Posted on: 26 de agosto de 2021 Posted by: Rafique Nasser Comments: 0

FALA, POVOS #1

Texto: Rafique Nasser

Revisão: Mariana Cruz

INTRODUÇÃO À PRIMEIRA EDIÇÃO

A divisão de comunicação da Teia dos Povos surgiu com a missão de registrar e dar destaque à luta dos povos neste lugar chamado Brasil. A partir da invasão, colonizadores europeus aqui cometeram, e depois perpetuaram, ao longo dos séculos, variadas formas de exploração e violências contra os povos indígenas, legítimos donos da terra, e contra o povo preto, sequestrado em seu seio natal e colocado sob um jugo de trabalho forçado em uma paragem estranha.

Seguindo a perspectiva das nossas lideranças que, por sua vez, são conduzidas pelos encantados e ancestrais que guerreiam desde há muito tempo pela liberdade, e constituíram potentes formas de resistência e contra-ataque aos seus opressores, a divisão vem construindo formas de espalhar uma mensagem rebelde, que não se rende aos desmandos do Estado e nem às injustiças promovidas pelos representantes daqueles a quem a história oficial chama de heróis e conquistadores, e nós chamamos de assassinos. 

Nessa grande Torre de Babel de discursos que não convergem e desfalecem na ausência de sustentabilidade prática, preferimos divulgar as ações de quem está em contato direto com as forças físicas e espirituais dos Territórios. Ou seja, de quem constrói agrofloresta, de quem retomou e ocupou porções de terras roubadas por latifundiários, de quem cuida das águas e sobrevive delas, de quem não teme as ameaças do poder econômico e não dobram seus joelhos às imposições do capital, de quem cuida das sementes crioulas, de quem enfrenta e denuncia as engrenagens genocidas da polícia nas periferias urbanas. Os novos trapaceiros, dotados de velhos costumes, repetem as trajetórias daqueles que lhes antecederam subtraindo os chãos sagrados dos povos e seus frutos, os únicos capazes de fortificar espírito e corpo para as batalhas cotidianas.

A mensagem desta aliança entre povos têm chegado a muitos lugares. Isto se deve mais ao poder do exemplo prático de quem nos conduz – nossas mestras e nossos mestres, conselheiras e conselheiros – do que à própria presença nas redes. Somente falar no grande enxame digital não confere capacidade de atuação para ninguém. É preciso se organizar, pertencer, colocar-se à disposição de alguma perspectiva material de mudança. A Teia dos Povos constrói-se desde a prática, o exemplo, as tarefas, as articulações – tudo isso tecido no cotidiano, muitas vezes, invisível aos olhos dos likes, dos retweets.

Tendo em vista que é mais que necessário, portanto, direcionar os nossos ouvidos, olhos e consciências para os saberes ancestrais das lideranças – licença aos mais velhos, licença aos mais novos – que orientam a luta pelo e para o bem-viver, iniciamos um periódico chamado Fala, Povos”. De maneira simples, tentaremos divulgar falas acerca de temas fundamentais para a construção da luta em torno da Terra e do Território que são referências para nós.

FALA, POVOS: CONTRA O MARCO TEMPORAL!

Nesse mês, mirando a importância do apoio ao Agosto Indígena, e as manifestações na ocasião da votação do Projeto de Lei 490 no Supremo Tribunal Federal (STF), o Fala, Povos traz as considerações de lideranças dos povos originários em relação ao Marco Temporal – uma estratégia para impossibilitar a justa demarcação das terras indígenas, em favor daqueles que querem se apossar dos territórios tradicionalmente pertencentes a quem já estava aqui antes da colonização. 

Em carta aos seus núcleos e elos, e a todos os povos que compõem a grande aliança pelo bem-viver, a Teia afirma que o projeto de lei 490 “dá abertura para que mineradoras e outros exploradores acessem os territórios indígenas, invadindo terras ocupadas tradicionalmente por nossos povos e colocando em risco nossas vidas e existência”.


A Teia dos Povos lançou, no último dia 11 de Agosto, uma Carta em Apoio ao Agosto Indígena 

(Arte por Dinelli)

Em resumo, a tese jurídica do Marco Temporal defende que um território só poderá ser demarcado caso um povo indígena ateste a ocupação efetiva da área em período anterior à promulgação da constituição federal de 1988. 

Em declaração ao portal Brasil de Fato, Antônio Eduardo Oliveira, secretário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), argumenta o contraponto fundamental para a derrubada da lógica cruel que sustenta o Marco Temporal: “Essa tese perversa desconsidera o histórico de violência a que foram submetidas as populações indígenas antes de 1988, bem como as ameaças e assassinatos que resultaram na expulsão das comunidades de suas terras”.

Acompanhe as considerações das lideranças:

CACICA CULUNG –  retomada Xokleng Konlgui, São Francisco de Paula (RS).

(Foto de Alass Derivass)

“O marco temporal, pra nós povos indígenas,  traz uma problemática muito séria. Então, nós temos que reunir nossas forças e pensar também junto, que tamo tudo junto na luta, pra a  justiça ver, saber que nós tamos na luta, nós povos indígenas. 

Se o marco temporal passar, então não vai sair a demarcação da nossa terra. Mas, terra pra nós é importante, é a saúde, é a vida, é nossa mãe. A terra, pra nós, traz uma vida saudável. A terra, pra nós, ela traz  uma saúde pra que nós possamos morar, viver em cima das terras, trazer de volta os nossos alimentos tradicionais, trazer de volta as nossas culturas tradicionais, plantar nossas ervas, a medicina tradicional, trazer também as nossas plantas tradicionais pra fazer o artesanato, que são as sementes, que são as taquaras, o cipó. Isso faz bem pra nossa a nossa vida.

Nós temos segredos pra nós fazer em cima das nossas terras, que  só nós indígenas sabemos. Então, os parentes lá de Ibirama, Santa Catarina, hoje estão esperando a demarcação das terras. Aquele povo lá sofre, aquele povo lá tá dentro de uma cheia, dentro de uma água. Quando dá enchente, eles ficam tudo ilhado, ficam no meio das águas do rio, as casas tapam cobertas pela enchente, a enchente carrega as casas dos povos indígenas. Sobre a saúde daquele povo lá, eles têm que atravessar de canoa descendo sessenta quilômetros de rio abaixo pra poder se deslocar para um hospital, uma mulher pra dar luz a um bebê, para ir a um mercado.

Aquele povo Xokleng lá de Ibirama, Xokleng Laklãnõ, sofre. E sofre discriminação, sofre ataque da enchente, sofre pelo ataque dos colonos. Aquele povo lá, Laklãnõ Xokleng, são sofredores, e eles precisam ganhar a demarcação das terras deles. Uma barragem foi criada dentro das aldeias e o governo não viu que lá existe uma nação indígena, um povo que tem vida, um povo que precisa viver, um povo que está lá em cima das terras tradicionais… e o governo está matando aquele povo, aquele povo tá morrendo à míngua esperando a demarcação das suas terras.

Eu sou Xokleng Konlgui, estou aqui na retomada de São Francisco de Paula também passando por problema, uma discriminação pelas próprias autoridades. As autoridades que assinaram essa lei, dando direito aos povos indígenas,,  hoje não estão respeitando. Querem passar por cima de nós. Eles falam que vão soltar a boiada, a boiada vai passar, mas nós estamos aqui pra atacar a boiada. Nós, lideranças, povos indígenas, vamos dar as mão e vamos atacar essas boiadas”.

CACIQUE NAILTON MUNIZ – Povo Pataxó Hã-hã-hãe, T.I Caramuru Catarina Paraguassu, região sul da Bahia.

“Nesses últimos tempos, andamos muito preocupados porque a Constituição de 1988 assegura que “são reconhecidas aos índios sua organização social, usos, costumes, língua, crença e tradição e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os direitos dos nossos bens”. No entanto, o marco temporal extingue toda a demarcação dos territórios indígenas e isso não é bom para os indígenas. Eles nem cumpriram com o direito dos índios, que é o direito de, com cinco anos de prazo, serem demarcadas todas as áreas indígenas – de 1988 a 1993. Isso nunca aconteceu. E, agora, sem isso acontecer, estão pisando por cima da Constituição. 

O marco temporal não é bom pros índios, o marco temporal não é bom pros quilombolas, não é bom pros sem terra, não é bom pros sem teto. Ele não existe na nossa consciência, porque nós não aceitamos o marco temporal como uma coisa boa pro nosso povo. Isso vai trazer muita morte, vai extinguir muitas comunidades e, pra extinguir as comunidades, precisa matar o seu povo e nós não queremos o nosso povo morto, queremos o nosso povo vivo, forte, saudável pra viver a vida. A vida é importante para todos”.

NETO ONIRÊ SANKARA – Conselheiro da Teia dos Povos, liderança na Brigada Ojefferson, MST, região baixo sul da Bahia.

“O marco temporal é uma afronta a todos os direitos dos povos originários,  o povo que, por direito, é dono do território brasileiro. Todos os outros que chegaram aqui são invasores, uns são os povos portugueses, que optaram por vir, já nós, povo preto, não tivemos escolha, nós fomos trazidos para cá. 

O marco temporal hoje é com eles, amanhã com a gente. Uma vez aprovado o marco temporal, vão tentar fazer o mesmo processo com a demarcação dos quilombos, vão tentar fazer a mesma coisa com as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto. Então, essa luta é de todos, independente se é povo indígena ou não, porque o impacto também se dará. 

Se aprovado, o marco temporal vai pôr em risco toda a mata ainda preservada, que só está assim porque nós temos os povos originários ainda morando nela. Então, esse é um problema pra todo mundo. Em última análise, a última fronteira da expansão do agronegócio são as florestas, são as áreas preservadas, e vai ser simplesmente agora esvaziada essa reserva. 

Se tem alguém que precisa ter um marco temporal pra ocupação são os brancos, eles sim! Eles que precisam ser limitados, os povos originários são donos. Por direito, essa terra é deles. Então, não cabe marco temporal. A gente é contra, O MST é contra, a Brigada Ojefferson é contra o marco temporal, e vamos lutar, dentro do que for necessário, pra defender os direitos dos povos originários, independente de data ou qualquer outra coisa”. 

SEU EDSON – Assentamento Terra de Santa Cruz, Santa Luzia (BA), liderança do Movimento Estadual dos Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas da Bahia (CETA).

“Eu trabalhei na Pastoral da Terra, sou filho de Pau Brasil e, quando eu morava em Pau Brasil, já era falada a história das terras indígenas lá, era a década de 1960 ou 1970. Aí, depois eu fui pra mais próximo dos índios, nós fomos morar na divisa dos indígenas. Passei um ano e meio lá e viemos pra Santa Luzia. 

Mais ou menos nos anos 1980, começou a retomada lá. Eu estava na Pastoral da Terra, e passei a ir lá constantemente levando gente para ajudar. Eu tive presente na retomada dos índios Pataxó ã-hã-hãe de Pau Brasil, Itaju do Colônia e Camacan. 

Presenciamos muito essa luta de retomar toda aquela terra, são 54.105 hectares, terra que hoje está toda nas mãos deles. Mas a gente percebe que tem muito índio com seus territórios tomados, invadidos. E ainda tem o racismo, a discriminação contra o povo indígena, gente que fala que o índio é preguiçoso, o pessoal não procura entender  o espírito do índio, quer que o índio seja europeu.

A luta pela terra é séria. O que tem de garimpo ilegal na Amazônia… grandes grupos organizados, de um poder tão grande que o pessoal anda de avião, tem aeroporto, tem campo, tem máquina. Quando o IBAMA faz uma emboscada e destrói o aeroporto, destrói as máquinas, pra eles não tão perdendo nada, porque o ouro traz uma riqueza muito grande, e os índios perdem tudo isso. Tudo roubado da terra dos indígenas. E o garimpo é um trem destruidor, né?! 

A luta é constante.  Esse marco temporal a é mais uma estratégia dos destruidores, não só pra destruir os índios, como já vem destruindo, mas como também destruir toda a classe camponesa que acessa a terra.Não vai ser uma resposta individual. Tem que dar uma resposta junto, unidos com o nosso povo, unidos com os índios”.

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