Aos Núcleos e Elos da Teia dos Povos da Bahia,
Na manhã do dia 2 de julho do ano de 2023, nos encontramos em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Lá, onde as batalhas iniciadas em 1822 culminaram na expulsão dos portugueses da Bahia, celebramos os 200 anos das verdadeiras batalhas de Independência do Brasil e lembramos que para varrer as tropas coloniais destas terras foi necessária a formação de uma poderosa Aliança Negra, Indígena e Popular, garantindo nosso embarque no grande sonho de liberdade e autonomia dos povos.
Queremos, portanto, escovar a história a contrapelo, nos opondo à narrativa oficialesca sobre o desenrolar deste grande momento histórico. Muitas vezes ensinadas nas escolas como fatos, uma versão enviesada dos fatos escanteia as nossas guerreiras e guerreiros pretos e originários na tentativa de protagonizar apenas os exércitos brancos, descendentes dos portugueses, e ao mesmo tempo esconder a amarga traição que as elites brancas nos infligiram logo em seguida, assim que tiveram chance.
Acreditamos que uma reflexão sobre o 2 de julho deva caminhar na direção do entendimento e da nossa memória sobre o passado a fim de entendermos as suas influências nas lutas de hoje. Como filhos daquelas e daqueles que deram o sangue nos combates pela libertação, queremos aprender com os que nos antecederam, concebendo a história do ponto de vista dos resistentes porque ainda hoje precisamos lutar contra formas de domínio e ameaças, já que colonialismo ganha novas aparências no curso do tempo mas permanece querendo nos aprisionar em seus cativeiros de miséria, trabalho extenuante, fome e indignidades. Queremos um outro mundo, e somos inspirados por quem guerreou antes de nós.
Estamos aqui, dois séculos depois, defendendo os territórios contra a sanha do capital e suas facetas nefastas, nos fortalecendo em nossa coletividade, caminhando orientados pela mesma perspectiva de unidade que deu origem não apenas às batalhas contra os portugueses no 2 de julho, mas também formou comunidades autônomas, autogeridas e que fundaram modelos colaborativos de convivência, como Palmares, Canudos e Pau de Colher.
Entendendo a importância de continuar a luta frente aos desafios impostos a nós, com a força dos Minkisi, Encantados, Orixás, e todas as forças espirituais que nos movem em consonância com a Mãe Terra, nossa Mametu Utukilo, Gaia, Pachamama, iniciamos este ano de 2024 em uma reunião de planejamento que aconteceu no quilombo Conceição de Salinas, território pesqueiro e ancestral, conquistado e preservado por gerações de mulheres negras guerreiras, cujas descendentes continuam na liderança da luta, repleto de memórias dos Tupinambá, próximo à ilha de Itaparica, onde foi realizada, em janeiro, a VII Jornada de Agroecologia.
Inspirada na figura de Maria Felipa – liderança marisqueira que resistiu junto à outras mulheres negras e aos povos Tupinambá e Tapuia, liderando aproximadamente duas centenas de pessoas armadas com peixeiras, paus e galhos espinhosos numa batalha contra os portugueses em Itaparica -, a Teia dos Povos da Bahia vem por meio desta carta convocar os seus Núcleos de Base e os Elos para dar continuidade às lutas do 2 de julho, honrados pela coragem de guerreiras e guerreiros ancestrais, convidamos à todas, todos e todes a assumir a responsabilidade da retomada dos territórios originários e quilombolas através da autodemarcação e a tecer, fortalecer e realinhar a aliança entre o campo e a cidade, reforçando a luta dos povos da periferia, retomando a luta urbana para fazer frente à colonização e ao capital.
Buscando defender os modos de vida dos povos e fortalecer a resistência e a soberania popular, nós, comunidades, movimentos sociais, organizações políticas das esquerdas, povos, territórios e toda gente em luta, nos juntaremos de maneira cooperativa, colaborativa e militante para construir a VIII Jornada de Agroecologia da Bahia, a ser realizada em 2025 na cidade baiana de Salvador, primeira capital estabelecida pelos invasores em Pindorama.
Será uma Grande Jornada dos Povos! Mas, para que se concretize precisamos de muito ânimo, fé, autodisciplina e organização. Desde já é fundamental que comecemos a fazer nossas roças e nossas criações, a fim de termos uma fartura de alimentos na ocasião. Precisamos também, a cada pré-jornada, amadurecer as nossas discussões e demandas que trataremos por lá, de forma mais ampla, com o intuito de convocar os todos os povos, especialmente os que estão nas periferias urbanas, para intensificar a agenda de retomada das terras e construir territórios do bem viver.
“Ser parte é ser todo e ser todo é ser parte“, por isso é preciso que saibamos o verdadeiro sentido de unidade – nos sentir parte dessa articulação e entender que a luta dos indígenas é a luta dos quilombolas, assim como é a da periferia e de outros tantos povos e comunidades tradicionais, e vice-versa. A nossa mensagem principal, que esperamos que chegue a cada coração que anseia por virar este mundo em Festa, Trabalho e Pão, é que o que os une é maior que aquilo que nos separa, e apenas em comunhão venceremos.
Diga aos Povos que avancem,
Avançaremos!
Bahia, 04 de janeiro de 2024.