Posted on: 30 de outubro de 2021 Posted by: Teia dos Povos Comments: 1

*Texto escrito pelo companheiro Sonho

Foi ingenuidade achar que ao ser enviado para participar do encontro da Teia dos Povos ingressaria em um curso técnico de agrofloresta..O que recebi na realidade foi uma formação ética-política-espiritual, que me desarmou completamente para depois me armar novamente, quando vivemos diretamente uma experiência como essa, ela não é facilmente apagável. 

Articulação

Esse encontro ainda vai ressoar em mim por um bom tempo e espero ser capaz de compreender tudo o que me atravessou. Presenciar a construção de uma articulação verdadeiramente por baixo e à esquerda que não pretende homogeneizar mas sim incorporar a alteridade, que se propõe não só a aprender a construir com as diferenças, mas fazer dela uma arma, de dar à diferença, as tradições e os modos de fazer um uso ofensivo, é um passo aparentemente pequeno, mas que possui uma considerável potência de destituição. 

A ideia de uma articulação que nos convoca para a construção, em todo esse território que se convencionou de forma sangrenta chamar de Brasil, não de um partido ou um movimento unificado, mas uma rede de povos, organizações e coletivos capazes de se reconhecerem em suas diferenças e em dois princípios básicos: a defesa de uma perspectiva claramente anticapitalista e uma prática política que se localize fora das instituições do Estado, dos rituais eleitorais dos partidos e da classe política. 

A Teia dos Povos nos convoca para habitar o fora.

Agrofloresta

A origem latina da palavra floresta vem de um advérbio foris que significa “de fora”, que nos indica um espaço fora dos domínios de um poder instituído, um lugar onde ninguém pode dizer onde está o poder, onde o poder perde a sua forma dizível.  Aprender sobre o solo, saber desenvolver um sistema agroflorestal, é importante mas ainda insuficiente, são só meios, o fim é outra coisa, está em outro lugar, está do lado de fora. 

É preciso olhar para a floresta não como uma fonte agrícola a ser explorada e muito menos, de uma forma paternalista, como uma reserva natural a ser preservada, mas sim como uma rede de relações complexas do que ali se vive, das comunidades e dos povos, capazes de nos fazer redescobrir em seu seio nossa própria potência. A floresta deve ser entendida não como algo natural e sim como um impulso indócil contra a servidão. 

Uma vivência agroflorestal que se limita a discutir apenas questões técnicas em relação ao cultivo ou a fisiologia vegetal descolada das conjunturas políticas, históricas e espirituais corre o perigo de reproduzir a mesma ideia que diz combater e reforçar as lógicas do imperativo produtivista, da avaliação quantitativa e da constituição de subjetividades competitivas que hoje são tão presentes dentro dos próprios grupos e movimentos que dizem pensar e praticar a agrofloresta mas que instrumentalizam esses saberes para continuar perpetuando a forma-Mercadoria em relação a terra. As práticas agroflorestais precisam ser pensadas não apenas como uma forma de combater o agronegócio, mas de repudiar o seu próprio princípio marcado pela figura do Um, a forma-Estado, sem isso podemos correr o risco de ver emergir os primeiros latifúndios agroflorestais.

Agrofloresta não é uma causa, não é um ideal, não representa um saber teórico, um discurso descolado dos demais aspectos da vida, é indissociável dos gestos mais corriqueiros, é sobretudo uma forma de vida não imperial. Trata-se de, ao mesmo tempo, destruir em nós mesmos tudo aquilo que aspira uma posição de superioridade e de impedir o avanço da produtividade agroindustrial para promover uma agricultura campesina revitalizada cujo o principal objetivo é a subsistência coletiva, a capacidade de sustentar materialmente a construção da autodeterminação através do que se convencionou chamar hoje de autonomia. 

É importante ressaltar que a autonomia que vem sendo construída pela Teia dos Povos não é aquela comumente confundida com a ideia de autossuficiência amplamente disseminada pela lógica da liberdade iberal. A autonomia dos povos é aquela que se leva em conta a própria existência como parte de uma realidade coletiva, é aquela que reforça a ideia de que não se consegue alcançar uma vida que vale a pena ser vivida, uma vida vivível a não ser por intermédio das relações de aliança que vinculam a uma comunidade ou a um coletivo e aqueles que o constituem. 

Aliança

A aliança aqui ganha outro sentido, não é aquela demagógica e paternalista artificialmente criada como tantas vezes se convencionou chamar de “frente ampla” pela esquerda progressista, que instrumentaliza a identidades por motivos eleitorais e/ou institucionais, essa mesma esquerda que pensa nos povos como cegos a quem se precisa abrir os olhos ou fermento humano para por em suas massas com a intenção de manobra-las. 

Os saberes e os povos são muito mais do um simples repositório de cosmologias selvagens para suavizar a miséria existencial de uma classe média racista e classista, eles são incorporados justamente onde nosso pensamento e nossa militância não alcança, onde não conseguimos enxergar. 

O conhecimento que podemos incorporar das práticas cotidianas dos povos originários é que “produzir” parentes é muito mais importante do que produzir excedentes, bens e/ou renda, entender que aquilo que chamamos de agricultura é muito mais do que produzir alimentos, é uma meio de criar relações de aliança com pessoas, animais, plantas, minerais e os seres não-humanos, os encantados. 

Se hoje está claro que conquistar a terra é apenas o começo, a destituição significa mais do que uma simples derrubada de regime e para ser possível a derrubada, é preciso constituir ainda mais o que o sistema se esforça com mais afinco para destruir em nós e que em pelos menos 500 anos não conseguiram apagar nos povos indígenas: as formas de vida que promovem a autonomia comunal. O saber ancestral de “produzir” parentes é uma afirmação de que é a amizade que vem primeiro para constituição do campo político libertario e não a presença do inimigo.

Na prática, o que vemos no assentamento Terra Vista, da onde emana todo o projeto político da Teia dos Povos é uma organização do trabalho baseada em princípios de reciprocidade e igualdade que se materializam não em complexas associações hierarquizadas, mas sim em cooperações simples: cultiva-se a terra do outro, o qual, por sua vez, ajudará a cultivar a sua. O trabalho não é pago, mas sim trocado, é uma forma de esvaziar o próprio sentido da palavra trabalho e transformá-lo numa simples atividade humana.

Uma aliança assim é incompatível com o poder de Estado, que é um mecanismo de separação que priva a coletividade de sua capacidade de organização e decisão para concentrá-la em um aparelho ou em um grupo de dirigentes, mesmo que bem intencionados, agindo em função própria. Uma afirmação radical que os meios não justificam os fins, que não se pode conceber essa guerra de uma maneira simétrica, agindo do mesmo modo que o inimigo, um movimento de reversão da posição vanguardista de guia para a de aluno das comunidades e de seus mestres e mestras.

Pedagogia

Um dos grandes mitos em relação ao inimigo é sugerir que ele se encontra somente fora de nós, quando é preciso notar que o capitalismo também se introduz dentro de nós mesmos, penetrando nossos espaços de luta e nossas maneiras de ser. E a forma mais contundente dessa introjeção se materializa através do sistema educativo que passa a empanturrar artificialmente os jovens em formação, com vista a conduzi-lo ao mercado de trabalho, onde há-de continuar a repetir até à náusea o refrão aprendido nos primeiros anos: que ganhe o melhor.

Um movimento de revolta que não possui um projeto político pedagógico crítico e de longo prazo há-de assim condenar gerações sucessivas à resignação e à servidão.

O que emana mais forte da articulação da Teia dos Povos é justamente as escolas e universidades autônomas, que emergem das próprias comunidades, como a Escola do Arco e Flecha ou a Universidade dos Povos que rompe a característica do modelo colonial clássico, que é a pretensão e o monopólio do saber legítimo. A educação autônoma envolve uma tarefa de articulação e confronto entre diferentes, em particular entre a cosmovisão dos povos e os saberes ditos científicos, e a afirmação contundente que teoria e prática são inseparáveis.

Se a escola surge da comunidade, não se perde de vista que a comunidade é a escola.

Organização

A Teia dos Povos nos convida para construir espaços que já materializem outro mundo possível, afirmando que a organização da ação é em si um modelo para a mudança que se deseja promover. Se em nossa sociedade a violência e a desigualdade de gênero é gritante, é preciso fazer aqui e agora diferente, na própria organização do encontro cujo a concepção e a organização emanou de mestras e mulheres durante o evento e que são o núcleo propositivo de toda a articulação. A organização não está separada da vida cotidiana, é a vida cotidiana que se desdobra em ação insurrecional.

Não se deve dissociar a luta pela igualdade entre homens e mulheres da luta comum pela emancipação. A luta pela igualdade ou pela abolição de gênero não é nem menos importante que a luta anticapitalista em seu conjunto, simplesmente não podem ser separadas. Muitas articulações são míopes quando se tratam dessas questões.

A mesma miopia que nos faz ver o povo e não os povos, que nos faz desejar o poder e não a potência, que nos faz sonhar com a revolução e não viver a revolta. Precisamos parar de viver por procuração rebeliões e revoltas que estão em geografias longínquas. 

Sentir nas entranhas o germinar de uma mudança real nos caminhos das nossas lutas é emocionante.

Se vocês querem conhecer rebeldes em estado de rebeldia, saiam do Brasil e venham para Bahia!

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