Posted on: 17 de janeiro de 2024 Posted by: Rafique Nasser Comments: 0

A articulação homenageia Nego Bispo na ‘Formação de Construtores e Defensores de Territórios’, que começou este mês e se estende até dezembro

*Por Divisão de Comunicação da Teia dos Povos

*Ilustração: Dinelli

Extraímos os frutos das árvores

Expropriam as árvores dos frutos

Extraímos os animais da mata

Expropriam a mata dos animais

Extraímos os peixes dos rios

Expropriam os rios dos peixes

Extraímos a brisa do vento

Expropriam o vento da brisa

Extraímos o fogo do calor

Expropriam o calor do fogo

Extraímos a vida da terra

Expropriam a terra da vida

Politeístas!

Pluristas!

Circulares!

Monoteístas!

Monistas!

Lineares!

Nego Bispo

As circularidades da vida fazem com que toda a existência material seja conformada em ciclos, que se renovam e seguem a estrutura infinita de início, meio e início. Brotar e tornar-se adubo, para que outras vidas possam surgir. Eternamente, o nascimento e o encantamento são dois pontos de partida, que guardam, entre si, trajetórias de seres viventes, seus sonhos, suas lutas, suas caminhadas, suas intervenções na realidade coletiva. Antes de tudo, é necessário dizer que não acreditamos no fim. 

No dia 4 de dezembro de 2023, um dos nossos mestres seguiu viagem e retornou para Casa, cruzando a linha da kalunga para compor o mundo da ancestralidade. Nego Bispo, como chamamos Antônio Bispo dos Santos, lavrador roçaliano, mestre de ofícios, tradutor de saberes, pensador orgânico, vadio contracolonial, se encantou. 

Bispo esteve conosco na VII Jornada de Agroecologia da Bahia, que aconteceu em Conceição de Salinas, território quilombola do Recôncavo Baiano, banhado pelas águas da Baía de Todos os Santos, em janeiro do ano passado. Comemos juntas e juntos, celebramos e falamos sobre lutas, caminhos, passos, direções, estratégias, táticas e organicidade. Na oportunidade, o mestre agradeceu à Geração Neta – como se refere à juventude – presente no encontro, pelo acolhimento de si e de seu pensamento. Esperávamos confluir novamente com ele dentro em breve, mas o Orum tem as suas próprias demandas. 

Na ocasião, Nego Bispo foi o primeiro convidado para a ‘Formação de Construtores e Defensores de Territórios’, que reúne, até dezembro deste ano, povos, comunidades tradicionais, organizações políticas das esquerdas e demais militantes em luta. Todas, todos e todes se integram em ciclos formativos focados na construção de habilidades coletivas com o intuito de salvaguardar e fortalecer territórios a partir de saberes e fazeres tradicionais, sob uma perspectiva libertária, coesa com com as demandas naturais da Terra. 

Nós, Núcleos e Elos da Teia dos Povos, nos comprometemos a não deixar o legado de Nego Bispo adormecido. Como o alimento que vem da terra cuidada, e nos nutre de energia, as confluências com Bispo nos deixa mais fortalecidas e fortalecidos, assim como mais conscientes de que, urgentemente, é preciso corroer as estruturas perversas do colonialismo, combater o projeto linear que a branquitude tenta impor ao mundo. Nego nos ensina a olhar para dentro, a retomar da ancestralidade os modos de vida que foram esquecidos, roubados e manipulados pelo empreendimento colonialista. 

É preciso envolver-nos, contrariando o ‘desenvolvimento’. Bispo orienta a identificar os inimigos dos povos e comunidades contracoloniais, apesar das aparências diversas que estes vêm assumindo no passar do tempo. “Qual a diferença entre o ataque dos colonizadores contra o Quilombo de Palmares no século XVII e os atuais ataques praticados pelo grande capital contra as comunidades atingidas pelos megaprojetos, ditos “empreendimentos”, como, por exemplo, a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte?”, questiona logo na introdução de “Colonização, Quilombos: Modos e Significados”, criticando o programa desenvolvimentista do capitalismo, que promove metrópoles artificializadas e reservas naturais para o turismo, e alimenta o mercado das compensações ecológicas, tornando mercadoria o que, para nós, pode ser a nossa própria família – para parafrasear outro pensador confluente, Ailton Krenak, neto do Rio Doce, assim como todos os parentes de seu povo.  

 A visão histórico-crítica apresentada por Nego Bispo é fruto de sua análise das relações sociais a partir da perspectiva dos povos atacados pelas invasões europeias, e suas nefastas consequências posteriores. No entanto, sempre evidenciando o que em nós é mais forte, as ferramentas e instituições autônomas criadas pelos ajuntamentos contracoloniais em resistências, e revide, contra o status quo, enfrentando as prisões e limitações que o colonialismo, cotidianamente, introjeta através de seus valores ocidentalizantes. As roças de aldeia e de quilombo, as músicas e danças, as artes e artifícios de guerra e de trabalho, as pinturas, rabiscos, pixações e desenhos, as comidas, os modos de se expressar e gerar significados, as formas de organização social, a poesia e tudo o que alimenta as trajetórias contracoloniais, e, principalmente, as experiências de formação de quilombos e comunidades autônomas, economicamente autogeridas, têm a capacidade de nos direcionar nas retomadas de nós, dos nossos territórios e da vida digna. 

Esse panorama, visto desde uma unidade para a luta por Terra e Território, traduzida brilhantemente pelas palavras rebeldes de Nego Bispo, guia a Teia dos Povos, e fundamenta os nossos encontros, diálogos, ações e formações. Portanto, nos reunimos na construção da Universidade dos Povos, na composição de um horizonte de aprimoramento da teoria e da prática em agroecologia, abordando as suas dimensões territoriais, políticas, sociais, culturais, pedagógicas, comunicacionais, espirituais, antropológicas e científicas em diálogo com mestras e mestres dos conhecimentos tradicionais.

 Esta edição da ‘Formação de Construtores e Defensores de Territórios’ é uma homenagem ao Mestre Nego Bispo, como forma de agradecer pela sua influência revolucionária em nossa articulação. 

Quem é Nego Bispo

Mandacaru, xique-xique, coroa-de-frade e quipá 

Macambira, unha-de-gato, jurema e caroá 

A beleza dos espinhos 

Ornamentam os caminhos 

Onde eu gosto de andar   

Nego Bispo em “A Terra Dá, A Terra Quer”

Nego Bispo é radicalmente quilombola, um vivente contracolonial nascido e integrado no sertão brasileiro, na comunidade Papagaio, Piauí, em 1959. Morava e alimentava a sua trajetória no quilombo Saco-Curtume, onde foi enterrado, em 2023, sob a sombra de um angical, plantado como semente, após ter semeado tantas outras. Quando criança, recebeu do seu povo a missão de estudar a língua portuguesa padrão, a escrita e outras ferramentas ensinadas na escola normativa, a fim de representá-lo frente à sociedade, sendo o primeiro de sua família a acessar a educação formal, concluindo o ensino fundamental. Militou no Sindicato de Trabalhadores/as Rurais de Francinópolis e na Federação dos Trabalhadores na Agricultura no estado do Piauí, bem como atuou como membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (Cecoq/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Destacou-se nacionalmente como intelectual orgânico por apresentar o conceito de contracolonialismo, defendendo a rejeição total às práticas, valores, moralidade e culturas impostas pela dominação colonialista aos povos. São de sua autoria os livros “A Terra Dá, a Terra Quer” (2023) e “Colonização, Quilombos: Modos e Significados” (2015).

Nós, os outros animais, as plantas, o firmamento, as águas, o vento, enfim, a Terra – tudo biointerage em uma confluência infinita, circular, plural. Nego Bispo é uma dessas forças, que existem para encorajar as lutas por vida digna e plena, incendiando as consciências com versos revolucionários e saberes de territórios contracoloniais  (Ilustração: Dinelli / @dinelli)

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