Por Nádia Akawã Tupinambá*
Guerreiro vem ver / Guerreiro vem cá /
Guerreiro vem ver as tua aldeia como está/
Ô guerreiro vem ver/ Ô guerreiro oiá
Quero pedir licença. Licença aos ancestrais, licença às minhas bisas, às minhas tataras. Quero pedir licença ao Grande Espírito, a essa terra sagrada, a esse território e a tudo que nele vive. Quero pedir licença também aos mais novos e aos mais velhos. Eu sou Nádia Akawã, liderança aqui na Aldeia Tukum, Território Indígena Tupinambá de Olivença, Ilhéus – BA. Sou companheira do Cacique Ramon, sou educadora, sou mãe, sou avó, sou mulher medicina.
O Brasil foi construído numa violência, numa invasão – e até hoje as pessoas falam que o Brasil foi descoberto… Estamos em um país que começa com mentiras, um país que ignora a diversidade, um país que mata os povos originários e um país que tem cometido uma atrocidade atrás da outra. Nessa invasão, quanta violência o país sofreu! Precisamos compreender que a gente ainda vive essa violência hoje e não é de forma sutil. É declarado. Hoje, a gente sabe quem são os nossos aliados e quem é nosso inimigo. Nós somos anti-governo e temos sempre que estar dizendo Fora Bolsonaro para as pessoas compreenderem que tudo o que o governo faz é tentando nos dizimar, é tentando nos desarticular. Até quando ele faz alguma política de “assistência” aos povos indígenas e às comunidades tradicionais, ele cria uma situação que coloca um parente contra o outro, uma aldeia contra outra, um povo contra o outro. Isso não é um governo! Nossos direitos são violados a todo tempo e é por isso que a gente faz esse enfrentamento político. Precisa ter muita coragem, precisa estar muito ancorado. O que nos dá força é exatamente ficar nessa terra. Já o governo, ele quer exatamente a terra dos povos indígenas. Ele quer que a gente saia do território porque assim nos enfraquecemos.
O movimento da terra
Como educadora, eu tento fazer esse trabalho de pensar que nossa educação pode ser modelo pra desconstruir o que está posto. Mas, para isso, é preciso compreender e não simplesmente ler os livros didáticos que falam sobre nós, sobre os povos indígenas. Quem escreveu? A partir daí vocês começam a fazer suas reflexões, porque quem tem que falar de nós somos nós. Quem escreveu sobre nós deixou tudo no passado: os índios faziam, os índios pescavam, os índios cantavam. E onde está o índio contemporâneo? Os livros didáticos nos dizimaram. Então, como se guiar por um livro que diz que o povo Tupinambá não existe, que foi extinto? Nós estamos aqui desde sempre.
Nós, o povo Tupinambá, somos hoje quase 10 mil pessoas. Nesse momento da Covid, nós perdemos muitas lideranças – algo que não aconteceu somente com o nosso povo. Mas, nessa pandemia, também já nasceram muitas crianças. E, se nasceram muitas crianças, é porque a gente ainda continua nesse mundo. O nome Tupinambá é um nome que assusta. Por ser o primeiro povo de contato nesse país, nós somos considerados um povo briguento, um povo de luta. E a gente vai pra cima mesmo! Aí vem o movimento da terra e vem a terra de novo fazendo esse povo todo aparecer, ressurgir. Por isso, a terra é tão importante: pensar nessa terra é pensar em tudo que nela há. Nós precisamos perceber que a terra, para os povos indígenas, vai muito além do chão que se pisa. É nela que está a vida, é nela que está o sagrado, é dela que vem o alimento, é dela que vem as medicinas. A gente precisa estar nessa conexão e precisa compreender a dimensão cosmológica do povo indígena.
Como fazer o enfrentamento político se não pensar na espiritualidade? Como fazer o enfrentamento político se não se limpar, não pensar na cura, que não é só nossa, mas de todos? Quando pensamos na cura para todos, nós também nos curamos. Porque a cura, ela vem assim: na reciprocidade entre aquilo que eu penso e aquilo que eu sinto; e aquilo que eu quero para você, vem para mim, automaticamente. Precisamos estar nessa sintonia.
Então, essa organização política não é por acaso. Ter uma liderança também não é por acaso. É tudo muito bem pensado. Nós temos os encantados que orientam, temos os anciões que aconselham e são eles que também definem o que vai acontecer. Então, essa liderança não é sozinha, assim como uma comunidade não é sozinha, não é uma pessoa só. E essa é uma forma de pensar coletivamente e é um modelo de organização política, um modelo coletivo de se viver e de se pensar o bem viver. Se a gente não pensa dessa forma e trabalha de modo egoísta, a gente não consegue compreender a dimensão coletiva e a importância de estar em uma articulação como a Teia dos Povos, por exemplo. Tudo que fazemos é política: estamos vivos e somos resistentes exatamente porque fazemos esse enfrentamento político.
A retomada é para garantir a vida
Para nós, não é o documento da demarcação que dá legitimidade. Nosso território é ancestral, somos povos originários e, como povo originário, não teria que ter necessidade de documento nenhum. Até estamos à espera do documento, mas não estamos de braços cruzados. Nós fazemos autodemarcação sim e vamos continuar fazendo. Estar em processo de retomada, para nós, é mostrar que quem demarca território não é a Funai e não é o governo, e sim nós.
A retomada em que nós estamos, na Aldeia Tukum, assim como tantas outras que nós temos em nosso território, são aldeias que a gente reconstituiu dentro do nosso próprio território. Garantimos a autodemarcação porque é no território que está a verdadeira cura, a verdadeira força do povo Tupinambá. As retomadas não são aleatórias, elas são feitas dentro do próprio território ancestral. Os Guarani Kaiowá, por exemplo, foram retirados de seu território e foram levados para uma outra terra, inclusive improdutiva. Esse lugar não tem força, a espiritualidade não está presente, ou seja, a força ancestral está no território, saindo de lá, essa força não vai existir. E é isso que querem fazer com o povo Tupinambá.
Nós já temos mais de 80% do nosso território autodemarcado. Mas ainda temos várias terras nossas tomadas por não índios. Aqui, nós temos águas milagrosas e a maior área de Mata Atlântica do Sul da Bahia. O governo tem olho em nosso território: quer construir resorts em cima de manguezais, quer dar continuidade a areais clandestinos. Não à toa, o governo quis fazer um hotel de quarentena aqui ao lado da aldeia Tukum. Não à toa, o governo deu outorga para fazer um grande hotel de empresa portuguesa, o Vila Galé, em cima de um manguezal. Não à toa, assim que o atual presidente assumiu, foram aprovadas outorgas para a entrada de garimpo e outras atividades em territórios indígenas. São lugares que o governo quer privatizar. Ele quer privatizar todas as terras indígenas para dar acesso ao agronegócio, para dar acesso à especulação imobiliária, para dar acesso ao latifundiário, para eles chegarem e construírem o que quiserem.
Quando o governo deu outorga para fazer o Vila Galé, uma das perguntas que eles fizeram foi: “mas vocês não moram aqui, ninguém habita aqui, por que que não pode construir aqui?”. A compreensão do governo é que onde tem mata, tem que ser destruído para ampliar essa cadeia imobiliária que eles têm aí no Brasil inteiro. Como as pessoas não conseguem compreender?! Se a gente não constrói em cima do manguezal é porque quem mora nos manguezais são os crustáceos. Lá tem vida! Nós protegemos esses lugares, nós protegemos a mata. E por isso não construímos nos lugares onde eles colocam o olho, os lugares que eles dizem que vão construir resorts e hotéis-fazenda. Eles usam o argumento do progresso. Mas o futuro da nação e o futuro desse mundo inteiro está no ar que respiramos. Enquanto a gente planta, enquanto a gente preserva e refloresta tudo aquilo que já foi tirado, eles querem destruir.
Então, a retomada é para garantir a vida, porque aqui está a saúde. É a garantia do ar, a garantia do alimento, a garantia da medicina. Se você garante o território nas retomadas, você está garantindo não só o chão que você pisa. Pois é da terra que vem as medicinas, é através da Mata Atlântica, é através dessa terra sagrada, que vem todo o alimento, que vem toda a medicina. Ou seja, as retomadas têm esse sentido político de organização, de auto-determinação e, principalmente, de garantia de vida para as futuras gerações. É assim que garantimos que o nosso povo sobreviva apesar de todo sofrimento, apesar de todo o massacre que sofreu. A retomada não é aleatória, é uma forma de resistência. É para isso que a gente luta, para manter o povo vivo dentro do nosso território. Isso somos nós que estamos falando. Se estamos dizendo isso hoje é porque nós resistimos milhares de anos. E a gente quer continuar.
O hoje não espera
De modo geral, a gente percebe que o povo está muito distante do que é realmente a luta dos povos indígenas pela permanência na terra, da importância do território tradicional e das retomadas, principalmente. Eu queria muito que a sociedade, toda a população brasileira, pensasse nisso. Estamos em um momento que o governo se declara contra várias culturas e nos ameaça. Esse é o momento do povo se juntar. Se juntar a nós, porque nós realmente fazemos o enfrentamento político. Nós somos os guardiões dessa floresta, nós somos os guardiões dessa terra, nós protegemos a vida.
Eu espero que as pessoas que tiveram a oportunidade de ouvir essas palavras comecem a internalizar qual é o papel de vocês nesse mundo hoje. Porque o hoje não espera, já está acontecendo e daqui um pouco já vira passado. E eu acredito que o trabalho da Teia dos Povos seja justamente fazer girar essa roda, circular conhecimentos e mostrar as lutas dos povos. Então, espero que a gente possa caminhar nessa luz, contribuindo com a permanência dos povos em seus territórios e para que as culturas continuem prevalecendo. Que a gente continue com essa força da ancestralidade, que o Grande Espírito continue tocando o coração das pessoas. Que a gente continue nessa rede e que ela se amplie.
* Texto construído em parceria com a divisão de comunicação da Teia dos Povos, a partir da fala de Mestra Nádia Akawã durante nossa Formação Política 2021. Na ocasião, ela e Cacique Ramon dialogaram com a Teia dos Povos sobre a relação entre território e cura. Você pode acessar a íntegra do conteúdo aqui. As fotos que acompanham o texto são de Hortência Sant’ana. A foto da capa é de Barbara Lara.