Posted on: 21 de novembro de 2020 Posted by: arkx Brasil Comments: 0

Um dia antes da vigilância na aldeia Mehinako, o AIS (Agente Indígena de Saúde) Kumayu me manda mensagem:

” Vocês podem vir, mas estamos sem água há 3 dias, a bomba quebrou”
“Tudo bem Kumayu, a gente leva água”

Em algumas aldeias aqui no Xingu, a água vem do poço artesiano, apesar do fácil acesso aos rios.

Chegamos na aldeia, sol queimando, calor intenso. Fazemos atendimento casa a casa, atendendo casos suspeitos de COVID. A paramentação faz parecer sauna. Alguns relatam diarréia pelo consumo de água do rio. Vemos mulheres carregando na cabeça panelas imensas com água pela aldeia.

Lá pelas 3 da tarde terminamos o trabalho e começamos a arrumar para ir embora. A água que levamos acabou, bateu a sede. Mas tudo bem, são só 3 horas no barco.

Estamos navegando no rio Kurisevo, afluente do rio Xingu, começo a me perguntar. Porque falta água se temos essa abundância de rios na beira da aldeias?

Pergunto então pro Paulo, barqueiro da equipe. Paulo me conta.

“Já tem anos que não bebemos água do rio doutora. As vezes eu bebo, mas a gente sabe que não é bom. A gente aqui tá na fronteira do parque, as fazendas estão a menos de 30Km, as águas já estão muito poluídas, tem até agrotóxico. Os animais diminuíram, as frutas não dão mais como antes”

Seguimos navegando no meio de tanto verde, que agora já não é mais tão verde, queimou. Nas margens a floresta com a maior fauna do mundo, mas que já não tem mais tanto bicho, morreram.

Fico triste, revoltada, quero gritar. Respiro fundo. Junto com o barco, meus pensamentos fluem.

Lembro do dia que cheguei no Xingu. Vim voando de Cuiabá, voo baixinho. Deu até pra ver a chapada dos Guimarães, lindo. Mas logo depois, duas horas só de fazenda. Contei nos dedos as árvores que vi.

Lembrei dos dias que entrei de avião no Xingu pra atender emergências. Ao redor do parque o cinturão do agronegócio. Soja. Milho. Algodão. Ser for de carro, é possível andar 2 horas dentro da mesma fazenda. Milho dos dois lados.

Lembrei também da última aldeia que entrei antes dessa. Era na fronteira leste do parque. Eles tinham uma aldeia nova, com ótima estrutura de escola e posto de saúde. Resolveram mudar e largar tudo.

Há 1 ano tentavam reconstruir aos poucos. Eu já tinha escutado muitas críticas em relação a isso. Mas nunca havia entendido porque. Perguntei, uma agente de saúde me explicou.

“O ISA (Instituto socioambiental) fez teste da nossa água e a quantidade de agrotóxico estava muito acima do permitido. Então mudamos.”

Nunca mais deixei que criticassem eles perto de mim. A crítica não pode ser invertida. A culpa é do agronegócio.

Voltei pra minha sede. Será que bebo água do rio?

No dia anterior, o motorista da equipe tinha me contado o que acontecia ali naquela área. Às vezes os fazendeiros deixam eles passarem para entrar no parque, às vezes não.

Por isso seu pai é candidato a vereador. Ele quer brigar para ter estradas para chegar nas aldeias. Pelo direto de acessar sua casa sem ter que pedir favor ao fazendeiro. Sem ter que pedir licença ao agronegócio.

Uma aldeia vizinha está sofrendo pois a fazenda que faz fronteira está ampliando o desmatamento esse ano para plantar soja. Agora a distância da aldeia para a plantação serão apenas dez quilômetros, o mínimo permitido.

Dez quilômetros de distância entre povos indígenas e aviões que lançam veneno na soja. Que lançam veneno na floresta. Que lançam veneno no rio. Que lançam veneno na gente.

A sede apertou, bebi água do rio.

 

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#28: na linha de frente – Xingu – II

#10: na linha de frente – Alto Xingu

Fotos: Kamikia kisedje

Daphne Lourenço

Médica de Família e Comunidade, atuando no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Xingu.


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