Posted on: 15 de março de 2021 Posted by: arkx Brasil Comments: 2

Por Arthur de Melo Sá.

Estava em casa em mais uma sexta-feira pandêmica na cidade mais contaminada de Minas Gerais: Uberlândia. Às 15h do dia 05 de março de 2021 começou um movimento espontâneo de motoristas do transporte público, sem qualquer apoio ou assistência do sindicato ao qual eram filiados (o SINTTRURB), de partidos, de movimentos sociais, organizações ou coletivos. Era o início de uma luta que manifestava de maneira muito clara o “nós por nós”.

Desde janeiro as motoristas e os motoristas vinham sendo atacados pelas empresas onde trabalham. Essas empresas privadas sãoas que prestam o serviço de transporte público na cidade – uma das doces contradições do capitalismo. Os ataques dessas empresas envolvem: parcelamento de salários, cortes de vale alimentação, de cestas básicas e de convênios com planos de saúde e odontológico.

Para deixar claro quem são os inimigos da classe, gostaria de salientar os nomes dessas empresas e seus respectivos donos: Sorriso de Minas, controlada pela família Gulin; São Miguel, controlada pelas famílias Carvalho e Duarte, pela Viação Carmo Sion e pelo Expresso Rodoviário 1001 (ambas as empresas pertencendo às mesmas famílias Carvalho e Duarte e sediadas, respectivamente, em Belo Horizonte e São Luís – MA); e Autotrans, controlada pela família Carvalho e pela Saritur (outra empresa de transporte das mesmas famílias Carvalho e Duarte com sede em Belo Horizonte).

Se quiser, você pode conferir essas informações aqui:

– Sorriso de Minas

– Autotrans

– São Miguel

Eis uma luta que se iniciava contra oligarquias, contra o estado e contra os supostos mediadores entre o estado e a classe trabalhadora –queseria o papel do SINTTRURB (Sindicato dos Trabalhadores no Transporte Coletivo Urbano de Passageiros De Uberlândia).

O ataque das oligarquias é muito óbvio. As pessoas trabalharam os meses de janeiro e fevereiro e estão vendo o devido pagamento ser atrasado e/ou cortado. Para piorar, boa parte das pessoas que iniciaram o movimento no dia 05/03 foram demitidas. Ao todo, ocorreram mais de 120 demissões, mas a maior parte foi revertida pelas próprias empresas antes que se iniciasse o litígio jurídico. No momento em que escrevo este texto, somam-se 29 demissões por “justa causa”. A alegação das empresas é que a greve era ilegal e que as motoristas e os motoristas simplesmente faltaram ao trabalho.

Os ataques do estado vêm, como de costume, embalados em neoliberalismo: sucateamento de serviços públicos, descaso com a vida e a saúde de trabalhadores e trabalhadoras, inclusive de serviços essenciais, como motoristas. Desde o início da pandemia, a prefeitura autorizou a redução do número de ônibus em Uberlândia. A desculpa era que o número de passageiros seria menor, devido às (inúteis) medidas de restrição. O resultado: maior taxa de ocupação dos ônibus, maior disseminação do vírus e nenhum cuidado com a saúde de trabalhadoras e trabalhadores. Até o momento já faleceram 16 motoristas, e o estado não se moveu para cuidar das famílias.

Por fim, os ataques dos mediadores vieram na figura do SINTTRURB, personificados em seu presidente, Márcio Dúlio de Oliveira. Desde o dia 05/03, o sindicato vêm se pronunciando que a greve espontânea era ilegal, e que grevistas não estariam aparadas pela legislação ou pelo próprio sindicato. O presidente do sindicato, Márcio Dúlio, filiado ao PDT e à CUT, deu diversas entrevistas desde o dia 05/03, informando que não apoiava a greve espontânea, ainda que as pessoas ali fossem sindicalizadas. A partir daí as empresas se sentiram livres para poder atacar, demitindo as pessoas que estavam em greve que identificavam como “lideranças”.

No sábado, dia 06/03, o descaso do sindicato chegou ao ponto de grevistas ficarem em situação de insegurança alimentar. Trocando em miúdos: o SINTTRURB deixou grevistas sindicalizados passarem fome.

Foi neste ponto que a própria população de Uberlândia se solidarizou com a greve espontânea. No próprio sábado (06/03), outros sindicatos (como o SINTET) e movimentos (como o Coletivo dos Atingidos pelo Coronavírus em Uberlândia) se organizaram para levar o almoço e água para as grevistas e os grevistas.

Ao longo da semana, do dia 08 a 12/03, foi possível organizar uma grande frente para garantir a segurança alimentar das pessoas em greve. Participaram dessa frente: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Central de Movimentos Populares do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba (CMP), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Sindicato dos Trabalhadores Técnico-Administrativos em Instituições Federais de Ensino Superior de Uberlândia (SINTET), o Coletivo dos Atingidos pelo Coronavírus em Uberlândia, os gabinetes das vereadoras Dandara Tonantzin (PT), Amanda Gondim (PDT) e Cláudia Guerra (PDT) e movimentos estudantis, como o Centro Acadêmico do curso de história da UFU. A Teia dos Povos contribuiu com a articulação dessa frente, em uma aliança de solidariedade entre campo e cidade, para que fossem entregues mais de 300 refeições, assim como doações de legumes e verduras, fruto de cultivo agroflorestal nos assentamentos do MST, e de cestas básicas.

O objetivo dessa frente de solidariedade era garantir a segurança alimentar das famílias atacadas pelos oligarcas e pelo estado e deixados à própria sorte pelo sindicato. E através dessas ações conseguimos garantir que 60 famílias não ficassem entregues à fome a ao desespero, o que possibilitou que a luta se estendesse por, pelo menos, uma semana.

Uso aqui esse “pelo menos” pois a luta contra as demissões e pelo pagamento dos salários e benefícios continua. O SINTTRURB convocou uma greve que foi iniciada no dia 11/03, com as mesmíssimas demandas da greve espontânea iniciada dia 05/03. Só existe uma diferença: o sindicato não está pautando a readmissão das pessoas que foram demitidas por participarem da greve. Até o momento, ainda há 29 pessoas demitidas por “justa causa”, e a única coisa que o SINTTRURB se prestou a fazer foi acompanhar cada caso individualmente. Por isso, a frente de solidariedade está organizando doações de cestas básicas para essas famílias, para que não passem por ainda mais dificuldades enquanto as demitidas e os demitidos procuram outros empregos.

É importante destacar que a efetividade dessa frente foi possível graças à atuação das cozinhas comunitárias, organizadas por MTST, CMP e CPT, e dos assentamentos rurais organizados pelo MST.

O projeto das cozinhas comunitárias começou em 2020, diante do avanço da covid-19 e do descaso do estado em todos os seus níveis em relação à população. Os movimentos de luta popular conseguiram construir ao todo seis cozinhas comunitárias, sendo que cinco delas ficavam dentro das próprias comunidades: as ocupações Santa Clara, Maná, Fidel Castro, Glória e Dom Almir. Havia ainda uma cozinha na sede da CMP que atendia as ocupações Bela Vista, Irmã Dulce e Canaã. Ao longo de 2020, as cozinhas produziam ao todo mais de 2000 refeições por dia. E boa parte dos alimentos que recebiam eram fruto de doações de institutos, sindicatos, movimentos e partidos de esquerda.

Aqui também se via a atuação dos assentamentos do MST: Emiliano Zapata, Flávia Nunes, Eldorado dos Carajás, Canudos e Florestan Fernandes. Esses assentamentos garantiam o estoque de legumes, verduras e frutas das cozinhas comunitárias. É importante destacar que esses assentamentos têm toda sua produção em sistemas agroflorestais. Nesse sentido, além de contribuir com a segurança alimentar, é possível levar alimento saudável e sem nenhum tipo de veneno para as mesas de moradores das ocupações e das grevistas, dos grevistas e de suas famílias.

Neste ponto gostaria de destacar o papel de uma das responsáveis pelas refeições: Dona Cida, que coordena a cozinha da ocupação Maná.

A Dona Cida mora na ocupação Maná em uma casa erguida com a ajuda do pai, Seu Zezinho. Ela lutou muito para conquistar seu terreno e construir a casa. Com ela moram o esposo, as filhas e netos. E todos os dias ela recebe outras crianças da ocupação, que precisam de cuidados enquanto pais, mães e responsáveis saem para trabalhar.

Em 2020, a Dona Cida se prontificou a coordenar uma cozinha comunitária no Maná. Através da arrecadação de materiais de construção e alimentos, foi possível construir a cozinha comunitária na parte da frente do terreno onde mora.

Desde então, todos os dias Dona Cida e diversas voluntárias que também moram no Maná cozinham o almoço de pelo menos 200 pessoas. Ao longo de todo ano, a ação dessas grandes mulheres ajudou o Maná na luta.

É uma luta contra escassez. É uma luta contra candidatos à prefeitura e à vereança interesseiros. É uma luta contra o próprio prefeito, que ainda hoje quer ver a cozinha fechada e faz de tudo para atrapalhar.

É uma luta contra o capital, representado aqui na figura da Uberlândia Refrescos – a responsável por distribuir produtos como a Coca-Cola na região e interessada na destruição da ocupação Maná, que ocupa parte de uma área que era posse da empresa.

No sábado, dia 06/03, ao saber da situação das grevistas e dos grevistas, a própria Cida se prontificou a preparar as refeições. A frente de solidariedade ainda nem havia sido organizada, e Dona Cida já estava contribuindo para a construção autônoma e solidária da segurança alimentar de motoristas em greve.

Dona Cida é o coração e a força na construção da luta autônoma por território e por uma vida digna na ocupação Maná. E, nos momentos de crise, Dona Cida esteve e está junto das motoristas e dos motoristas em greve, lutando em solidariedade contra o capital e contra o estado.

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