Posted on: 2 de novembro de 2020 Posted by: Rafique Nasser Comments: 0

Texto: Rafique Nasser / Fotos: Bárbara Lara

A terra, de onde surge a vida em forma de alimento, é a esperança mais concreta de que é possível trilhar um caminho até o desejado horizonte da autonomia. Cavucar o solo, cuidá-lo bem para deitar a semente é plantar o futuro livre, é contradizer e contra-atacar os que anseiam pela queda dos povos. Comer o fruto das próprias mãos é uma justa rebeldia, é como dizer: “Aqui estamos e aqui ficaremos, defenderemos nosso território”.

As sementes se apresentam como enfrentamento e resistência frente ao cenário da tragédia mundial anunciada – fome estendida a dimensões absurdas, ausência de moradia, indignas condições de sobrevivência, alargamento da miséria no pós-pandemia. O capitalismo incrustado no Estado nunca resolveu os nossos problemas essenciais, e nunca o fará, pois a sua sobrevivência depende da pobreza da maioria. É preciso crer que podemos transformar a vida com o esforço autogestionário. Temos falado em experiência concreta, em luta, em aliança. Temos aprendido uns com os outros, povo com povo, comunidade com comunidade, as lições da liberdade. Sem salvadores, senhores ou caudilhos, a régua e o compasso para compor os caminhos autônomos são o saber ancestral, a prática dos avós, a partilha dos conhecimentos necessários.

A II Pré-Jornada de Agroecologia na Terra Indígena Pataxó – Comexatibá, situada em Prado, no extremo-sul da Bahia, nos mostra que só a solidariedade e o trabalho coletivo farão o bom caminho até a consolidação da Soberania Alimentar – tema que norteou o evento. Nos dias 11, 12 e 13 de setembro a atividade organizada pela comunidade da aldeia Tibá recebeu apoio do Assentamento Terra vista, da Escola Popular Egídio Bruneto e do Programa Arboretum.

Nos três dias de ação intensa foram realizadas as tarefas de replantio de sementes crioulas, recuperação e cercamento de três nascentes, desenho de um mapa criativo e participativo das áreas de reflorestamento de mata ciliar, oficinas de biofertilizantes e plantação de 1.200 mudas partilhadas pela Teia dos Povos e pelo Arboretum. A atividade foi restrita, em observação à segurança sanitária para a proteção da comunidade contra o coronavírus. 

Ancestralidade e Juventude

Cerca de 50 pessoas se envolveram na ação. Os mais velhos e os mais novos juntos pelo tecer da vida, exercitando a circularidade dos saberes e compartilhando a missão deixada pela ancestral Zabelê Pataxó. “Esse modo que a gente vai começar a plantar eu já fazia antes junto com minha mãe, com meu pai, a gente plantava onde a gente queria. A gente tinha o alimento saudável. E hoje a gente vê que os alimentos que vêm para o mercado são tudo cheios de agrotóxicos. A gente tem que acabar com esses alimentos que não faz bem para nós. A gente tem mais é que lutar”, diz Dona Adelice, liderança anciã da aldeia Tibá, sobre a importância de produzir o alimento ancestral, que dá energia ao corpo e ao espírito, livre dos venenos da agroindústria, cultivado desde há muito tempo pelos povos que já habitavam aqui antes da colonização. Retomar o que era feito, na contramão do “progresso” e do “desenvolvimento” desenfreados, que ensinam como evolução a morte e a destruição.

“Nós decidimos retornar para o nosso território para ajudar a tomar conta de toda essa riqueza que nós temos e cuidar de reflorestar aquele lugar que não tem mais árvore. Nós chegamos em 2003, isso aqui tava tudo só sapê e tiririca, queimada todo ano”, José Ferreira, mais conhecido como Cacique Zé Fragoso, relembra os desafios enfrentados nos primeiros anos do retorno à terra.

“Agora veio o pessoal da Teia para trazer umas mudas, para nós reflorestar umas nascentes que há muito tempo eu tô pensando em reflorestar. Com esse apoio que tivemos agora, vamos conseguir cercar a nascente. Nós pedimos que Tupã mandasse a chuva para ver se a gente não perde aquelas mudas que plantamos ontem, e à noite, quando nós tava na noite cultural, já caiu chuva e a gente agradeceu por isso”, relata o Cacique sobre a experiência da Pré-Jornada.

Talita Tamikuã é articuladora da juventude do seu território. Formada técnica em agroecologia, tem realizado em sua aldeia o trabalho de planejamento e instalação do Sistema Agroflorestal. Conheceu a Teia durante os seus estudos, e a partir de seu aprofundamento na articulação começou a participar de mutirões em assentamentos e em outros territórios indígenas. “Ano passado a gente deu início, com muita dificuldade, muita peleja e muita luta, à nossa primeira pré-jornada de agroecologia,  com o tema Raízes e Vivências Pataxó, tentando reforçar também a juventude sobre a importância dos conhecimentos tradicionais”. A ideia, segundo Talita, é continuar o trabalho a partir daí e organizar a atividade também nas outras comunidades da T.I. Comexatibá.

Dona Adelice, Cacique Zé Fragoso e Talita Tamikuã: Saberes partilhados entre as gerações da Aldeia Tibá.

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