muito mais. Que esse encontro aqui seja só o começo. Porque eles acham que a gente é burro demais, que a gente não pode se agilizar para mudar este país, para lutar pelo que a gente realmente quer. E o que realmente a gente quer? Vocês já se perguntaram? Eu sei o que eu quero e posso falar para vocês. Quero faculdade para mim e principalmente para os meus filhos. Mas não para eles ficarem atrás de uma mesa obedecendo o patrão, que quando um companheiro de causa peça ajuda ele tem que fingir que não vê. Não, precisamos nos unir para um levantar o outro”.

“As mulheres devem assumir cargos importantes. Devemos tomar a frente”.

“Quem tem sua terra que mantenha ela porque, pelo jeito que está indo, nós vamos ficar sem nada e refém de um sistema que quer que a gente trabalhe pelo que mal dá para comida”.  

“Eu sei que para chegar onde eu quero algumas coisas precisam mudar. Outubro está aí, precisamos ser conscientes, mas não depender de governo, eu sei que eu preciso agir para estas coisas mudarem”.

Marcelino contando da retomada Kurity em Canela. Imagem: Deriva Jornalismo.

O Cacique André saudou a presença do Karai Alexandre, ancião que participou do evento representando a Retomada Mbya Guarani de Cachoeirinha (na área conhecida como Mato do Júlio). Para André, a presença de Alexandre ali era muito fortalecedor para o seu povo. “Conheço ele há muito tempo. Agradeço por sempre dar força para mim e por ter tido coragem de fazer a retomada em Cachoeirinha. Nossa nação indígena não vai retomar o Brasil, mas vamos retomar alguns cantos para poder morar também. É isso que está rolando aqui no sul, o que me deixa muito feliz”. Segundo André, após a retomada de Maquiné em 2017, aconteceram mais de 100 pelo sul do País.

Uma delas é a Retomada Mbya Guarani no município de Canela, representada pela liderança Marcelino. “Fico muito feliz de estar aqui para aprender um pouco, levar para minha comunidade as informações daqui. Os povos indígenas estão sofrendo muito. Lá em Canela vivemos essa situação, onde o governo pede reintegração de posse. Estes territórios eram dos povos, antes de 1500, os Guarani viviam com tranquilidade, sem perturbação, mas hoje em dia é muito difícil, não sabemos como vamos seguir, por causa do juruá. Mas estamos lutando: retomar a terra é só retomar a herança dos parentes do passado”.  

Michele Junana relembra sua história de ancoragem no Vale de Maquiné. Chegou justamente pela Tekoá Ka’aguy Porã, durante o Encontro Regional dos Grupos de Agroecologia da Região Sul em 2019. Após isso, conheceu o Território Junana, “recém nascido” no formato que tem atualmente, e segue lá até hoje “nesse aprendizado cotidiano de reterritorialização, de voltar a se conectar com nós mesmos e com a natureza, que também somos nós”. Para isso, segundo ela, aprende muito com as matas e com os povos indígenas, especialmente o povo Guarani, que são “amigues e vizinhes” do Junana. “Estamos aprendendo a se organizar, a rezar, a lutar, estamos aprendendo com as medicinas da floresta”.

Galera doTerritório Junana, coletividade maquinense. Imagem: Deriva Jornalismo

Michele ainda comentou sobre a organização do Encontro: “É uma honra para nós estar aqui neste encontro e compor a Teia dos Povos em Luta do RS. É muito bonito ver este encontro acontecendo com diversos povos, indígenas, negros, várias coletividades, fazendo agrofloresta, praticando agroecologia, caminhando do jeito que a gente acredita, com confiança, se apoiando. Só pelos laços organizativos que se criaram, este encontro já está valendo, porque mesmo sendo um encontro simples, exigiu tempo, dedicação, cuidado”. Ela comentou que após ter colocado bastante energia nesse encontro vai precisar dar um tempo pra se dedicar a outras atividades, “mas quando for acontecer o primeiro encontro de mulheres da Teia dos Povos em Luta no RS, me chamem”, provocou.

Sebastian, do Território Okupado dos Mil Povos, em Porto Alegre, e que também faz parte da Banca da Teia dos Povos em Porto Alegre, trouxe um relato sobre as batalhas judiciais que o território enfrenta e também alertou sobre as ameaças que a banca já sofre da Prefeitura de Porto Alegre. “A banca é um ponto de encontro dentro da cidade, entre os povos quilombolas, indígenas, da periferia. Precisamos fortalecer este espaço, que já sofreu ameaças da fiscalização. No entanto, com nossa espiritualidade, nossa força de articulação, nossa estratégia, nós vamos reverter isso”.

Sebastian, do Território Okupado dos Mil Povos. Imagem: Mima Freitas

Na sua fala, Sebastian ainda comentou sobre a inspiração que é a intenção do mestre Joelson Ferreira, da Teia dos Povos da Bahia, de criarmos as nossas Universidades dos Povos. Também ressaltou os enfrentamentos internacionais: “não só no Brasil tem povos indígenas, em toda América Latina tem povos em guerra hoje. No território dominado pelo Estado chileno, nossos irmãos Mapuche estão há mais de 20 anos em um forte enfrentamento, com companheiros tendo 30 anos de prisão decretados por cuidar da terra, dos rios“. Ressaltou a importância de estar no Encontro da Teia, construindo a Teia e a luta como um compromisso histórico. “Contra nosso inimigo, o Estado, as polícias, as leis, que só estão ali para reprimir nosso povo pobre. A nossa pobreza é só econômica, como disse o André, mas nossa riqueza cultural, espiritual, ancestral é muito forte”.

Alass Derivas, do Deriva Jornalismo, relatou sua presença na vigília do Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre, naquela semana do Encontro. O Quilombo foi invadido por homens armados escoltando outras pessoas que tentaram ocupar casas ainda em construção dentro da comunidade. As pessoas presentes no Encontro prestaram sua solidariedade e exigiram a titulação e a garantia da integridade dos quilombolas.

Manifestação coletiva de apoio ao Quilombo dos Alpes. Imagem: Deriva Jornalismo

Alass ainda festejou o encontro por entender se tratar de uma sequência. “Estamos nos conhecendo, criando laços. Só estamos aqui porque os parentes do André retomaram esta área em 2017, porque aconteceu retomada a Casa do Estudante Indígena na UFRGS em Porto Alegre, porque os descendentes da Cenira resistiram no Quilombo Coxilha Negra. E também nós que fomos construindo nossa caminhada de luta até chegar aqui para conviver. E justo isso me alegra, o convívio. Assim vamos aprendendo outras noções de cuidado, de relação, de trabalho. Estamos aprendendo tudo aqui e não tem salvador para as crises que vem aí. Vão ter outras pandemias, vão ter outras fomes e é só nós por nós. Estamos aprendendo a se articular, trocar ideias, autogestionar encontros assim. Aprendendo a se organizar enquanto Teia, a prestar solidariedade: quando um território for atacado, como nós nos somamos em solidariedade, tanto em articulação, mas também enquanto corpos? Importante fazermos cada vez melhor esses mutirões para termos comida para levar para os lugares em conflito, para garantir as vigílias e os convívios”.

No fim do primeiro dia, troca de sementes, de saberes e de afetos. Em noite fria, na volta da fogueira, sob o céu pulsante de estrelas, o violão, o maracá, o tambor, o berimbau soaram em rezo circular de fortalecimento das almas.

Imagem: Guto Sol

Domingo pela manhã, café coletivo, novamente o manejo em mutirão na agrofloresta. Antes do último almoço, sentamos ao sol para discutir sobre os desafios do nosso autossustento e como buscarmos o fortalecimento financeiro das movimentações da Teia dos Povos em Luta do Rio Grande do Sul e dos territórios que a compõem. Esboços de uma economia em rede. Retomamos a I Jornada de Agroecologia em Santa Maria, os encontros anteriores a Maquiné. Falou-se sobre a experiência da Banca da Teia dos Povos no Parque da Redenção em Porto Alegre. Saídas que vamos somando na busca de potencializar nosso convívio. Cacique André comentou da necessidade de construirmos em coletivo, à beira da estrada na área da retomada, uma casa de barro que sirva de loja do artesanato Guarani. Demanda coletiva para desenvolvermos enquanto Teia.

Imagem: Mima Freitas

Além dos papos e do convívio, a Tekoa Ka’aguy Porã foi espaço para exposição de artesanato Mbya Guarani, exposição de fotos de Deriva Jornalismo e de Michele Junana, que registrou a luta das mulheres zapatistas no México. Também foi espaço para o trabalho da Ancestral Serigrafia, que através das estampas em camisetas traz aporte financeiro à movida coletiva e funciona como ferramenta de propaganda e de arte da luta. 

Segundo o Cacique André, a Teia dos Povos é algo “em que a gente se amarra, uma teia que nos segura e nos dá força”. O povo Guarani da Retomada de Maquiné ensina que a lógica civilizatória do capitalismo, do mundo juruá, é uma lógica sem sentido, “que acha muita coisa, que vive para o bem estar dos outros, não para si, e que se adona de tudo – das coisas, das pessoas e da natureza”. E é na contramão desta lógica, em embate ético e político com o Estado e com as forças da ordem que André, “falando pelos Guarani, falando pelos indígenas”, convoca os povos amigos, os coletivos de luta, as outras retomadas e assentamentos, as trabalhadoras do campo e as periferias das cidades para construir “laços, juntando amizade e força”, instituindo uma outra relação com o território em defesa da vida.

E, assim, se enxergando, se escutando, seguimos costurando esta Teia de afeto e de luta. 

Imagens: Mima Freitas

Acompanhe a Teia dos Povos em Luta no Rio Grande do Sul através do site e das redes sociais:

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Mais fotos do Encontro da Teia dos Povos RS em Maquiné:

Fotos de Alass Derivas

Fotos de Mima Freitas

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