Com a licença de nossos encantados,
Com as bênçãos de nossas mais velhas e mais velhos,
Em respeito às crianças e a nossa juventude,
Aos povos das Águas Gerais:
É com a força dos búfalos, enfeitando a tempestade de ventos, que falamos em nome da Teia dos Povos de Minas Gerais, desde o Kilombu Manzo Ngunzo Kaiango, em Belo Horizonte. Aos pés da Serra do Curral, que há 2,5 bilhões de anos habita e encanta essa região, clamamos e cultivamos uma potente aliança entre nós: povos pretos, indígenas e ciganos, comunidades tradicionais, movimentos sociais, trabalhadoras, professoras, artistas e estudantes, em um encontro que aquece e fortalece as teias que sempre povoaram e conectaram as histórias de luta nas Gerais.
Em fevereiro de 2023, nas ricas águas do Recôncavo Baiano, nos reunimos no território pesqueiro do Quilombo de Conceição de Salinas da Margarida para a VII Jornada de Agroecologia da Bahia. Nutridas e revigoradas com a confluência de povos de todo o Brasil, retornamos com o desafio e compromisso de semear essa grandiosa aliança da Teia em nosso estado.
Saudamos, então, as lutas e memórias dos povos que habitam essas terras muito antes da invasão colonizadora que assolou Abya Yala. Na dita Minas Gerais, já vivia Luzia, mulher indígena que há 11 mil anos caminhava e encantava esse território sagrado. Honramos também, a luta e a memória de Dona Maria (Maria Papuda), senhora negra que resistiu ao violento despejo imposto no processo de construção de Belo Horizonte, que, com base nos ideais da Nova República, da modernidade e da racionalidade ocidental, transferiu a capital de Vila Rica (Ouro Preto) para a planejada e “europeia” Belo Horizonte, expulsando moradores do antigo Arraial Curral Del Rey, soterrando rios e infectando essas terras com a perversa engenharia e burocracia das elites brancas e do Estado. Erguida sobre o Largo do Rosário e o Cemitério da Irmandade dos Homens Pretos, essa cidade foi construída sobre os corpos e com o sangue de nossos povos. Nunca nos esqueceremos disso!
Com as bênçãos de Pai Benedito, nos acolhemos no Kilombu Manzo, terreiro e quilombo em contexto urbano que resiste e é linha de frente de importantes lutas: contra a mineração na Serra do Curral, contra a construção do RODOANEL (“rodominério”) e as violentas ilegalidades que atacam o direito à Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-Fé (Convenção 169 da OIT).
Aqui consolidamos e celebramos a retomada do Território Kewá Matamba, espaço sagrado do Kilombu Manzo na Mata da Baleia. No território, re-plantamos uma muda de Jatobá, para que as próximas gerações do Manzo possam continuar a tradição de terem seus umbigos plantados nas raízes dessa árvore sagrada, em terra fértil e abençoada, nascidas em território livre e ancestral. Assim, afirmamos a autonomia dos povos e nossa luta contra o racismo ambiental, continuamente praticado pelos órgãos, instituições e representantes do Estado.
Cultivamos também, um espaço em que floresça uma pedagogia das Ngoma, que acolha e fortaleça a conexão de nossa juventude com o território e as tradições, em uma “educação não para ter, mas para poder ser”, como nos ensina Makota Kidoiale. Nos guiamos, enfim, pela sensibilidade de nossos erês e curumins, que encantam esse mundo ao imaginar, compartilhar e criar o território e os caminhos que sonham.
Agradecemos a bença e o acolhimento de Mametu Muiandê (Mãe Efigênia), Makota Kidoiale, Kota Sessi, Tata Mukumbi, as crianças e a todes do Manzo, que abriram espaço em sua casa e em seus corações para os diversos povos, territórios e pessoas que se envolveram nesse encontro. Palavras não descrevem a honra e a alegria de escutar e vivenciar um pouco da sabedoria, força e sensibilidade ancestral que habita a Senzala de Pai Benedito. Que nos olhares, partilhas e na construção dessa Teia, o nosso carinho, admiração e fortalecimento sejam continuamente reafirmados.
Sob a força e a proteção da Cordilheira do Espinhaço, que une as serras de Minas e da Bahia, plantamos uma poderosa aliança entre nossos povos, semeada pela presença de Mestre Joelson e Mestra Solange, lideranças importantes do Assentamento Terra Vista e da Teia dos Povos da Bahia. Esse encontro, simbolizado pela partilha de sementes crioulas, nos lembra que o que nos une é maior do que as pequenas coisas que nos separam. Assim, devemos nos aglutinar, confluir, reencantar e esperançar a liberdade, ousando reconquistar a Terra que foi colonizada e arrancada de nós. Que essa importante confluência nos guie na construção da perspectiva de um mundo novo, pelo caminho da esperança, do amor e da partilha. “Quando os tambores de Minas e os tambores da Bahia se encontrarem, o chão dessa terra vai tremer” (Mestre Joelson).
É crucial este momento de germinação e afirmação da Teia dos Povos das Águas Gerais, pois apesar da vitória das forças democráticas nas últimas eleições presidenciais, a boiada segue passando a todo vapor e, infelizmente, aqui nas Gerais, ela é reforçada pelo trem da mineração, que solapa vidas e o meio ambiente.
O Estado não aprendeu nada com os gravíssimos crimes de Mariana (2015) e Brumadinho (2019)? Até hoje não houve efetiva reparação aos atingidos que foram excluídos dos acordos feitos a portas fechadas entre as empresas e instituições de justiça. Estamos indignadas com a política ambiental do Governo Zema que, junto com a FIEMG, assumiu incondicionalmente os interesses das mineradoras, autorizando projetos danosos sem licenciamento ambiental: como a mineração na Serra do Curral; a redução de parques e unidades de conservação; a exploração de lítio no Norte de Minas; as violações dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais; além da aprovação de uma reforma administrativa privatizante, com retrocessos nas áreas da saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, moradia, direito à cidade, etc. Daí a importância desta Pré-Jornada e das próximas que virão, para o fortalecimento da Teia e dos territórios na resistência à sanha colonial exploratória e desterritorializante representada pelo Governo Zema.
Na Escola dos Tambores do Kilombu Manzo, aprendemos que os tambores (ngoma) são os instrumentos de comunicação com os povos, que através do ritmo, da dança e da oralidade, mantém a gira em movimento constante, garantindo a continuidade e a existência/resistência da tradição negra e quilombola, para além do território. É a partir de nossos instrumentos que nos encontramos, reverenciamos e comunicamos com todos os povos, sendo o ponto de princípio “da gira que gira na gira” (Negô Bispo). Que nossos tambores e maracás alcancem e ecoem com os que buscam construir uma aliança preta, indígena e popular nas Terras Gerais, esse é o nosso chamado.
A Teia dos Povos é uma articulação de comunidades, territórios, povos e organizações políticas, rurais e urbanas. Essa articulação visa construir solidariamente uma aliança onde geraizeiros, ribeirinhas, povos originários, quilombolas, periféricos, sem-terra, sem-teto, trabalhadoras e pequenas agricultoras se juntam com o objetivo de formular os caminhos da emancipação coletiva e da autonomia, tecendo caminhos rebeldes enraizados na agroecologia. Organizada em diversos estados do Brasil, as Teias têm se empenhado no projeto de fortalecer a luta pela Terra, o Território e o Bem-Viver.
Agradecemos a presença, as trocas e a disposição dos povos, movimentos e pessoas que confluíram nos dias do evento. Que nossa aliança se enraíze no cotidiano de afetos, plantios e lutas, fortalecendo a construção da Teia dos Povos: Aldeia Kamakã Kaêhá Puá (Esmeraldas); Aldeia Kamakã Mongoió (Brumadinho); Assentamento Terra Vista (BA); Comunidade Cigana Kalon de Ibirité; Kasa Invisível (BH); Kilombo Família Souza (BH); Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango (BH); Kilombo Mato do Tição (Jaboticatubas); Ocupação Carolina Maria de Jesus (BH); Ocupação Eliana Silva (BH); Ocupação Paulo Freire (BH); Ocupação Vila Fazendinha (BH); Povo Carajás (BH); Povo Payaya (BA); Povo Puri (MG); Povo Maxakali do Pradinho (MG); Reinado Treze de Maio (BH); Associação Popular dos Centros Socialistas; Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (BH); Comissão Pastoral da Terra – CPT; Movimento Deixem o Onça Beber Água Limpa; Movimento de Organização de Base – MOB; Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas – MLB; Teia dos Povos da Bahia.
Agradecemos a Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente (CCPJO), pelo apoio com a alimentação; o Centro Socialista Maria Guerreira pela partilha de suas geleias rebeldes e à Kasa Invisível, pelo trabalho de difundir os livros da Teia em Belo Horizonte e se colocar como espaço de apoio para a realização de atividades e parcerias produtivas com a Teia de Minas.
Agradecemos também à Loja da Reforma Agrária e às agricultoras produtoras do Quintal da Dona Vera e das Unidades Produtivas: Coqueiro Verde, Vila Pinho, Tirol Ativo, Horta da Alê na Ocupação Paulo Freire (MLB) e Horta Comunitária do Alto das Antenas, que garantiram um encontro com comida de verdade, sem veneno e cultivada de forma agroecológica.
Nessa grande caminhada que assumimos e convocamos, seguiremos os próximos passos:
– Cuidar e proteger o Território Kewá Matamba, espaço sagrado do Kilombu Manzo;
– Proteger a Serra do Curral, a Mata do Baleia e todas as serras, matas e águas de nosso estado;
– Fortalecer a autonomia pedagógica da Escola dos Tambores e de todas experiências de educação ancestral e revolucionária;
– Construir e fortalecer os caminhos de luta entre o campo e a cidade, tecendo linhas de apoio mútuo para combater a fome, conquistar autonomias e a liberdade;
– Apoiar as aldeias, retomadas e fortalecer os indígenas em contexto urbano;
– Apoiar as ocupações urbanas, terreiros, territórios tradicionais e favelas das cidades;
– Combater o latifúndio, a intolerância religiosa, o machismo, o racismo, o patriarcado e o capitalismo;
– Combater a mineração, com suas empresas, políticos e políticas que promovem o ecocídio de nossos povos;
– Enfrentar o avanço da Vale sob nossas terras e nascentes;
– Nunca esquecer os crimes cometidos em Mariana e Brumadinho e lutar pela reparação integral das pessoas atingidas;
– Honrar as vítimas, famílias e comunidades que ainda sofrem com o rompimento e a ameaça das barragens, além de todas outras que são impactadas pela mineração;
– Lutar pela imediata revogação da Resolução Conjunta SEDESE/SEMAD nº 01/2022 que viola gravemente a Convenção 169 da OIT e a Constituição Federal de 1988;
– Avançar nossa aliança para outras regiões de Minas Gerais, acolhendo mais povos, territórios e elos.
Através dos ventos Gerais, que essa Carta encontre as águas, terras, montanhas, corpos e espíritos dos que ousam construir e encantar o mundo novo, pela unidade dos povos em luta!
Vivas aos guardiões das encruzilhadas!
Vivas aos guardiões das florestas!
Vivas à soberania popular!
Vivas à aliança dos povos!
Vivas à agroecologia!
Essa é a palavra da Teia dos Povos de Minas Gerais.
Kilombu Manzo Ngunzo Kaiango, Belo Horizonte – Minas Gerais
23 de abril de 2023
Quanta beleza e quanta riqueza neste encontro das Teias de Minas e Bahia. Aqui também estamos na serra do Espinhaço, Aqui como aí temos as minas e os gerais. Somos extensão e povos que se reencontram nesta luta por terra e território.
[…] Carta da Pré-Jornada de Agroecologia de Minas Gerais: Eduka-ação das Ngoma – Teia dos Povos […]