Posted on: 19 de fevereiro de 2021 Posted by: Beatriz Vencionek Comments: 2

Capa por Beatriz Leonardo – Cianotipia em papel aquarela

Sair do subúrbio carioca e vir para o Assentamento Terra Vista, no Sul da Bahia, foi um acerto de contas comigo mesma. Além de ser uma tática de sobrevivência para não vir a sucumbir ao catastrófico Estado do Rio de Janeiro, foi também uma emancipação política e humana dos excessos do individualismo do capitalismo tardio. Para que eu me emancipasse desse egoísmo e reconhecesse esse caminho em direção à liberdade, tive também que reconhecer o movimento desenfreado que o Estado propõe para as cidades e da sua consequente precarização, principalmente no Rio de Janeiro.

A cidade está assolada pela crise dos bens de vida, desde o abastecimento de água, alto preço da energia e de bens de consumo como o gás de cozinha e aumento do preço da cesta básica. Antes desse para comparar com o salário mínimo e fazer uma média do custo de vida, mas a cidade bateu o recorde tanto de desemprego quanto de trabalhadores informais – eu inclusa – enquanto o governo se preocupava em aparelhar a polícia (a mesma que deixa existir um grupo de matadores de aluguel formado por funcionários da própria polícia, além de bombeiros e seguranças particulares e sobe as favelas para matar  12 crianças no ano) e sucatear o sistema de saúde durante a epidemia de coronavírus.

O liberalismo, nas suas mais diversas formas, foi finalmente despido. O mais asqueroso despotismo está aí, em toda sua brutalidade e xucrice, controlando a cidade que já foi a capital e – sem exagero nenhum – o país inteiro. O Estado exerce sua forma de substrato decompositor que tomou conta dessa massa morta e fraca que é a população sob a consciência burguesa. Agora, mais que nunca, isso ficou claro. As pessoas adoecem e perecem em covas verticais e o discurso oficial é de aceitação do desastre: houve 1.556 tiroteios no entorno de unidades de saúde do Grande Rio (Ao menos 4 vezes por dia houve tiroteio nos arredores de unidades. 1.742 delas foram afetadas) e do próprio consumo do desastre: remédios milagrosos comprovadamente sem nenhuma eficácia e diversos paliativos para que se continuem as festas, o futebol e o comércio

A vida real sob o capitalismo é uma fantasia em que as mercadorias nos controlam no mais íntimo do nosso cotidiano, não percebendo que suas ideias reinam sobre as relações sociais. Olha o ano de 2020 por exemplo: foi comum que fantasiássemos com a cura, em voltar a nos relacionar com familiares e amigos, frequentar nossas rodas, viajar… Olha como isso tudo já mudou! E não é por impulsos individuais, a motivação veio e continua vindo do governo. Quando saí do Rio, o Brasil registrava em torno de 162.638 mortes e mais de 5 milhões de casos, hoje os casos mais que dobraram e os óbitos foram para 242.457. Seja lá as medidas de segurança que pensássemos de forma internamente coerente para todos nós, era efetivamente impossível para o mercado. Mimetizamos o absurdo da modernidade capitalista.

Além do mais, enquanto o Estado, inimigo do povo, trabalha arduamente para semear a dúvida contra as ciências biológicas e sociais, lançando suas cortinas de fumaça – não aquela declarada pelos influenciadores da grande mídia, mas a de combustíveis fósseis, de metano, a de incêndios nas florestas – o que fizeram os nossos ditos líderes populares? Nossa vanguarda intelectual? Se descabelar com a solidão do alto dos seus sobrados, se indignar com as atitudes da população que fazia nada mais que seguir as ordens do governo federal, gritar pelo impeachment até que a primeira brecha fosse aberta para sairem do país e assim continuar sua árdua tarefa de oposição, com a sua emancipação desse solo morto em que habitamos.

Não dá para procurar emancipação humana ou política dentro do capitalismo. De fato, não tem como esperar uma ruptura vinda da burguesia, visto que ela nunca a fez e apenas sonha com um novo american way of life, uma nova razão rasa para abundâncias descartáveis; um moralismo comprável com o eterno upgrade do consumo responsável. De novo a fantasia. E foi a partir dela que comecei na jornada de me abrir para a crítica, para me despertar do sonho e explicar suas ações. A fantasia é uma modalidade que, ao construir essa totalidade coerente, mas efetivamente impossível, mimetiza o “absurdo” da modernidade capitalista. É hora de transformar o fantástico e os sonhos na nossa arma de classe.

            Um grande escrito de Marx fala que “ o mundo, há muito tempo, já possui o sonho de algo de que necessitará apenas possuir a consciência para possuí-lo realmente” [1]. Torna-se consciente disso, é também uma possibilidade para todos nós; uma propriedade da realidade e da situação atual, não é algo a ser alcançado por um decreto do governo ou por um pensamento de influencer. Esse é o desafio que os avanços do nosso próprio sistema, o capitalismo tardio, interpõem entre nós e o futuro.

            Para uma cultura viciante como a nossa, talvez seja mais conveniente expressar isso em um novo idioma e sugerir que não é fácil nos fantasiarmos como livres de nossos vícios insustentáveis, nem imaginar um mundo sem simulações que o torne habitável para nós. Mesmo que haja essa possibilidade, a intenção não pode ser essa. O destino que deve ser escolhido não deve tolerar absurdos para que se restaure uma antiga situação tranquila de um Estado já em forma de cemitério, não é o destino o qual sua população aceita voltar a ser escrava, calada, desde que o patrão se mantenha calado também e não transtorne seu dia a dia.

Nas palavras de uma das minhas escritoras preferidas, a genial Ursula Le Guin: “Para fazer um novo mundo, você começa com um antigo, certamente. Para achar um mundo, talvez você precise ter perdido um. Talvez você precise estar perdida. A dança da renovação, a dança que criou o mundo, sempre foi dançada nas bordas das coisas, no limite, na costa enevoada” [2]. A tentativa de construir um sistema radicalmente diferente libera a imaginação e o fanatismo utópico de uma maneira radicalmente diferente da nossa já enraizada, que inclui diferentes tipos de possibilidades de vida.

A primeira grande perda que o capitalismo nos proporcionou foi o rompimento com a natureza, trazendo todos seus mitos, paliativos, álibis e fantasias objetivas para cobrir a fenda que abriu nos despossuídos da terra. Eu escolhi vir para Terra Vista, assentamento conquistado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, para retornar a grande experiência inaugural do tempo orgânico secular e para substituir o colapso dos relógios por algum novo meio físico no qual a coisa experiencial pode ser medida e percebida: o tempo da terra. O primeiro passo da dança da renovação, da destruição da mercadoria, do individualismo e do varrimento de um mundo antigo de violência e dor é, ela própria, a pré-condição para reconstrução de outro… ser.

Como Che Guevara mesmo disse [3], esse movimento se traduzirá na reapropriação de sua natureza por meio do trabalho livre e da expressão da própria condição humana sem a compulsão da necessidade física de ser vendido como mercadoria. Trata-se de recuperar a consciência fora do Estado burguês através de uma existência coletiva de luta teórica e prática, como fez e ainda faz o MST junto à Teia dos Povos. Isso se faz através da lógica de aliança, sem dogma, mas pela análise da consciência mística, dos ancestrais que, na encruzilhada da vida, fundaram movimentos libertários e revolucionários. A humanidade não começa com um trabalho novo, mas executa o seu antigo trabalho com consciência e os ancestrais nos dão a potência da distinção e da crítica ao velho mundo.

Acredito que a minha parte nisso tudo é trazer o velho mundo inteiramente à luz do dia com uma generosa dose de humanidade sem esquecer de amar o povo e sua luta. Há a necessidade real de lutar para que esse amor viva, dance sobre as bordas do mundo e floresça em luta, em mobilização, recuperando o máximo de pessoas. Eu não estou só.

Referências:

[1] Carta de Marx a Arnold Ruge em ‘Sobre a Questão Judaica’ (1843)

[2] Le Guin em ‘Dancing at the Edge of the World’ (1989)

[3] Che em ‘O Socialismo e o Homem em Cuba (1965) disponível em https://teiadospovos.org/indicacao-de-estudo-o-socialismo-e-o-homem-novo-em-cuba-de-che/

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