Posted on: 24 de março de 2022 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Uma conversa com Rita Ferreira, militante do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB), moradora e uma das fundadoras da Ocupação Quilombo Paraíso

Por Marta Cerqueira Melo*

O MSTB surgiu a partir da cisão do Movimento dos Sem Teto de Salvador (MSTS), fundado em 20 de julho de 2003. A origem do MSTS foi marcante por sua grande capacidade de mobilização social, a sistemática atuação visando a ocupação de prédios e terrenos sem função social na cidade e o forte impacto que causou sobre o povo, a mídia local e o Estado. A composição social histórica do Movimento é de pessoas desempregadas, sub-empregadas, mães trabalhadoras solteiras e catadoras de resíduos sólidos. Foi em 2006, com a cisão do MSTS, que o Movimento Sem Teto da Bahia se consituiu como movimento autônomo, independente e classista (MIRANDA, 2008).

Em breve, 120 famílias que hoje vivem em Paraíso vão se mudar para o Residencial Paraguari II, empreendimento de urbanização integrada de interesse social do Programa Minha Casa, Minha Vida do Governo Federal. Essas famílias do MSTB foram integradas ao Programa por serem remanescentes da área na qual o conjunto foi construído, uma vez que precisaram sair do local onde viviam anteriormente para dar espaço à construção do Residencial Paraguari II, em novembro de 2018.

Ocupação Quilombo Paraíso em 2015, antes da mudança de local

A construção ocorreu em área de propriedade da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (EMBASA), localizada em uma Zona de Proteção Ambiental da cidade de Salvador, na Área de Proteção Ambiental (APA) Estadual Bacia do Cobre/ São Bartolomeu.

Ela foi realizada pela empresa Gráfico Empreendimentos, contando com os devidos alvarás de licença para terraplanagem, licença ambiental unificada e autorização de supressão de vegetação concedidos pela Prefeitura. A obra foi financiada pela Caixa Econômica Federal, teve início em outubro de 2018 e o término previsto para junho de 2020.

Desde o dia 16 de julho de 2019, os recursos financeiros concedidos pela Caixa Econômica, contratados no âmbito do Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) integrante do Minha Casa, Minha Vida, seguem novas diretrizes. Atualmente estes recursos, provenientes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), integram o Programa Casa Verde e Amarela.

Placa da obra de construção do Residencial Paraguari II na APA Estadual Bacia do Cobre/ São Bartolomeu, no bairro de Periperi, Subúrbio Ferroviário de Salvador

Existem duas ocupações do MSTB nas bordas da APA Bacia do Cobre. Além da Ocupação Quilombo Paraíso, fundada em 2009, há a Ocupação Quilombo Manuel Faustino, fundada em 2016. Ambas ocupações surgiram com o processo de urbanização da cidade de Salvador e, mais especificamente, com a construção do Hospital do Subúrbio – hospital geral público inaugurado pelo Governo do Estado da Bahia em 2010.

De acordo com o Termo de Acordo e Compromisso (TAC) firmado entre o município de Salvador, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), e a EMBASA, o Residencial Paraguari II deve contar com áreas comercializáveis, condominiais, de recreação e lazer (centro comunitário e parque infantil), área livre entre blocos, estacionamento, quadras poliesportivas, abrigo de lixo, áreas públicas (áreas verdes e sistema viário), áreas institucionais e estação elevada de esgoto.

As áreas institucionais do conjunto deverão atender a demanda das famílias que viverão nele e a demanda das 404 famílias que vão residir em outro empreendimento construído na APA Bacia do Cobre, o Residencial Paraguari I.

Segundo informações correntes, a maioria das unidades habitacionais do Residencial Paraguari II será destinada a pessoas que recebem algum tipo de compensação por desapropriações e remoções realizadas pelo Governo da Bahia em função das obras públicas de infraestrutura concluídas recentemente ou em processo de execução em Salvador.

Além das obras públicas para construção do Hospital do Subúrbio e dos Residenciais Paraguari I e II na APA Bacia do Cobre, destacam-se na cidade as obras de implantação e operação do Sistema Metroviário de Salvador e Lauro de Freitas (SMSL), de construção de acessos viários à Ponte Salvador-Ilha de Itaparica, do novo Terminal Rodoviário de Salvador e as obras de implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT)/ Monotrilho do Subúrbio.

Neste contexto em que a política de habitação é convertida em instrumento do processo de valorização do capital (ALVAREZ, 2012) através das grandes obras públicas de infraestrutura, dinamizando principalmente os setores da construção civil, imobiliário e turístico atuantes na cidade, o Residencial Paraguari II será o novo espaço de vida de pelo menos três grupos sociais. Estes grupos são compostos de famílias do MSTB organizadas na luta por moradia, famílias desterritorializadas pela implantação de grandes obras de infraestrutura e famílias de baixa renda sorteadas pela Sedur.

Vista do Residencial Paraguari II (canto central esquerdo) e da atual Ocupação Quilombo Paraíso (direita), em dezembro 2019

A atuação em defesa da APA Bacia do Cobre, desde 2009, marca a virada agroecológica do MSTB que, em 2017, inicia projetos de construção de hortas comunitárias nas ocupações e também começa a participar das reuniões do Conselho Gestor da APA.

A partir de 2019 o Movimento é integrado ao coletivo Guardiões da APA Bacia do Cobre/ São Bartolomeu, mesmo ano em que organiza a Primeira Pré-Jornada de Agroecologia, na Ocupação Manuel Faustino.

Desta forma, o movimento urbano de luta por moradia torna-se núcleo de base da Teia dos Povos em Salvador e Região Metropolitana e compõe, na atualidade, a articulação de comunidades, territórios, povos e organizações políticas do campo e da cidade em torno do projeto de terra e território pela via da autonomia.

Nas palavras que seguem, Rita Ferreira rememora e relata a sua experiência na Ocupação Quilombo Paraíso, explicando como a luta do MSTB por moradia se apresenta também como luta por território.

Para ela, o Residencial Paraguari II pode ser transformado em uma referência em agroecologia: um equipamento popular e agroecológico na APA Bacia do Cobre/ São Bartolomeu, contribuindo para o fortalecimento das redes populares de agroecologia voltadas para as necessidades da população em situação de vulnerabilidade social nas zonas periféricas dessa grande cidade que é Salvador.

Da construção do Hospital do Subúrbio aos Guardiões da APA Bacia do Cobre

Antigamente, antes de ser construído o Hospital do Subúrbio, existia uma comunidade aqui. Nessa comunidade, a energia era de arame farpado, porque elas não tinham energia. Elas começaram a puxar o famoso gato. Gato não, que a gente não chama gato. Eles falam gato. Mas nós falamos energia alternativa.

Devido à necessidade de moradia para muitos, a galera foi e começou a ir ocupando esse espaço da Sílvio Araújo. Aqui na Rua Sílvio Araújo existia um areal. As pessoas vinham e pegavam o arenoso para vender aos depósitos.

Nos anos 1980, começou a construção do conjunto habitacional Mirantes de Periperi. Depois que construiu o Mirantes de Periperi, eles desceram e construiram o conjunto Colinas I, lá nos idos de 1985 e 1986. Quando chega em 1987, quando começam a construir o Colinas II, estoura a Nova Constituinte – que é uma das maiores ocupações que existem na cidade de Salvador. Ela é a primeira, e a segunda é o Bairro da Paz.

Entre 1987 para os anos 1990 surge o Colinas II. Quando isso acontece é que essas famílias daqui, desse território que estou pisando agora, vieram ter energia. Porque até então elas viviam de vela, de candeeiro, não tinham fogão e cozinhavam à lenha. Era rural mesmo e viviam do plantio. Então, era uma casa aqui, outra casa lá…

Aí o Governo do Estado fez um projeto de construção de um hospital, que é o Hospital do Subúrbio. Só que esse hospital ia ser construído em cima de uma Área de Preservação Ambiental. Nós participamos de algumas reuniões, sabíamos disso.

Então, antes do hospital ser construído, nós ocupamos ao lado, entendendo que, já que poderia construir um equipamento de grande porte, poderia também garantir moradia ao lado para as famílias. Por isso que nós ocupamos a área onde está o Residencial Paraguari II em 2009.

Nós nos organizamos para ocupar esse espaço porque aqui era um ponto de desova, onde o braço forte do Estado matava os jovens, e todos os dias amanheciam corpos dentro desse território. E aí começou a terraplanagem do Hospital do Subúrbio. Então eles deslocaram o ponto de desova que era ali, próximo ao hospital, e aí começaram a desovar os corpos onde hoje tem a Ocupação Paraíso.

O Movimento Sem Teto, para dar um basta nisso, foi dar uma função social – que não é a de desovar os corpos dos nossos jovens, mas sim de garantir moradia para as famílias e fazer com que, naquele espaço ali, o Estado não tivesse mais condições de desovar corpos dos nossos jovens. Então nós ocupamos o espaço por causa disso.

Essa ocupação foi criada mais como uma forma de enfrentamento ao Estado: para que eles, os capitães do mato, o braço forte, parassem de usar o ponto como ponto de desova e também para ajudar algumas famílias do entorno que estavam com suas casas rachadas.

Vista aérea do Hospital do Subúrbio em 2020, com Hospital de Campanha ao lado (esquerda) aberto para acomodar os leitos extras durante a pandemia de COVID-19

(Foto: Hospital do Subúrbio)

Aqui era um espaço rico em vegetação, porque é a Bacia do Rio do Cobre, tem a APA. Essa era uma área que era conhecida como território do barbatimão, e foi tudo para o chão para essa construção do Hospital do Subúrbio. Então, quando a Ocupação surge, o terreno já estava degradado. Não tinha plantação nenhuma. Também tinha um rapaz aqui que criava boi e ele contribuiu com o desmatamento, porque queria fazer pasto para os bois dele. Aí a gente ocupou o espaço que estava degradado para reflorestar. Para a construção do Paraguari II teve derrubada porque tinha muito pé de nicuri e pé de coco.

Nesse espaço onde está o Hospital, existiam famílias no entorno. Como era um areal, fizeram um campo, então tinha no máximo 300 famílias morando entre o Colinas II e o areal. Agora, nessa forma que eu estou falando: rural. A galera tinha suas casas de taipa, tinha seu quintal que plantava.

Apesar deles terem que desapropriar várias famílias para poder construir o Hospital do Subúrbio, a construção chamou atenção de várias famílias também para virem para dentro da Sílvio Araújo. Então, aquelas pessoas que tinham terreno, e que viviam desempregadas, sem ter condições, começaram a vender o ladinho da sua casa, para que outras pessoas viessem morar. Mas quando isso aconteceu, nós já estávamos com a Ocupação dentro do território.

Eu vim junto com mais 10 pessoas para ocupar esse terreno, que era o terreno na parte de cima, onde está o equipamento. Por isso eu sou uma das fundadoras da Ocupação Quilombo Paraíso. É também quando eu entro no MSTB. Quando eu vim para cá eu tinha casa. Eu não precisava estar dentro de uma ocupação. Mas o que me fez ficar dentro da ocupação foi a luta. Foi ver e viver aquilo que as famílias estavam passando naquele momento. Então, foi quando eu vim, com uma amiga minha que me chamou. Eu achava que nas ocupações só tinha ladrão, então ela me chamou para ver.

Foram várias pessoas do Subúrbio Ferroviário e principalmente as pessoas que moravam aqui, na Sílvio Araújo, que vieram para Paraíso. Mas, por que essas famílias que moravam na Sílvio Araújo, que era onde nós abrimos a ocupação, vieram para dentro da Ocupação? Porque eram famílias que estavam recebendo auxílio aluguel porque as suas casas estavam condenadas. Aí a Codesal [Defesa Civil de Salvador] e a Conder [Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia] dão três meses de aluguel e depois não dão mais.

Essas famílias tinham que voltar para suas casas rachadas e com problemas, que a qualquer momento poderia cair em cima delas e dos filhos. Então, quando nós ocupamos o terreno, nós tiramos essas pessoas de dentro dessas casas que estavam condenadas, colocamos dentro da ocupação e começamos a pressionar a Conder para que resolvesse o problema dessas famílias.

E fora que teve famílias que foram indenizadas pela construção da obra do Hospital do Estado, mas a casa era em um terreno grande, tinha mais de cinco, seis casas, só que elas moravam há muitos anos e não tinham a escritura do terreno. Então o dinheiro que foi passado para elas só dava para comprar uma casa. E as outras famílias, como é que ficavam? Algumas famílias vieram para dentro da Ocupação. Mas elas não permaneceram porque nós conseguimos resolver esse problema delas com o Governo do Estado.

Desas 450 famílias, tinha vinte do interior do Estado e as outras todas do Subúrbio Ferroviário, do Lobato até Paripe. Eram pessoas que viviam de aluguel e estavam desempregadas. Não tinham moradia e quando sabe que o Movimento ocupou vai lá porque o terreno dela é garantido para ela construir o barraco dela de plástico primeiro, depois de madeirite e se ganharmos o terreno construir de bloco ou então mudar para esses apartamentos.

Eu tinha casa, mas, de 450 famílias, a única que tinha casa era eu. E as outras não tinham. Eu hoje estou dentro do Movimento Sem Teto porque eu me identifico com a luta, eu penso em uma sociedade mais igualitária. Eu vim aprender isso dentro do Movimento. E esse é o meu trabalho, estar dentro das Ocupações, tentando garantir moradia para essas famílias.

Mas não só moradia. Garantir qualidade de vida. Uma vida melhor, mais saudável e sustentável, trabalhando todos esses temas que hoje a gente discute que é a saúde, a segurança… Uma segurança pautada para nosso povo, uma saúde de qualidade para o nosso povo, uma educação de qualidade para o nosso povo: essas são as pautas. Não são só as quatro paredes.

Por isso que hoje eu estou aqui na Ocupação, entendendo que quase todo mundo da Ocupação ou tinha casa e perdeu para o companheiro ou morava na casa de um parente e o parente tomou ou morava de aluguel e não teve mais condição de pagar o aluguel. São essas pessoas que estão em todas as Ocupações do Movimento Sem Teto.

Em agosto de 2009, quando a polícia chegou e derrubou todos os 450 barracos, naquele dia eu nasci. Foi ali que eu nasci para a luta. Eu vi aquela cena, a forma como o Estado agiu com aquelas famílias. Eu disse: “olhe, de hoje em diante eu não saio mais daqui”. E estou aqui dentro da Ocupação até hoje. Porque o Estado não assumiu com nada que ele prometeu a essas famílias. Nada. Tem meio mundo de casa rachada aí dentro. Porque quando faz a terraplanagem tem uma máquina que bate tão forte que o chão treme. Tem casas que não têm ferro. Porque quando você vai fazer uma casa, você faz alvenaria de ferro. Mas tem pessoas que não têm condições, faz de bloco deitado, suspendem a casa. Todas as casas de blocos deitados aí estão rachadas.

Então, existem várias coisas que fazem com que uma pessoa venha para dentro de uma ocupação. Quando nós ocupamos aqui, existiam as carvoeiras. As pessoas tinham carvoeiras na mata porque tiravam a sua sobrevivência através disso. Em contato com o gestor da APA na época, nós do MSTB fizemos um levantamento e ele conseguiu cadastrar todas essas famílias no Bolsa Família.

Então essas famílias deixaram de fazer as carvoeiras e nós começamos a plantar alguns pedaços – algumas árvores, algumas plantas para poder preencher aquele espaço que estava queimado. Só que nós achamos isso pouco, porque tinha o outro lado, que era o que dava para a Estrada do Derba. Por isso resolvemos ocupar, em 2016, a área que hoje é a Manuel Faustino, porque uma ocupação ficava de um lado e a outra ficava do outro, e a gente ia ter o controle daquele espaço entre uma ocupação e outra.

A gente ainda não entendia muito bem como, mas tinha esse pensamento de depois começar a plantar as árvores dentro da mata nos espaços onde as pessoas tinham desmatado, onde foram feitas as carvoeiras. E realmente, a maior parte desses reflorestamentos que estão no entorno fomos nós do Movimento ao longo desses 13 anos que fizemos. Porque esse era um espaço vazio. Era ponto de desova. Já que a Embasa, que era a empresa que tinha o dever de cuidar do território, não estava cuidando, então ela podia deixar que a comunidade ia cuidar.

Antigamente, os Guardiões da APA Bacia do Cobre nos tinham como inimigos, pois diziam que nós estávamos ocupando terrenos, etc. Em setembro de 2017, teve um evento na UFBA de Ondina para discutir a questão dos parques públicos de Salvador, e o Movimento foi convidado a fazer parte dessa mesa porque tinha as ocupações próximas à APA Bacia do Cobre. Foi discutido dentro da Coordenação do MSTB quem iria para a mesa. Foi escolhido que eu fosse pelo fato de eu estar com os pés fincados em uma ocupação que estava próximo ao território da Bacia do Rio do Cobre.

Quando eu cheguei lá, eu expliquei a preocupação do MSTB com a Bacia do Rio do Cobre e quais foram as estratégias adotadas até então para a gente poder trabalhar. Nós ainda não tínhamos esse negócio de projeto, foi algo que surgiu de um movimento organizado. Existiam muitas carvoeiras, nós eliminamos as carvoeiras. Só que nós fazíamos isso tudo e eles não sabiam.

Então, quando estava nessa mesa e comecei a explicar porque ocupamos esse espaço, quais eram nossos elementos para transformação da Bacia do Cobre, foi que uma das guardiãs que lá estava veio entender, de fato, qual era o projeto político-ideológico do MSTB dentro do território do Subúrbio Ferroviário.

Ela então acionou o coletivo dos Guardiões para que viessem fazer no entorno da Bacia, aqui próximo ao Hospital do Subúrbio, uma trilha para identificar alguns pontos que eu tinha pautado lá no evento e ver se nós realmente tínhamos transformado a área. Foi aí, em 2019, que eles vieram e o Movimento oficialmente começou a aparecer nas placas que são espalhadas na cidade de Salvador em áreas de preservação ambiental, como um dos Guardiões da APA Bacia do Cobre.

As condições de habitação no Residencial Paraguari II

Para falar desse equipamento aí, a gente precisa falar de todos os equipamentos do Minha Casa, Minha Vida dentro da cidade de Salvador e fora também. O Minha Casa, Minha Vida é financiado pelo Governo Federal, que entrega a grana para os grandes empresários, que têm suas empreiteiras para construir.

Mas não é um projeto pensado com a participação popular. Por exemplo, não sentaram com a comunidade para discutir aquilo ali, para fazer um levantamento de quantas mulheres iam para lá, quantos filhos tinham, quantos quartos precisavam, não. Simplesmente chegam com um projeto, nos empurram goela abaixo. Assim como esse, os outros equipamentos aqui de Salvador não são diferentes.

A gente entende que o projeto Minha Casa, Minha Vida não foi construído para nós. Isso foi só para poder dizer à sociedade que estava fazendo algo em questão de moradia. Porque esses equipamentos são em sua maioria compostos de mães solos. Mas são equipamentos que são construídos longe de tudo, não tem nada perto. Um equipamento que é construído sem uma creche, sem uma escola, sem um posto de saúde, sem a mobilidade urbana.

Aqui na Ocupação tem 120 famílias que vão morar em um apartamento de 36 m². Um apartamento que é sala, 2 quartos, cozinha, banheiro e área de serviço. A cozinha tem a pia e a lavanderia lá no canto. Mas se você colocar o armário, uma geladeira e um fogão você não tem área de serviço. Então é sinal de que eles pensam que pobre não tem nada. Pobre não tem direito a nada.

Liliane é uma mulher com um companheiro e tem 4 filhos. No quarto da criança só cabe um beliche e um guarda-roupa. Mesmo se tiver uma mãe com 1 filho, no segundo quarto vai ter um beliche, um guarda-roupa (e a porta tem que ser de correr), mas não pode colocar uma banquinha para um computador para o nosso filho estudar, porque não tem espaço.

Então, esse modelo de moradia não é para nós. Nós temos filhos. Nós queremos espaço para os nossos filhos e não tem. Como é que pode fazer um equipamento sem uma creche? Essas mulheres vão trabalhar, vão largar os filhos onde? De que forma essas mulheres vão tirar a sobrevivência?

Porque até agora elas moram dentro de um barraco de madeirite onde não têm despesa com água, não têm despesa com luz. Quando elas passarem para esse equipamento, elas vão ter despesa com água, despesa com luz e condomínio. E não vão pagar mensalidade por causa do MSTB, mas os outros projetos do Minha Casa, Minha Vida pagam uma mensalidade. Então, vai começar a gerar despesa: ou elas pagam essas despesas ou elas comem.

Para muitos que moravam na sua casa, que tinham o fundo do seu quintal, que lavavam roupa ali, plantavam um tomate, plantavam um pimentão, vai ser difícil conviver dentro de um apartamento.

Então o que é que eles vão fazer? Vão vender. E esses equipamentos Paraguari I e II, eles foram construídos realmente para a galera que foi impactada pela obra do Estado. Mas ela vem de uma forma bem perversa, porque essas famílias não vão ficar nesses apartamentos. Essas famílias vão vender.

Os verdadeiros donos pensados pelo sistema não são eles. Tudo bem que a maior parte é ação indenizatória, mas vai vir o IPTU – porque isso aqui vai valorizar, a rodoviária vai vir aqui para o lado…

Vista do Residencial Paraguari II desde Paraíso durante mobilização comunitária (2019)

Então, quando o bicho pegar, as famílias vão vender e vão comprar uma casa. A pessoa que tem um poder aquisitivo maior vai comprar esse apartamento, e aí lá na frente isso aqui se torna um espaço de classe média. É o processo de gentrificação: vem o monotrilho, tirou as famílias do entorno da praia. Famílias que viviam ali ao longo de muitos anos. Cinquenta, sessenta e até de cem anos tinha, porque herdaram as casas dos seus parentes. Porque aí a gente não está discutindo só o equipamento. Está discutindo o equipamento dentro do Subúrbio Ferroviário.

Daqui a vinte anos, a nossa orla vai estar uma selva de pedras. Todos esses projetos voltados para o subúrbio, eles não são aleatórios. Aí entra o papel dos movimentos sociais. É o papel da conscientização: quem somos nós dentro desse território? A gente precisa ter dimensão e propriedade disso, porque senão a gente vai ser expulsa de Salvador.

Nesse equipamento só vai ter 120 famílias do MSTB. Com algumas das outras 600 famílias eu já tive contato quando nós fomos entregar a documentação na Sedur. São famílias que vêm de outros territórios que foram impactados pelas obras do Governo do Estado. Elas vão vir para dentro de um território desconhecido.

Então a gente precisa ver de que forma nós vamos receber essas famílias. Elas precisam se sentir abraçadas por nós, porque elas estão saindo de um território para outro. Eu acho que isso vai definir a participação delas nessa construção: é a forma como vamos recebê-las. E essas famílias estão vindo de longe, perderam suas casas. Por isso que na real a nossa briga é por território.

A nossa briga é por território: elas, onde moravam, a mãe morava perto, as irmãs moravam perto. Elas iam trabalhar, a irmã ou a mãe tomava conta dos filhos. Ou o vizinho tomava conta dos filhos… Aqui elas vão estar em um território estranho. A gente precisa criar um momento aconchegante para essas famílias e chamar elas para esse projeto que é de extrema importância não só para mim, mas para todos que vão morar nesse equipamento e futuramente para todos que estão fora do equipamento. Então para nós do MSTB é um desafio.

O que é que passa pela nossa cabeça: como é que nós vamos juntar 600 famílias e conseguir colocar na cabeça delas a importância desse trabalho nosso? Eu falo “projeto”, mas eu digo que é um trabalho mais coletivo. As coisas têm que ser construídas coletivamente. Não é um projeto construído por dois, três indivíduos que chegam lá e dizem “tem que fazer”. E elas precisam se sentir sujeitos dessa construção.

Se nós não garantirmos a sobrevivência dessas mulheres dentro desse conjunto habitacional com esse equipamento transformado, trabalhando a economia solidária, a tendência é que elas vendam e voltem para o mesmo lugar. Porque o Estado não considera, não quer saber de que forma você vai sobreviver em um equipamento desse.

Aí depois a história é essa: “ah, ganhou casa e vendeu”. Mas ninguém está lá para saber que aquela mulher vai perder para a Caixa Econômica. Então, ela vende logo e compra uma casa num borocotó, né? Vai viver lá, mas pelo menos a casa é dela, ela pode colocar um gato para colocar uma luz e se ela estiver desempregada, ela está de boa. Se ela estiver empregada, ela coloca água, luz e paga. Mas se não estiver, ela vai botar o gato e vai sobreviver com a família dela.

Então, é por isso que a gente acredita na transformação desse equipamento. Não para mostrar a sociedade como é que se pensa em um equipamento dentro do urbano com meio mundo de pessoas que veio do rural. Não é isso. É para mostrar a nós mesmos que temos capacidade de garantir a nossa sobrevivência dentro desse equipamento.

Um equipamento popular e agroecológico no Subúrbio Ferroviário de Salvador

Aqui na cidade de Salvador, a maior parte da população veio do interior, veio da roça há muito anos. E aqui tiveram filhos, netos e isso foi se apagando da memória das pessoas que nasceram depois. Então, para além de transformar o conjunto habitacional, a gente está resgatando a ancestralidade dessa galera que veio do interior, que ocupou a cidade de Salvador.

Mas também entendemos que estamos cansados de comer veneno. E a gente sabe que estamos morrendo. A real é que estamos morrendo. Então, nós estamos querendo dar uma qualidade de vida para as famílias dentro do urbano, que é muito importante. Por isso que esse equipamento precisa ser transformado em um equipamento agroecológico.

Porque a gente precisa resgatar a ancestralidade, trabalhar com a agroecologia e dar uma qualidade de vida para o nosso povo. Porque é indignante a gente ter que comprar o alimento do agronegócio, cair doente e não ter direito à saúde. Então, a gente vai fazer o quê? Uma reeducação alimentar. E fazer com que, através disso, o Paraguari II vire modelo para que a gente venha a trabalhar na cidade de Salvador os quintais produtivos. E os outros equipamentos do Minha Casa, Minha Vida eu acredito que a gente consiga, ao longo do tempo, transformar.

E também tem a questão que esse equipamento foi construído próximo à Bacia do Rio do Cobre, que é o rio aqui dentro do Subúrbio Ferroviário que precisamos cuidar da nascente. Para cuidar da nascente, precisamos trabalhar a agrofloresta. Então, por que não transformar esse equipamento em um equipamento agroecológico dentro da cidade de Salvador?

Rio do Cobre durante trilha entre as ocupações do MSTB na APA Bacia do Cobre em 2019

Os fatores principais para transformação do equipamento são: trabalho com a juventude, trabalho com as mulheres e trabalho com as crianças. E também tem que trabalhar com os homens. Mas quando eu falo trabalhar esses três, e eu não pauto logo o trabalho com os homens, porque esses três elementos são de extrema importância. Trabalho de mulheres, porque nós mulheres entendemos a moradia como um fator de necessidade porque nós lutamos pela moradia que não é para nós, é para os nossos filhos. Trabalhar os jovens para que eles ocupem esses espaços de poder, acadêmicos que estão aí, e tragam o retorno para dentro da base. E formar as crianças porque não vão nos dar tanto trabalho quando estiverem jovens, porque vão crescer crianças politizadas. Assim, fica muito mais fácil você trabalhar um jovem que vem preparado desde a infância do que você pegar um jovem que já está sentindo na pele, já que foi empurrado goela abaixo a ele toda a perversidade do sistema, então ele está cheio de ódio.

Por isso, às vezes fica muito difícil de você trabalhar. A gente trabalha, mas você precisa criar metodologias para trabalhar com cada indivíduo. Se você forma as crianças, quando ela chega na juventude vai ser um jovem politizado. Entendendo que aqueles espaços ali, ele pode até não ir, mas ele entende que aquilo ali é dele. Ele também vai entender que o narcotráfico é comércio. Então, ele pode até entrar, porque a gente entende isso como comércio, mas até a cara do tráfico a gente vai mudar, porque vão estar jovens ou homens ou mulheres mais politizados – porque a gente entende que hoje os três grupos estão envolvidos. Não vai estar esse negócio de opressão, oprimindo famílias, nem matando as famílias… Eu acho que vai ser um negócio totalmente diferente. Mas a gente ainda tem que trabalhar muito para chegar a isso.

Mobilização comunitária em Manuel Faustino, dezembro de 2019

O sonho só não se torna realidade quando você sonha só. Mas quando o sonho é compartilhado com todos, isso se torna realidade sim. Eu acredito. E principalmente com essa conjuntura política atual que está aí. Nós estamos morrendo. A gente só precisa fazer com que as famílias entendam que elas consomem veneno.

Porque hoje nós recebemos as cestas básicas agroecológicas de movimentos populares e a galera não quer comer o arroz integral. Por que? Porque o capital nos obrigou a comer o que vem do agronegócio. Então, primeiro a gente precisa discutir a reeducação alimentar e depois a gente precisa discutir a geração de emprego e renda, e aprimorar a economia solidária a partir da realidade dos territórios.

Aproximações com a Teia dos Povos e a construção do bem viver na cidade grande

As pessoas entendem o Movimento Sem Teto como um Movimento que ocupa terreno para garantir a moradia das famílias. Mas, de 2009 para cá, o nosso pensamento é outro. O nosso pensamento é: ocupar o máximo de espaços devolutos dentro da cidade de Salvador, ocupando também os espaços no centro da cidade e no interior do Estado. E, para além de garantir a moradia, garantir os espaços coletivos agroecológicos.

Então, daqui para a frente, antes de abrir as ocupações, precisa ficar bem claro para as famílias que precisa existir esses espaços dentro das próprias Ocupações. E ampliar todo esse trabalho que vai ser feito aqui dentro de Parguari II para outros equipamentos do Minha Casa, Minha Vida. Isso é a nossa meta. E aí juntar o urbano com o rural. Que é possível, só que o sistema nos tirou essa identidade que nós tínhamos com a terra ao longo dos anos, porque a função do sistema é enriquecer o agronegócio.

Mesa das mulheres durante Pré-Jornada de Agroecologia da Teia dos Povos de Salvador e Região Metropolitana em 2019

Não é bom para o sistema que as famílias comecem a plantar e a se alimentar do que plantam. É bem fácil para eles escravizarem as famílias no mercado de trabalho para que, com o pouco que elas ganham, elas vão lá, comprem o veneno e se alimentem. Se elas caírem doentes, pouco importa para o sistema porque nós somos muitos, porque a vaga delas, outros ocupam. Essa é a política genocida que a gente precisa quebrar. Entendemos que os nossos problemas não acabam com as quatro paredes, por isso nós precisamos mexer nas políticas públicas. Então, é aí que a gente começa a se envolver em todas essas pautas, porque estamos na construção da comunidade do bem-viver.

O nosso horizonte é a Teia dos Povos. Por que eu digo que o nosso horizonte é a Teia? Porque a gente pensava, a todo momento, em plantar, recuperar a Bacia do Rio do Cobre. Esse era o nosso pensamento. E como trabalhar a agroecologia dentro do urbano, onde não tem muitos espaços a não ser os fundos dos quintais? Foi a partir do encontro do MSTB com a Teia que nós tivemos um pensamento mais aprofundado e tivemos um horizonte de como iríamos começar.

Que não era só plantar árvores na mata. Que existia algo muito maior e político em relação a isso. É resgatar a ancestralidade dentro do urbano. Uma cidade que o povo diz que é a “cidade grande”, que a pessoa passa o tempo todo no mercado de trabalho e aquelas que estão dentro de casa, que estão sem emprego, vão passar fome. É trabalhar, em cima da fome da população, uma forma de sobrevivência mais saudável, que são os alimentos orgânicos.

Feira agroecológica durante a Pré-Jornada de Agroecologia da Teia dos Povos de Salvador e Região Metropolitana, em 2019

Aí a Teia vem e nos dá esse horizonte. Isso surge no final de 2018 para o começo de 2019. Isso era só o namoro. O noivado, que estamos noivos, vem depois, a partir do momento que a Teia abre a nossa cabeça na perspectiva agroecológica: não é só o equipamento agroecológico. O que é que vamos fazer com isso?

Como é que essas famílias vão entender que elas estão se envenenando? Como elas vão entender que daquele pedacinho de terreno no fundo do quintal eles podem garantir a sobrevivência, plantando o alimento delas, plantando as ervas medicinais, fazendo os chás? E por que a gente também não toma um curso para poder se aprofundar e ter propriedade com as ervas para a gente, lá na frente, através de um coletivo que a gente constrói dentro do próprio território, fazer os fitoterápicos? Porque não é só alimentação. Porque a gente não vive só de comida. Temos outras despesas.

A gente pode trabalhar isso dentro do próprio território e expandir isso dentro da cidade de Salvador, fazendo com que nela existam espaços agroecológicos. Mas não um espaço fechado. E sim um espaço que seja aberto para que todas as pessoas entendam que através daquilo ali elas podem também ter o delas. Plantar e sobreviver daquilo ali.

Então, quando a gente discute o bem-viver é uma discussão um pouco complexa, porque para cada um existe uma forma do bem-viver. O povo preto passa por tanta miséria na vida que ele diz assim mesmo, ó: “eu quero viver em um lugar que eu tenha paz”. Quando ele diz “eu quero viver num local que tenha paz”, é o bem-viver para ele. Mas a gente entende que o bem-viver vai para além disso. É nós termos a nossa comunidade, que sejamos livres ali dentro. Que seja uma comunidade que a gente possa também discutir a nossa sobrevivência ali dentro.

É uma comunidade em que não sejamos julgados lá dentro. Que a nossa galera LGBT esteja lá livre, vivendo a vida dela. Que a gente possa tirar o sustento da terra ali onde nós vivemos. A gente discute a intolerância religiosa. Não tem que ter Igreja. E se tiver Igreja, o Terreiro tem que estar do lado, porque não podemos permitir que as religiões nos separem.

É viver livre dentro desse espaço. Um espaço pensado para dentro dos quilombos. Os antigos quilombos. Porque, se a gente for para a história, a gente vai ver como é que os quilombos se organizavam. É a gente criar, não o filho de Rita, mas sim o filho da comunidade. Isso é bem-viver para nós, entendeu? Então, quando a gente chegar a esse patamar, nós vamos estar livres.

* A conversa com Rita Ferreira, que resultou neste texto, em realidade é reflexo de diversas conversas, de experiências e vivências compartilhadas desde o ano de 2019. Mais especificamente, ele resulta das entrevistas e conversas ocorridas na Ocupação Quilombo Paraíso, nos dias 04 de fevereiro, 05 e 15 de março de 2022.

Referências

ALVAREZ, Isabel Aparecida Pinto. As políticas espaciais contemporâneas e a reprodução do capital e do urbano. Revista Cidades. Chapecó, v. 9, n. 16, 2012, p. 62-85. Disponível em: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/cidades/article/view/12028/7726. Acesso: 15 mar. 2022.

KOROL, Claudia (comp.). Feminismos populares: pedagogías y políticas. El Colectivo; Editorial Chirimbote; America Libre: Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2016.

MIRANDA, Luiz Cesar dos Santos. Vizinhos do (in)conformismo: o Movimento dos Sem Teto da Bahia entre a hegemonia e a contra-hegemonia. 2008. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/11353/1/Dissertacao%20Luiz%20Mirandaseg.pdf. Acesso: 14 mar. 2022.

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