Posted on: 17 de novembro de 2020 Posted by: Rafique Nasser Comments: 1

Por Rafique Nasser

A explosão seguida de incêndio que atingiu a principal subestação de energia elétrica do Amapá (3/11), fez com que 13 dos 16 municípios do estado – onde reside 90% da população –  sofressem um severo apagão que já dura quinze dias. Desde o dia 6 de novembro  aconteceram cerca de 90 protestos resultados do descontentamento da população em relação ao racionamento imposto pelo problema, e já foi notificado por moradores que o rodízio de energia, iniciado no dia 8, não está funcionando. Em decorrência do apagão, o fornecimento de água, abastecimento de alimentos, serviços de internet e telefonia, caixas eletrônicos e postos de gasolina, por exemplo, estão seriamente comprometidos.

De acordo com apuração da imprensa, a subestação incendiada não recebeu nenhuma fiscalização presencial da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) em seus cinco anos de funcionamento, relatórios do Governo Federal apontam que órgãos fiscalizadores já tinham ciência dos riscos de apagão. Um laudo inicial da Polícia Civil descartou, no dia 11, que o acidente tenha sido causado por incidência de raio. A Justiça Estadual bloqueou R$50 milhões das contas da concessionária Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE).

A comunicação da Teia dos Povos conversou sobre a crise com Karen Góes, do grupo de voluntários e voluntárias do Greenpeace do Amapá. Demoramos quase três dias para finalizar a entrevista, que no final teve que ser realizada de forma escrita, por conta das dificuldades que Karen – e grande parte do estado – tem enfrentado em relação ao acesso à internet. Leia:

Teia dos Povos: São duas semanas de falta de energia. Em sua opinião, quais são os impactos centrais desse problema para a população do Amapá?

Karen: Certamente o aumento da transmissão da COVID 19. A falta de água gerou um desespero coletivo, as pessoas saíam muito preocupadas às ruas atrás de mantimentos. Sem água e sem energia em casa, o que inviabilizou a conservação de comida, o sinal telefônico e o wifi – toda comunicação -, deslocou a atenção de todos às necessidades básicas do ser humano, e mesmo a preocupação com o vírus sendo latente, o uso das máscara se tornou mais uma preocupação devido o alto calor, a ansiedade geral instalada, o mal estar devido o abandono.

O aumento da criminalidade também nos preocupou, quando cai a noite e estamos no escuro, é uma apreensão constante. Há relatos de que casas estão sendo invadidas, estabelecimentos sendo saqueados, até os cabos que abasteciam a ilha de Santana foram arrebentados. Há também uma tensão entre os moradores apesar da solidariedade circulante, algumas personalidades buscam reter quantidades excessivas de mantimentos e isso tem gerado discussões nos comércios, vivemos uma verdadeira escassez de água potável, velas, e também há o aumento abusivo nos preços dessas mercadorias.

Houve uma diminuição no tempo da hemodiálise, comprometendo o tratamento de doentes e até gerando a morte de um paciente que precisou revezar o procedimento. Grandes quantidades de sangue doado foram perdidas, houve desabastecimento do banco de leite humano de Macapá. Esta é uma verdadeira crise humanitária: sem ter como cuidar dos doentes e gerando agravo na saúde de todos –  há, por exemplo, um aumento no registro de entradas de muitas crianças na pediatria do Hospital Geral com infecção intestinal e intoxicação alimentar.

TP: Você falou sobre as consequência do apagão para o agravamento da crise sanitária. Pode dar mais detalhes sobre o que representa essa falta de energia em tempos de pandemia?

Karen: Em um momento em que há necessidade de infraestrutura básica para se lidar com um vírus que pode estar em todo lugar, o amapaense ficou vulnerável, com a falta de água para higiene apropriada das superfícies, como atitude primordial de defesa à vida, estamos tão negligenciados e abandonados que a situação beira o genocídio. Bem no meio da floresta Amazônica, cerca de 700 mil pessoas padecem sem água durante uma crise sanitária. 

A imensa irresponsabilidade das empresas encarregadas pelo direito básico da população amapaense, que por si só já é um absurdo, e, para completar, a inoperância dos setores públicos, produziu um cenário insustentável à vida no estado. Penso que a pandemia de COVID-19 virou os olhos de todos para um problema maior, que mata centenas todos os dias, e que, de certa forma, negligenciou a inoperância do estado em outros problemas muito relevantes também. Se não houver uma rede de apoio muito mais estrutural, não há como lutar contra o vírus. Esta crise evidenciou outros problemas graves que assolam o estado há várias gerações que não deixaram de existir devido a pandemia. A falta de um gerenciamento que busque um bem viver entre as pessoas, que é o modus operandis de gerenciamento na Amazônia, explodiu no meio de outra crise gigantesca. E isso me faz pensar: até onde as crises nos levarão? É só pelas crises que somos movidos?

TP: De cá, nós presenciamos cenas de pessoas desesperadas para comprar gelo no Amapá, a fim de tentar conservar os alimentos. Além disso, os mercados não estão conseguindo repor suas prateleiras, ao passo que já está ocorrendo uma alta nos preços dos alimentos. Como está esse cenário?

Karen: Muitas pessoas precisam conservar medicamentos caros, como insulina. Esses remédios acabaram sendo perdidos devido à falta de gelo na cidade. Muitos estabelecimentos comerciais de pequeno e médio porte tiveram suas mercadorias apodrecidas – muitos mesmos, todos aqueles que não dispõem de gerador. Na capital Macapá, por exemplo, há uma área de porto chamada igarapé da Fortaleza, que recebe pescadores de diversas ilhas marajoaras. Esse é um dos cenários mais tristes: pescadores vêm para a cidade vender seus pescados e levantar a verba para a manutenção dos gastos da família, mas agora acabaram ficando ilhados em Macapá. Pois, sem conseguir vender nenhum peixe, não conseguem nem pagar viagem de volta para sua casa. É muito triste tudo o que estamos vendo, a população mais vulnerável está TOTALMENTE desassistida. Peixe é um alimento muito importante no prato do amapaense e ver cubas e cubas, freezers e freezers com pesca estragada é de chorar. O trabalhador ficou horas ali naquele serviço, se deslocou de barco por horas para vender o produto e acontece um crime desses.

TP: Somente após seis dias de falta de energia, a justiça intimou a Multinacional Isolux e deu três dias para que o problema fosse solucionado. Ao que você credita essa lentidão?

Karen: Ao desinteresse político em resolver a situação, o descaso do Governo Federal foi uma das piores amostras de irrelevância atribuídas ao estado do Amapá como parte da nação brasileira. Enquanto se discute o usufruto da biodiversidade amazônica entre os presidentes dos maiores países da América, mais de meio milhão de amapaenses estão em uma crise humanitária. Desenhando: não somos tratados como os cidadãos brasileiros de estados com maior participação econômica são tratados.

Há um descaso inerente à política voltada ao norte do Brasil e, mesmo o presidente do Senado Federal sendo representante dos interesses amapaenses, em nada significou para nós, que estamos vivendo essa realidade caótica e adoecedora. Davi Alcolumbre, chegou a comunicar no programa de rádio “Luiz Melo, Entrevista” que o principal atingido por este apagão foi o seu irmão, candidato a prefeito de Macapá, Josiel Alcolumbre, que antes estava liderando as pesquisas de intenção de voto e caiu. Nesses últimos dias, nas filas debaixo do sol escaldante, o que mais ouvi foi justamente sobre isso: “Cadê o Senador para olhar por nós”?

Na campanha eleitoral, ambos os irmãos, com o apoio do atual prefeito Clécio Luís, esbravejaram o quanto a população iria ganhar elegendo Josiel, que está “alinhado” ao Senado Federal e pode assim garantir muito mais verba para circulação na cidade. Nós estamos vivendo na pele. té agora, ele não demonstrou grandes esforços para conter a crise e ainda tem a audácia de vir a público afirmando uma afronta deste tipo. Nós estamos profundamente consternados com a atuação deste representante, estamos vivendo um completo caos e ele demonstrou uma insensibilidade e irresponsabilidade absurdas com seus eleitores e com todos aqueles para os quais diz trabalhar. É uma vergonha.

TP: Como está funcionando o  revezamento de fornecimento de energia nos municípios?

Karen: O revezamento começou no 4º dia de apagão para o centro comercial da capital Macapá: eram 6 horas de cobertura energética e 6 horas sem. A CEA, empresa responsável pela distribuição da energia, afirmava que, através do racionamento, pelo menos 60% da população estava sendo contemplada. Mas, com o passar dos dias, o que vimos foi que existiam áreas inteiras que dispunham de energia 24hrs e outras áreas em que não chegou nada, nem energia, nem água encanada.

Houve mudança no quadro de revezamento, agora com intervalos de 4 horas durante o dia e de 3 horas durante a noite. O que nos preocupa, além do não abastecimento da maioria das casas periféricas, é a altíssima possibilidade de queima de aparelhos eletrônicos, que não são nada baratos e são de cada vez maior dificuldade de acesso, principalmente depois do início da pandemia. Além disso, quando não temos energia elétrica o sinal de rede para internet ou comunicação por SMS e ligação fica totalmente inoperante, gerando uma dificuldade de comunicação imensa para todos os moradores.

TP: Você pode relacionar para a gente a questão da falta de energia com a crise hídrica que atinge o estado?

Karen: A CAESA não dispunha de geradores de energia o suficiente para distribuir água para o estado sem o fornecimento de energia elétrica da CEA. Essa é uma situação muito comum: sempre que há uma falha no sistema da CEA, a CAESA automaticamente para de funcionar. No segundo dia de apagão, o Governo do Estado solicitou ao Governo Federal algumas unidades de geradores para as estações da CAESA e para algumas UBS que tiveram funcionamento interrompido. Em dois dias, a água chegou porém na mesma situação que a energia, não atingindo a maior parte da população e gerando revolta ainda maior pela observância da prioridade dada a bairros nobres da cidade de Macapá.

TP: Há contraste entre a capital Macapá e os outros municípios em relação à vontade do poder público de agilizar a resolução do problema?

Karen: Os demais municípios não tem muito poder de ação neste momento, as diretrizes tomadas foram por parte da Prefeitura de Macapá, que decretou estado de calamidade pública. É o governo municipal que tem atuado alugando caminhões-pipa para distribuição de água nos bairros mais distantes da CAESA (Companhia de água e saneamento básico) e que tem distribuído também hipoclorito para o tratamento da água. Para além disso, estamos sobrevivendo com doações de Kourou (Capital da Guiana Francesa), da Marinha e do Governo do Pará, com geradores de energia, cestas básicas e água respectivamente.

Quanto aos demais municípios atingidos, eu não tenho tido nenhuma notícia, para você ter noção. E isso preocupa a todos nós, pois sabemos que não estamos sozinhos, há ainda milhares de pessoas sem nenhuma comunicação, as quais não temos sequer como saber o que tem passado. Nestes locais, não há cobertura midiática nem jornalística no momento. Apenas tenho um amigo em Pedra Branca do Amapari que me contou que tem energia lá por 24 horas, provavelmente devido a uma grande mineradora que atua na região. 

Mesmo em Macapá, Há muitas reclamações de que muitas doações não estão chegando a bairros precários como o Congós, Marabaixo, Infraero. As áreas de arquipélagos, quilombos e áreas de ponte seguem sendo desassistidas, pois o racionamento não tem chegado a essas pessoas.

Por essa desassistência, as pessoas se veem obrigadas a criarem suas próprias formas de arrecadação e distribuição de mantimentos. A organização coletiva, nos últimos dias, tem feito um trabalho muito pesado física e psicologicamente, trabalho este que não é sua responsabilidade. Para além de sobreviver, a população tem sido incansável, organizando vaquinhas online, se virando para entregar mantimentos onde pode, colhendo relatos, levando um pouco de apoio para os vizinhos. 

Isso é um completo absurdo! Sinceramente, me faltam palavras para descrever essa situação. Como ainda tem gente que observa a Amazônia unicamente como bioma, tornando os nativos pessoas exóticas quando em metrópoles e virando as costas quando em crises. Li uma colega publicando “Desliguem nossas hidrelétricas por uma hora que o mundo todo se lembrará que existimos”, é bem isso o que sinto.

TP: Em um texto recente, o Conselho Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) expôs um relato sobre a situação dos quilombos do Amapá em relação à falta de energia. Você tem acompanhado a situação dessas comunidades?

Karen: Abandono. Os quilombos de Macapá já são rotineiramente negligenciados devido a cultura racista e segregadora do sistema e dessa vez não está sendo diferente. Como periferia da cidade, não estão tendo acesso aos bens e serviços que a área nobre de Macapá está tendo. Os quilombos dispõem de apenas uma unidade de pronto atendimento que tem sido nosso ponto de referência para saber se é possível que haja energia elétrica nas redondezas – já que a CEA estava priorizando essas áreas. Eu não cheguei a visitar o quilombo, mas vi imagens de manifestações com repressão policial. Além disso, a situação dos moradores é mais delicada pois por estarem mais distante do centro da cidade, precisam de quantidades maiores de abastecimento de carros ou da disponibilidade de ônibus que possam transportar as pessoas, no absoluto escuro e em meio uma área de rio e floresta, tudo fica mais perigoso. 

O Quilombo do Curiaú é destino turístico de Macapá que reúne o povo originário a um bioma de beleza inexplicável, e deveriam ser prioridade na resolução do problema por estarem muito mais vulneráveis a ação de violência do que outras localidades. Apesar de tudo, existe o movimento Utopia Negra Amapaense, que tem recebido e destinado doações entre si mas também à áreas de ponte, outras comunidades tradicionais e pessoas de terreiro.

TP: Você publicou um relato no site do Greenpeace Brasil sobre a situação. Em uma parte do texto, você cita o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), você pode nos informar um panorama das dinâmicas de luta por direitos básicos das comunidades no estado?

Karen: Certamente, o MAB é um dos grupos mais atuantes que denuncia as violações de direitos humanos decorrentes da destruição socioambiental trazida pelas Usinas Hidrelétricas instaladas principalmente no município de Ferreira Gomes. No total, são três: A UHE Ferreira Gomes, que gera 252 megawatts; a UHE Coaracy Nunes, que gera 78 megawatts e a UHE Cachoeira do Caldeirão, que gera 219 megawatts. Somadas, elas geram o suficiente para abastecer o estado inteiro duas vezes, mas toda essa produção é escoada pelo linhão de Tucuruí para outros estados do Brasil. Em 2015, o movimento protocolou, na Secretaria de Direitos Humanos em Brasília, documento comprovando a violação dos direitos humanos nas 3 usinas localizadas no município de Ferreira Gomes. Além disso, foi protocolada pauta de reivindicações na Eletronorte, empresa proprietária da Usina de Coaracy Nunes, que tem 39 anos e ainda não resolveu os problemas sociais da região. O MAB também denuncia a mortandade de peixes recorrente no rio Araguari, que teve toda sua vida literalmente barrada pelas construções das hidrelétricas. Além de tudo, os ativistas do movimento e moradores locais sobreviveram à inundação da cidade de Ferreira Gomes provocada também no ano de 2015 em função das intensas chuvas que atingiram as ensecadeiras da usina Cachoeira Caldeirão, à epoca em construção. A barragem se rompeu e obrigou as outras duas usinas localizadas abaixo a abrirem suas comportas, atingindo toda a cidade, com cerca de 7000 habitantes.

TP: Enquanto moradora do Amapá, como você avalia as ações do governo do estado?

Karen: O que posso dizer é sobre a atuação do governo do estado nas repressões policiais sobre os protestos pacíficos que ocorrem em Macapá e em Santana, as duas maiores cidades – em densidade populacional – do estado.

Jornalistas independentes estão sendo ameaçadas, com as contas nas redes sendo denunciadas, possivelmente para barrar o alcance da informação entre a população. São manifestações que impulsionam outras mais. Estamos todos fatigados mesmo, desesperados pela escuta, pelo auxílio, pela proteção do estado. O que mais tem provocado revolta hoje é a ação criminosa e truculenta da Polícia Militar que, à serviço do estado, tem violentado a população que está apenas exercendo seu direito, lutando pela sobrevivência. Nós, como ativistas e como sociedade civil, repudiamos veementemente a ação policial que estamos vendo nas ruas.

TP: Há, inclusive, uma notícia de que um adolescente de 13 anos recebeu um tiro de bala de borracha em um dos olhos. Pode falar mais sobre a repressão às manifestações?

Karen: É corriqueiro o registro de ações de abuso de poder, racismo, feminicídio, perseguições e execuções do povo amapaense pela PMAP. E, nos últimos dias, o policiamento foi reforçado ao mesmo tempo que as manifestações populares que pediam por luz, água e comida explodiam, intensificando o cenário de repressão e truculência na cidade. A situação tem piorado unicamente para a periferia. Há muitas pessoas sofrendo violência física e moral por estarem reclamando o não fornecimento dos direitos básicos da humanidade, direito do cidadão assegurado pela constituição e por tratados internacionais, os quais o Brasil é signatário. 

Participei de uma manifestação pacífica em frente ao Palácio do Governo e a presença dos agentes era extremamente ameaçadora, com suporte de cacetetes, fuzis, escudo e diversas viaturas. Além disso, em muito nos assustou a presença do BOPE – Batalhão de Operações Especiais – no local, grupo destinado a ações de finalização de alta complexidade. São muitas as manifestações ocorrendo em todo o estado, esses devem ser apenas alguns poucos relatos dos quais eu e você estamos tendo acesso. Mas uma coisa é certa, não vai parar por aí, por isso pedimos: NOS ACOMPANHEM! Por favor, fiquem vigilantes enquanto nossa situação não se resolve, existe muito absurdo não noticiado acontecendo, muito mais do que cabe em reportagem de 3 minutos do Jornal Nacional ou do Encontro com Fátima, precisamos de vocês.

1 people reacted on this

Leave a Comment