Posted on: 14 de setembro de 2021 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Por Assentamento Terra Vista

Nesse exato momento, os povos originários estão em luta para defender suas terras, contra a tese do marco temporal. Eles sabem que esta é mais uma estratégia dos ruralistas, em conluio com o governo Bolsonaro, para destruir seus territórios. Eles sabem que o agronegócio transforma a terra em deserto, expulsando e assassinando todos os seres que cruzam o caminho dos tratores, das bombas de agrotóxico, dos correntões, enfim, de tudo aquilo que garante lucro e poder para os latifundiários. O agronegócio e seus velhos donos veem a terra só como mercadoria. E os povos originários sabem que, num mundo em que só a mercadoria tem vez, a vida não vale nada!

Nós, assentados e assentadas da Reforma Agrária – para citar um entre tantos povos da Terra – sabemos fazer a vida surgir dos destroços. Quantas sedes de assentamento Brasil afora não carregam em suas paredes as marcas de tiro de jagunços dos fazendeiros, no tempo da ocupação? Entre 1985 e 2019, 78,3 milhões de hectares, ou seja, 9,2% do território nacional, foram conquistados pelos movimentos de luta por terra e se tornaram projetos de assentamento*. Com muito suor e sangue dos nossos, em cada uma dessas 9.415 comunidades, um latifúndio morreu. Mas, agora, ele quer tomar de assalto os territórios que cultivamos a duras penas.

Não aprendemos nada com a luta de nossos parentes indígenas? Nós, ao que parece, não entendemos nada e, ainda por cima, os deixamos brigando sozinhos! O governo Bolsonaro, o congresso nacional e os ruralistas estão trabalhando dia e noite para também destruir as conquistas dos movimentos sociais que lutam e lutaram pela terra. Os engravatados sabem muito bem que se eles nos tomam nossos territórios, toda e qualquer forma de organização dos povos da Terra, das Águas e das Marés desmorona. E nós? Queremos voltar para as ruínas?

É isto que o absurdo programa “Titula Brasil” quer fazer. Nele, o município fica autorizado a mediar a divisão dos lotes de seus assentamentos e facilitar que cada um deles tenha o título de propriedade. Para a promessa do título se efetivar, o assentamento passa a ser considerado “consolidado”, algo que já estava previsto na própria lei da Reforma Agrária. Nela, esperava-se que, depois de 15 anos, o Incra tivesse cumprido com suas obrigações, como por exemplo, a concessão de crédito e a realização de obras de investimento. Na prática, muitos assentamentos conquistados há 20 ou mesmo 30 anos atrás não receberam sequer os créditos iniciais**.

É fácil entender onde isso vai dar! Com apenas uma canetada, o Incra foge de suas responsabilidades e ainda promete um pedaço de papel que termina por transformar a terra em mercadoria. Sem esperança de ter suas demandas atendidas, os assentados colocam suas áreas à venda para pessoas e empresas que não são beneficiárias da Reforma Agrária, o que cria uma série de problemas internos à comunidade, fazendo com que mais e mais assentados ponham seus lotes no mercado de terras e assim sucessivamente até que o latifúndio retorne definitivamente.

Há quem diga que o Titula Brasil não quer facilitar a venda dos lotes; quem argumenta assim, diz que, com o título em mãos, é mais fácil conseguir créditos para produzir. Mas não nos iludimos: em todas essas décadas, a gente só teve crédito quando foi para a luta! E mais: em todas essas décadas, sentimos na pele que não há espaço para os pequenos agricultores no capitalismo. Nesse sistema, só o agronegócio tem vez. E, para vencê-lo, não existe salvação individual. As terras que ocupamos e que são hoje nossa morada, nossa fonte de sustento e de vida, são nossas por direito. O título de propriedade não nos garante nem a posse, nem o direito a ela!

Bastou um pouco de estudo, memória e escuta aos nossos parentes indígenas para entender a jogada dos nossos inimigos. Aqui, o Assentamento Terra Vista tomou uma decisão importante: não vai se render e nem entregar suas terras para o formato do quadrado burro do INCRA. Nossa terra não pode ser dividida porque ela não é a soma dos lotes. Nossa terra é nosso território! Aqui, quem manda somos nós em conjunto. Aqui, os peixes, o rio, a floresta, a água mineral, as árvores que dão frutas e remédio são patrimônio comum e não pertencem a ninguém individualmente. Por isso, dissemos não à divisão em lotes individuais de 25 hectares e dissemos não a qualquer tentativa de nos dividir ao tentar cortar nossas roças. Dissemos não a Bolsonaro, não ao INCRA, não aos oportunistas e não aos militantes sem consciência de classe. Reafirmamos nossa história e nossa caminhada: essa terra tem dono e tem muito sangue derramado sobre ela! E recuperamos nosso compromisso: essa terra nunca voltará ao latifúndio!

Mas há uma contradição enorme que não estamos enfrentando. Na base dos movimentos sociais, estão fortalecendo esta iniciativa do INCRA em aliança com prefeituras e estão incentivando assentados de Reforma Agrária a aceitarem a divisão das terras. Por onde andamos e para onde olhamos vemos assentamentos históricos, frutos de duras lutas, aceitando abrir mão de seus princípios para entregar a terra ao capital e à política desse genocida.

Precisamos abrir um debate sincero: militantes dos movimentos lutaram para romper as cercas dos latifúndios. Vamos, hoje, fomentar a construção dessas mesmas cercas, contratando empresas, pagas com dinheiro dos próprios assentados, para dividir os lotes e assim implantar a política do Governo Bolsonaro? O que está acontecendo com a base e com alguns militantes? Estão falando a mesma língua de Bolsonaro? Estão achando que não tem jeito e preferem se dar como derrotados antes de enfrentar a batalha? A base está tão fragilizada – sem ideologia, sem princípios – a tal ponto de se curvar ou são militantes que estão agindo de forma oportunista? O que queremos? O que fizemos na trajetória de luta deve ser entregue aos nosso inimigos? Estamos cansados de falsos militantes que fazem discurso radical, mas têm uma prática conservadora, reformista, inimiga do Povo dos assentamentos que passaram a vida inteira lutando por terra e território. Essas são algumas de nossas inquietações. Queremos seguir esse debate com todos os povos em luta para encontrar nosso caminho e radicalizar nossa defesa da vida, da terra e do território!

*Dados do Incra (2020) citados na Nota Técnica – AATR/Setor de Direitos Humanos do MST (Bahia), que traz uma profunda análise do Programa Titula Brasil, incluindo-se aí a **atual situação dos assentamentos do estado. Para acessar o material completo, clique aqui.

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