Posted on: 1 de fevereiro de 2021 Posted by: Rafique Nasser Comments: 0

Por Rafique Nasser

Os índices de desemprego e miséria, aprofundados devido ao caos sanitário potencializado pela negligência do Estado, estão em alta. Para mover essa estrutura, construir outras perspectivas, é preciso que nos reunamos em torno de uma grande luta dos povos por dignidade. Este horizonte se mostra mais que necessário – é uma questão de sobrevivência. 

Firmar alianças e compartilhar experiências é uma ferramenta essencial para a consolidação prática da transformação, da retomada. Nessa perspectiva, dialogamos com Paulo Lima – mais conhecido como Galo -, liderança do Movimento dos Entregadores Antifascistas.

Trabalhador de São Paulo, o maior centro urbano da América do Sul, Galo se viu obrigado a integrar a enorme massa de entregadores por aplicativo após uma demissão ocorrida no mesmo período em que nasceu sua filha. Sem segurança salarial, hora de descanso definida ou seguro que cobrisse quaisquer riscos da lida cotidiana, ele cruzava, sobre as duas rodas de sua motocicleta, não raras vezes com fome, as ruas da metrópole em busca de garantir o alimento para sua família e o pagamento de suas contas.

Em plena pandemia, no momento em que começava o período que denominaram “novo normal”, os entregadores de empresas digitais como “IFood” e “Rappi” continuaram o trabalho, mesmo sem nenhum equipamento de proteção individual disponibilizado pelos aplicativos. Foi nesse contexto que começou a história dos Entregadores Antifascistas.

No dia 21 de março de 2020, Galo realizava uma entrega quando repentinamente teve o seu pneu furado. Ligou para a Uber a fim de explicar o motivo de não ter concluído o serviço, e a resposta recebida foi a de que ele não seria penalizado pela situação. Entretanto, no outro dia foi bloqueado no aplicativo. 

A partir deste momento, o entregador iniciou uma trajetória de denúncias que culminou com o seu banimento de todas as outras empresas em que atuava como motoboy. 

No outro dia (22/03), numa inocência minha, fui lá na porta da Globo tentar  fazer alguma reportagem sobre o que estava acontecendo. Na pandemia, o pessoal não tava dando álcool em gel pra gente, não tava dando máscara, tava bloqueando o pessoal. E eu fui lá até poder fazer essa denúncia e o pessoal falou que se tivesse comida pra entregar tudo bem. Eles chamaram o repórter pra mim e ele disse que como era denúncia, não era o momento adequado para fazer. Aí eu fiquei mais revoltado, não sabia o que fazer. Na época, eu tinha no Instagram trezentos seguidores. Eu fui lá e coloquei: preciso de um jornalista aí, se tiver alguém que conhece o jornalista, me dá uma força. E aí, o pessoal me mandou o contato do The Intercept e dos Jornalistas Livres, mano. Eu fiz um vídeo e mandei pra eles. Acabou viralizando. Era um vídeo que eu falava assim: cê sabe como difícil carregar comida nas costas de barriga vazia?”, conta.

O processo de mobilização iniciado por Galo irradiou junto aos seus colegas e, no dia 7 de junho, a primeira dezena de entregadores organizados saiu às ruas em apoio às manifestações antirracistas e antifascistas no Largo da Batata. Já no dia 1° de julho foi a vez da greve nacional da categoria, que reivindicou melhores condições de trabalho e chegou a fechar avenidas em grandes cidades brasileiras.

Idealizador do projeto Nação dos Trabalhadores, que tem o objetivo de levar formação política às comunidades periféricas de São Paulo, Galo publicou em suas redes sociais uma campanha no site Abacashi para arrecadação de contribuições que serão revertidas em aquisições de equipamentos necessários para a realização das atividades, como caixas de som, microfone e livros.

Leia, abaixo, a entrevista com Paulo Galo, dos Entregadores Antifascistas*

TEIA DOS POVOS: Para iniciar nossa conversa, queria que você nos contasse um pouco da sua história e como começou a sua mobilização na luta pelos direitos dos entregadores.

GALO: Irmão, você sabe que eu não tinha pretensão nenhuma de de das coisa ter acontecido da forma que aconteceu, tá ligado? 

Eu trabalho como motoboy desde 2012. De 2012 a 2015 eu sofri dois acidente, mano, e aí eu resolvi que eu não ia mais arriscar minha vida pra ficar enchendo o bolso de patrão, eu ia parar de trabalhar de motoboy, ia dar um jeito, aí eu fui ser camelô, fui ser repositor de mercado, fui fazer outros corres na minha vida e aí minha filha nasce em 2017. Eu tava num trampo bacana, que era de técnico da Telecom. Era um trampo que me permitia viajar pro interior de São Paulo. Eu gosto das coisa mais calma.

E aí me mandaram embora, mano, na época que minha filha nasceu. Me deu uma desesperada. Eu não tinha registro de carteira de nada, não tinha experiência com nada, sempre trabalhei no mercado informal e aí, quando chegou 2019, depois muitas tentativas na rua, de fazer as coisas acontecer, as coisa apertou e eu tive que recorrer a esse trampo de novo de moto, eu fui atrás de comprar uma moto, parcelei a moto e fui atrás de tropa de moto e o que tinha era aplicativo pra trabalhar, tá ligado?

Eu fui trabalhar como motoboy entregador, tipo várias fita, fui bloqueado várias vezes, fui lá me humilhar para poder recuperar meu cadastro. Quando chegou dia vinte e um de março, mano, é que a luta começou nesse sentido aí. Foi quando a Uber me bloqueou pela terceira vez, o pneu da minha moto furou. Eu informei isso pra Uber, que disse que não ia me bloquear por isso. Mesmo assim, no outro dia, me bloqueou. E nessa época, mano, começou a aparecer vários jornalistas, mano, porque é muito louco isso, você pensar dessa forma. Porque quando você tem um discurso mais radical, tá ligado? Que vai pra cima do patrão, que vai pra cima do capital, que vai pra cima de fazer os outros ganharem dinheiro, as pessoas te isola e deixa você no canto falando. Agora, quando você tem um discurso desse que é verdade, mas é um discurso que, vamos lá, que o Luciano Huck ama, né, mano? “Aê, vamos ajudar o trabalhador que tá com fome, tal, num sei o que”, quando é esse discurso, vixe, aparece gente pra te ajudar. Nessa época apareceu vários, vários veículos que hoje não aparecem mais. Meu discurso foi se radicalizando e essas pessoas foram se afastando. Na época apareceu a Record, eu fiquei doze minutos no domingo à noite, no meio da pandemia, falando. Hoje, com o discurso radical que eu tenho, é muito mais difícil isso acontecer. Agora, eu tô pronto pra explicar porque que nós tá com fome. Quando você explica porque, quando você só fala, quando cê só abre a boca e mostra a boca banguela sem dente, eles falam assim “Ah, preciso ajudar esse trabalhador”. Quando o trabalhador abre a boca sem dente pra explicar porque que eles não tem o dente, aí eles isolam esse trabalhador. 

TEIA DOS POVOS: E como começou, de fato, a organização dos Entregadores Antifascistas? 

GALO: Numa dessas fita que a vida me levou, eu apareci na Exame, mano. Depois que eu apareci na revista, que é uma revista de empresário, eu fui bloqueado pelos outros aplicativos E aí já era, mano. Aí já era. Eu tive que falar. Eu tive que ir para a luta com tudo, porque eu não tenho mais venda. Eu preciso dar um jeito de gritar mais alto. E aí, a coisa foi se desdobrando, mano, se desdobrou em Entregadores Antifascistas, depois se desdobrou em greve, em outras greves e está se desdobrando até hoje, mano.

Agora, falar pra você que eu tinha uma pretensão já de formar os entregadores antifascistas ou de colaborar para uma greve acontecer, não tinha, mano… Eu era um cara mais inocente.

TEIA DOS POVOS: E como foi esse caso de alguns dos teus colegas te mandarem “Para Cuba”? Você pode falar sobre os desafios que é, digamos assim, acender a consciência dos companheiros? 

GALO: O tempo vai mudando e a análise das coisas vai mudando, a percepção das coisas vai mudando, tá ligado? Cê vai amadurecendo, as coisas que você viu, as coisas que você ouve e vai entendendo a coisa de outra forma, tá ligado?

No começo, isso me assustava e me machucava, porque, pô, mano, cê tem um cara que é pobre, preto, favelado, te mandando pra Cuba, cê tá ligado, mano? O cara é igual você, tá no mesmo veneno que você, tá pagando as mesmas dívidas que você, tá comendo o mesmo pão que o diabo amassou que você, te mandando pra Cuba, isso aí é foda. Quando é um playboy, mano, cê vai falar: “ah, mano, vai lá, me compra a passagem pra você ver se eu não vou”.

Hoje, a análise que eu vejo, mané, é a seguinte: a gente viveu um governo, que era os governos do PT. Naquela época, mano, muita gente comprou um celular, comprou moto, muita gente comprou uma casa, comprou roupa legal, muita gente teve acesso à tecnologia. Começou a aparecer uma pá de moleque na televisão, jogando uísque caro pro alto, andando de carro importado, entendeu? Cantando nas mansão, então a gente tem que ter essa percepção, mano. Então, a gente chegou num momento onde o trabalhador caiu nesse xaveco, mano, de que é possível isso pra ele. Tá ligado? De que isso não é uma fantasia, mano. De que isso é uma coisa possível, que se ele for trabalhador, se ele fizer ele consegue chegar lá, mano. Então, que que o patrão fez, mano? O patrão teve anos pra ficar desmoralizando a imagem do trabalhador. Pra chegar no futuro e falar  que ele não é um trabalhador, mano. Ele é um microempreendedor, mano. E que, se ele se esforçar, ele chega lá e o pessoal acreditou, mano.

Num é porque nós teve acesso a alguma marca de roupa que, até então só eles tinha acesso, que nós é igual eles, mano. Essa é a minha crítica, por exemplo, aos governos que a gente tem de esquerda. Devia ter trabalhado na conta do povo, mano. Não é só chegar e dar crédito pro povo, precisa trabalhar a consciência do povo, mano. A consciência de classe. Essa ideia de ficar fazendo conciliamento de classe fodeu tudo, mano. 

A classe trabalhadora tem que entender, mano, que é o seguinte: para nós dar um passo, é porque os caras já venceu a corrida. Então, cada vez que nós avança um passo economicamente é que os cara já avançou uma milha. É a luta de classe e a consciência de classe que tem que ser trabalhada dentro da classe trabalhadora.

Então, como é que a mídia colocava? “Ah, os cara quer transformar isso aqui numa Cuba”, mas num falava o quão, o quão poderosa é a história de Cuba, mano, da revolução dos trabalhadores se voltando contra o contra o patrão, entendeu? Ou seja, é a forma de comunicação que os cara teve, mano. Então, veja bem, não dá pra ficar moscando. Hoje eu tenho a percepção de que é preciso ter uma forma de comunicação melhor que a dos caras, para poder chegar na classe trabalhadora e transformar essa fita.

Eu sou paciente, mano. Eu falo assim, ó: Pra mim, nós, os trabalhador, nós não é pé de coentro, mano. A consciência de classe não é pé de coentro, nós não vai plantar hoje e o bagulho vai crescer. Nós é Baobá, mano. Nós tem que ter paciência, nós vai plantar agora e o bagulho vai demorar pra crescer, mas vai crescer. E vai crescer saudável, e baobá não é uma coisa fácil de derrubar. Pé de coentro é só pisar em cima, mano. Se nós querer crescer em quinze dias, os cara pisa em cima de nós e acabou a festa. Agora, Baobá não, entendeu?

 É devagar e sempre.

TEIA DOS POVOS: Tem uma fala sua muito interessante que diz o seguinte: “A comida está altamente ligada com a vitória, a comida se conecta com a vitória, e a vitória, quando você vence uma luta, traz uma auto estima incrível e um empoderamento incrível, e o lance de empoderar o trabalhador está ligado nisso”. A partir disso, como você vê  a retomada do tema da Terra e do Território no debate das esquerdas? 

GALO: Mano, pra mim, tudo é rumo à terra, tá ligado? Eu sinto isso, mano. Quando você mete o pé na terra, você é outro ser, tá ligado? Só que vamos ser sinceros… Se os trabalhadores das grandes cidades não tão conseguindo se enxergar como trabalhador, mano, os cara vai enxergar a importância de você colocar o pé na terra, de você adubar uma terra, de você plantar uma mandioca? De você plantar verdura e, além disso, você cuidar da planta, você não destruir aquele local? Não, não, não.

Porque, ó, calcula comigo, mano. Quanto mais conectado com a terra, menos conectado com essas coisa fúteis da vida, você vai ser, mano. Quem é que vai querer vestir roupa de grife pra chegar no meio das mandioca? O foco dele tá na terra, o foco dele tá no plantio, no crescimento, nas pessoas ao redor. 

Mas os trabalhadores das grandes cidades não tão tendo essa visão. Eles querem carro veloz, roupa de grife, cê tá ligado? Quer ter acesso ao melhor lugar na balada, quer ter acesso aos mesmos apartamentos que os cara.

Pra mim, toda luta se resume a terra, tá ligado, mano? terra não é um bem de alguém, eu não eu não enxergo dessa forma, a terra é um bem comum, mano, de todos. Entendeu, mano? A terra é um bem comum de todos, mano. Se a gente parar pra pensar, tudo que a gente tem em cima da terra, saiu da terra.

Hoje, nas grandes cidades, tem essa disputa de consciência dos trabalhador, né, mano, pra conseguir reverter essa situação. Eu mesmo, mano, eu posso ser sincero? Eu queria poder vim aqui pra onde meus coroas tá morando em Jacareí, mano. Meus coroa planta mandioca aqui, tá ligado? Planta quiabo. Eu queria vir com minha esposa, minha filha.

O trabalhador ia ser muito mais feliz, mano, se ele tivesse mais contato com a terra, tá ligado? Se ele tivesse mais acesso à terra. Até igual cê falou, né? Terra e território.

Tem gente que acha, mano, que o progresso tá ligado ao futuro, mano. Tá ligado a caminhar pra frente, e eu não acho. Eu não acho. Progresso do ser humano tá em caminhar pra trás. Em voltar. Então, tem certas coisas que precisa regredir. Principalmente essa ambição do ser humano. De querer conquistar, ser dono, querer se apropriar, sabe? Só voltar um pouco, mano. E começar de novo, mano. 

O jovem não tá nem aí pra coluna dele, o jovem não tá nem aí pra espiritualidade dele, né? A maioria, né? Eles tão um aí é pra conquistar o mundo, mano. Eles chegaram no mundo ontem, eu me incluo, cê tá ligado? E aí, acaba se perdendo no meio dessa Babilônia aí, cê tá ligado, irmão? Eu acho, mano, que precisa ter uma retomada! Tem um bagulho africano, mano, uma cultura africana que é muito foda, que é a cultura dos mais velhos né, mano? E sentar e ouvir os mais velhos era como se fosse as bibliotecas, né? Essa cultura, eu acho que ela precisava retomar, mano. 

TEIA DOS POVOS: Você pode nos falar um pouco mais sobre como você vê essa relação entre espiritualidade e luta pela emancipação?

GALO: Irmão, eu sou um cara que eu não sei de nada, entendeu? Eu sou mais burro do que amanhã, sou mais inteligente que ontem, cê tá ligado, mano? Tô sempre buscando me montar pras coisa, tá ligado, mano? Eu me posiciono no tempo dessa forma. Eu acho que um ser humano que viveu durante oitenta anos, num tem livro que vai explicar, mano.

Tem coisas que não dá pra explicar. Se você perguntar pra mim: “Ô, Galo, por que que cê continua nessa luta aí, sendo que cê só se fodeu?”, eu não vou saber explicar pra você, mano. 

Eu só tô indo, mano. Eu acho que é o lugar certo, morou? Eu acho que é o lugar certo, igual a música do Racionais fala. “Às vezes, eu acho que todo preto como eu só quer um terreno no mato só seu, sem luxo, descalço, nadar num riacho, sem fome, pegando as frutas no cacho”. Tô indo pra lá.

Eu não tenho uma religião exata. Eu tenho um instinto. Hoje eu utilizo muito a palavra de Jesus Cristo para dar poder à classe trabalhadora, mano. Aí, tem gente que um absurdo. Mas Jesus Cristo era carpinteiro, mano. Jesus Cristo andava com os carpinteiros, Jesus Cristo andava com os pescadores, entendeu?

Tem coisas na palavra antiga que conecta com o hoje, mano. “É mais fácil um camelo passar no buraco da agulha do que o rico entrar no reino do céu”. Ninguém devia lucrar com o suor que escorre da sua testa, meu companheiro.Aí é líquido sagrado, mano. Esse suor que tá escolhendo da sua testa devia servir para construir um mundo melhor, não para deixar alguém rico.

Eu sou daqueles que acham que não precisa ir pra Chicago, estudar economia e voltar para ser Ministro da Economia do Brasil. A conta para mim é essa aqui, ó: se organizar direitinho, todo mundo come. Não precisa ir pra Chicago estudar essas porcarias aí de neoliberalismo, pra vim pra cá e fazer merda.

TEIA DOS POVOS: Deixa um recado para a juventude aí, irmão, uma mensagem.

GALO: Se for pra deixar uma mensagem para os mais novos: Escuta os mais velho, mano. As pessoas que viveram mais que você, entendeu? Escuta seu pai, escuta a sua mãe, que eles têm informações que você não tem, entendeu? Cê hoje tem um salário mínimo de mil reais, seu pai já pegou duzentos conto na mão, tendeu? Seu pai já comeu o pé de galinha, seu pai já teve que se alimentar com muito pé de galinha no açougue. Então ele tem informações na carne dele. Então, antes de querer se sentir o sabichão, o cara que sabe pra caramba, vai tentar beber dessa informação que tem na carne do seu pai, na carne da sua mãe, na carne dos seus avô, entendeu? Na carne dos vizinho, teus vizinho mais velho. É respeitando o que aconteceu antes de nós que vai fazer a gente construir coisas saudáveis lá na frente, firmeza? Então, acho que é isso.

TEIA DOS POVOS: Obrigado, Galo. Um abração!

*Entrevista concedida à Divisão de Comunicação da Teia dos Povos no dia 22 de janeiro de 2021.