O Marco Temporal, que teve texto-base (PL 490/2007) aprovado no último dia 30 de maio pela câmara dos deputados e seguiu para o senado, tem o seu julgamento retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (7). A Tese propõe que as demarcações de terras indígenas só poderão acontecer caso seja comprovado que o povo requerente de um território já o ocupava antes de 5 de outubro de 1988, data que marca a promulgação da Constituição Federal.
Além da data limite que o projeto impõe, a lei visa permitir a instalação de bases, unidades e postos militares nas terras indígenas sem qualquer consulta prévias às comunidades envolvidas ou à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Em todo o país, comunidades, movimentos e organizações indígenas, assim como outros diversos setores da sociedade civil, repudiam o Marco Temporal. Desde o dia 5 de junho, caravanas têm chegado à capital federal, e estima-se que pelo menos 2 mil pessoas acampem na Praça da Cidadania, a fim de acompanhar o julgamento desta tarde. Em abril, povos se uniram também em Brasília no Acampamento Terra Livre (ATL), organizado pela Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB). Essas manifestações vêm acontecendo há alguns anos, como foi o caso de 2021, ano em que 5 mil indígenas acamparam na Praça dos Três Poderes enquanto o STF julgava a tese.
Em nota publicada no dia 26 de maio, a Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB/SP), por meio da sua Comissão de Direitos Humanos e seu Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombola, demonstrou preocupação com a velocidade da votação do PL no congresso e questionou a transferência da competência para a condução de demarcações de terras indígenas do Ministério dos Povos Indígenas para o Ministério da Justiça e Segurança Pública a partir da Medida Provisória (MP) 1154/2023.
“A proposição do marco temporal, criada por setores contrários à demarcação das terras indígenas, sob todos os pontos de vista a serem considerados (histórico, sociológico, antropológico, político e jurídico), constitui violação das normas vigentes no Brasil, bem como das normas internacionais. Na verdade, ela representa a consolidação de séculos de extermínio e espoliação contra os povos indígenas do Brasil”, afirma a OAB/SP no texto. No mesmo documento, a entidade declarou que o PL 490 representa “uma grave ameaça existencial às culturas originárias do Brasil”.
O conflito entre o latifúndio e os povos indígenas remonta ao período colonial. Entretanto, esse processo é cotidiano e contemporâneo, e vem acontecendo desde os primeiros anos da invasão portuguesa até mais recentemente, como é o caso da invasão de terras indígenas durante a ditadura civil-militar (1964–1985), segundo explica Erahsto Felício, mestre em História social, escritor e professor da educação básica.
“Sobre o marco temporal, um dos aspectos que a gente precisa ter a dimensão, é que, em geral, as pessoas criam um marcador sobre a colonização, acreditando que ela começou no século XVI com a ocupação portuguesa dessas terras. Mas essas datas não representam o que foi de fato um processo de colonização contínuo no tempo. Nós podemos falar de colonizações de áreas feitas por portugueses, por espanhóis, por holandeses, podemos falar de de áreas que foram colonizadas por brasileiros mesmo, porque elas seguiram acontecendo. Se para os pataxós e os tupinambás esse encontro que gerou o processo de colonização ocorreu logo no início do século dezesseis, a gente vai falar que, para os kalapalos e os xavantes do Xingu, vai acontecer na primeira metade do século vinte. E vai ter povos que isso vai acontecer na ditadura militar”, diz Felício.
Até o dia 06 de junho o placar permanecia empatado em 1 a 1. O ministro Edson Fachin, relator do caso, opôs-se à medida. Segundo o magistrado, o artigo 231 da Constituição assegura a permanência das comunidades indígenas em seus territórios, não cabendo portanto a definição de uma data limite de ocupação. Diz a Constituição:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
Para Felício, o Marco Temporal é uma tentativa de falsear a história. “Acreditar que as pessoas deveriam estar em suas terras, ou de posse delas, ou lutando por elas em uma data específica é ignorar que tem um processo contínuo de colonização e de violência, que muitas dessas pessoas foram alijadas de estar nos seus territórios a essa data. Muitas delas só tiveram condições de lutar pelo seu direito a ser povo indígena, se autodeterminando, quando cessaram os processos de violência ligados à ditadura. Então, não é possível pensar em uma data em si, e a violência que marca o processo de colonização não é outra que não exatamente a desterritorialização, e isso é um processo que que ocorre durante todos os séculos de colonização e, depois, de Brasil independente”, explica o historiador.
O voto favorável é de Kássio Nunes Marques, ministro indicado por Bolsonaro, a quem se alia ideologicamente, de acordo com avaliações de outros membros do STF e outros observadores da Suprema Corte.
A ministra Rosa Weber, atual presidente do STF, avalia antecipar o seu voto, já que será aposentada em outubro. Igualmente contrária ao Marco Temporal, a magistrada pretende deixar o seu voto registrado, com o objetivo de não abrir espaço para que o ministro que venha substituí-la vote em seu lugar. Weber já havia prometido a lideranças indígenas em 2022, no evento da sua posse, que retomaria os debates sobre o caso. Na ocasião, David Popygua, do povo Guarani Mbya (SP), intitulou o marco como uma “política de morte”.
Especialistas afirmam que a aprovação do PL 490 pelo congresso representa um tipo de conflito institucional, com o parlamento tentando pressionar o Supremo. No entanto, caso o STF avalie que a tese jurídica do Marco Temporal é inconstitucional, esta será a última palavra e, portanto, deve balizar futuros julgamentos.
ADIAR O FIM DO MUNDO
As terras indígenas são barreiras que o capitalismo encontra no seu processo de devastação do meio ambiente. “Os indígenas são mestres e doutores na relação com a natureza”, disse o teólogo Leonardo Boff no programa Provocações, da TV Cultura, em novembro de 2022. Dados recentes do Observatório Climático MapBiomas revelam que nas últimas três décadas as terras indígenas perderam apenas 1% da sua vegetação nativa, enquanto, nas áreas privadas, a perda superou os 20%. O mesmo estudo demonstra que a devastação entre 1990 e 2020 foi de 69 milhões de hectares, sendo que apenas 1,1 milhão ocorreu em áreas de comunidades originárias, enquanto iniciativas privadas desmataram 47,2 milhões.
Segundo Tasso Azevedo, engenheiro florestal, geógrafo e coordenador geral do MapBiomas, a pesquisa demonstra que os povos indígenas seguem na contramão do projeto de extermínio. “Os dados de satélite não deixam dúvidas que são os indígenas que estão retardando a destruição da floresta amazônica. Sem seus territórios, a floresta certamente estaria muito mais perto de seu ponto de inflexão, a partir do qual ela deixa de prestar os serviços ambientais dos quais nossa agricultura, nossas indústrias e cidades dependem”, afirmou.
Ainda conforme o MapBiomas, nas terras indígenas, são preservados cerca de 110 milhões de hectares de vegetação nativa, o que é praticamente 19,5% de todo o Brasil. De acordo com dados atualizados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 64% desses territórios ainda não foram demarcados, e, além disso, das pessoas atingidas pela violência no campo, 56% são de algum povo originário.
De acordo com o documento “Os Invasores”, um levantamento de 101 páginas realizado pelo observatório De Olho nos Ruralistas, 1.692 fazendas estão localizadas no interior de terras indígenas. Essa manobra é chamada de sobreposição, que, nesse caso, compreende o total de 1,18 milhão de hectares – o que equivale à área do Líbano. Os dados mostram que a maioria dessas propriedades está sobreposta a terras indígenas que não haviam sido demarcadas. Os territórios invadidos são utilizados para atividades do agronegócio, como o cultivo de soja. Seus donos são empresas como a Bunge e a Amaggi, além de corporações do mercado financeiro, através de fundos de investimentos e grandes bancos.
“O relatório enfatiza é que a ilegalidade e a violação aos direitos dos indígenas não têm sido impedimento para que ofereçam crédito aos empresários. Outras conexões com os latifundiários, expostas pelo observatório, são com outras figuras de semelhante mentalidade em relação à forma como conduzem os negócios, por burlar a lei e focar no lucro, e com o crime organizado”, diz matéria da Agência Brasil sobre o caso.
Enquanto protegem o solo, as águas, a fauna e a flora nativas, ou seja, o que faz do Brasil uma referência mundial em biodiversidade, povos originários enfrentam uma cruzada contra os seus modos de vida e suas cosmovisões. Estudiosos, juristas, lideranças políticas e comunitárias têm dito que o Marco Temporal é mais uma estratégia do agronegócio nacional, que tem objetivo de não apenas impedir a demarcação de terras indígenas, mas de questionar a legitimidade de áreas já demarcadas.
Além da tentativa de exclusão de um direito já conquistado constitucionalmente, comunidades indígenas vêm enfrentando, nos últimos anos, uma série de ataques contra as suas sobrevivências. Conforme apontam dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o garimpo ilegal em terras indígenas do norte do país aumentou em 787% entre 2016 e 2022. Yanomamis, mundurukus, baús, kayapós e outros povos vêm combatendo os efeitos dessas invasões. São consequências físicas e biológicas, como o caso de surgimento de doenças como a malária e da desnutrição. E são consequências culturais e simbólicas.
Mais que nunca, é preciso reafirmar a importância da demarcação de terras indígenas. Ailton Krenak, filósofo e escritor ambientalista do povo krenak (MG), afirma em Ideias Para Adiar o Fim do Mundo (2019) que “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”. Se esse país pretende sobreviver nos próximos anos, e servir de exemplo ao mundo, cada vez mais é preciso fortalecer o direito dos povos originários aos seus territórios, pois essas áreas são também o lugar sagrado da biodiversidade que compõe os abundantes biomas do Brasil.
Em 2021, ao se pronunciar contra o Marco Temporal, Ailton Krenak foi elucidativo. “É a maior privatização de terras do país”, cravou.
ACAMPAMENTO TERRA LIVRE BAHIA
Entre 12 e 16 de junho, povos indígenas estarão reunidos no Acampamento Terra Livre, organizado pelo Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA), que acontecerá na área externa da Assembleia Legislativa da Bahia, localizada no Centro Administrativo da Bahia. A Teia dos Povos vem convocando as demais comunidades tradicionais para o fortalecimento do ATL-BA.
“O PL 490 é um crime contra os povos tradicionais, povos originários e povos quilombolas. É um conceito de colocar a gente dentro de uma cronologia capitalista, para eles poderem usurpar mais uma vez o nosso direito ancestral e histórico”, afirmou o Mestre Jorge Rasta, idealizador da Casa do Boneco de Itacaré e conselheiro da Teia dos Povos, em sua convocação ao povo preto pela participação no acampamento.