Posted on: 24 de fevereiro de 2021 Posted by: Teia dos Povos Comments: 1

Por Rául Zibechi – originalmente publicado no Desinformémonos (México)

Uma das principais características do pensamento crítico foi sempre a capacidade de um olhar amplo e até ao longe, de espiar por cima das árvores para avistar o horizonte. Esse olhar amplo era a bússola que não se perdia nem sequer nas piores situações. Em momentos de guerras e genocídios, a esperança provinha da convicção de que se segue caminhando na direção escolhida.

Portanto, cultivar a memória é uma questão básica, quase um instinto para sobreviver e crescer. Não para aferrar-se ao passado, mas para afirmar as raízes, a cosmovisão, a cultura, a identidade que nos permitem seguir sendo e caminhar, caminhar, caminhar…

O pensamento crítico vem se afogando no imediatismo, se perde na sucessão de conjunturas nas quais aposta pelo mal menor, rota quase segura para se perder no labirinto dos fluxos de informação, sem contexto nem hierarquização. O sistema aprendeu a bombardear-nos com dados, com as últimas informações que sobreabundam o meio da escassez quase absoluta de ideias diferentes das hegemônicas.

Estes anos, boa parte da esquerda e da academia empreenderam contra Trump. Lógico e natural. Porém parecem ter esquecido que alguns dos desenvolvimentos mais vergonhosos vem dos anos de Barack Obama, o progressista que iniciou a guerra na Síria, que promoveu o golpe de Estado no Egito e dezenas de intervenções contra os povos na América Latina, Ásia e África.

Dedicar todas as análises às conjunturas implica deixar de lado os fatores estruturais. Desse modo, não poucas análises que presumem de um pensamento crítico, “esquecem” que os governos progressistas aprofundaram o extrativismo (acumulação por usurpação ou quarta guerra mundial). Quando dos incêndios na Amazônia, esta corrente majoritária atacava Bolsonaro (com toda razão), mas não quis enxergar que sob o governo de Evo Morales ocorria exatamente o mesmo.

Sinceramente, não vejo a menor urgência em que retornem governos progressistas que já mostraram seus limites de administrações que encabeçaram. Na Bolívia, assinala Rafael Bautista, era necessário derrotar a direita e a gente o fez, mas a “usurpação que fez o MAS da vitória popular, crendo que foi sua obra exclusiva a recuperação democrática, está conduzindo esse desencantamento que é o que, precisamente, ocorreu previamente para que o golpe passado fosse legitimado por uma revolta social” (Alai, 4 de janeiro de 2021).

Se o pensamento crítico naufraga na estreiteza do olhar, se opta também por culpar a direita por todos os problemas. Deste modo, ao amputar-se a autocrítica com a desculpa de não dar argumentos ao adversário, fica impedido de aprender com os erros, de confrontar abertamente e debater no coletivo para chegar a conclusões comunitárias que orientem a ação.

Onde estão as autocríticas do PT brasileiro, do MAS de Evo ou da Alianza País de Rafael Correia? Para evitar o debate cunharam a ideia de “golpe”, que se aplica em qualquer conjuntura adversa que seja. Ou de “traição”, para dar conta de casos tão conhecidos como os do equatoriano Lenin Moreno e o do uruguaio Luis Almagro, esquecendo que foram eleitos por Correa e Mujica, respectivamente.

Poderia seguir argumentando situações e conceitos que deviam ou impedem os debates e, pior, as aprendizagens sempre necessárias. Há um ponto, não obstante, que seguimos atolados sem conseguir avançar, nem construir pontes, nem fazer balanços. Refiro-me ao papel do Estado nos processos revolucionários.

Alguns de nós negamos considerar que os Estados estejam no centro do horizonte emancipatório, enquanto muitos outros não concebem a ação política fora da instituição estatal. Não é um assunto menor. É o quebra-mar contra o que se arrebentarão as futuras gerações, incluindo os movimentos indígenas e feministas, os mais pujantes nestes anos.

Vem sendo difundida uma ideia nefasta que diz: se as pessoas, os coletivos ou movimentos adequados chegam ao Estado, por apenas este fato o modificam, mudam seu caráter. Como se o Estado fosse uma ferramenta neutra, utilizável tanto para oprimir e reprimir como parar liberar povos e ajustar contas com a classe dominante.

A experiência histórica, desde a revolução russa até os últimos governos progressistas, fala por si só. Porém parece que recordar e fazer um balanço é um exercício demasiado pesado para um pensamento indolente, que busca abraçar a frouxidão das comodidades antes que acampar à intempérie.

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