Posted on: 19 de junho de 2022 Posted by: Teia dos Povos de Pernambuco Comments: 0



Texto original do The Guardian, traduzido por Léo Litvin .

Kaipo Kekona, um agricultor indígena havaiano,adotou métodos tradicionais. Fotografia: Bea Oyster/The Guardian

Maui é um centro de pesquisa de transgênicos, mas os agricultores indígenas estão tentando retomar as paisagens abundantes e prósperas de seus ancestrais por Nina Lakhani em Maui com fotografias de Bea Oyste



Nuvens de chuva cobrem os picos das montanhas do oeste de Maui, um dos lugares mais úmidos do planeta, que durante séculos sustentou florestas biodiversas fornecendo alimentos e remédios abundantes para os havaianos que levavam apenas o que precisavam.

Aqueles dias de abundância e soberania alimentar já se foram.

Fileiras de limoeiros flácidos lutam nas encostas arenosas varridas pelo vento, esgotadas por décadas de cultivo de cana-de-açúcar. O escoamento agrícola que sufoca o recife oceânico e a escassez de água , ligados ao excesso de turismo e aquecimento global, ameaçam a viabilidade futura desta ilha paraíso.

Entre 85% e 90% dos alimentos consumidos em Maui agora vêm de importações, enquanto as doenças relacionadas à dieta estão aumentando, e o estado aloca menos de 1% de seu orçamento para a agricultura .

Descendo dos cumes encharcados de chuva, há seca histórica e solo degradado.

“Acreditamos que a terra é o chefe, o povo seus servos”, disse Kaipo Kekona, 38 anos, que com sua esposa Rachel Lehualani Kapu transformou vários hectares de terras agrícolas esgotadas em uma densa floresta de alimentos em um cume de montanha.

A fazenda de Kaipo Kekona foi transformada de terras esgotadas em uma densa floresta de alimentos. Fotografia: Bea Oyster/The Guardian

O solo está cheio de vida de novo, com minhocas se contorcendo e insetos multicolorido ocupados entre as camadas de raízes e palha. Esta floresta de alimentos oferece um relance das antigas florestas que por milênios prosperaram nessas encostas até serem queimadas várias vezes para criar terras agrícolas – uma tragédia cultural e ecológica documentada em canções, cantos e histórias tradicionais.


O casal é de agricultores indígenas – guardiões do conhecimento ancestral – e parte de um movimento mais amplo de soberania alimentar e de terra que está ganhando força no Havaí.

É um grande desafio. Os agricultores havaianos tradicionais têm que lidar não apenas com a seca histórica, chuvas irregulares e causadores de doenças mortais do próprio território, mas também o domínio da agricultura industrial e do capital estrangeiro no Havaí. O estado se tornou a capital da biotecnologia transgênica dos EUA depois que as transnacionais agroquímicas foram bem-vindas para abrir campos de pesquisa com menos restrições a pesticidas potencialmente tóxicos.

Na floresta alimentar de Kekona e Kapu em Maui não há pesticidas ou fertilizantes sintéticos. As culturas de cobertura e a lavoura também estão fora. “A agricultura tradicional facilita os processos naturais para alimentar o solo para que a terra possa nos alimentar”, disse Kekona.

As práticas agrícolas indígenas no Havaí são guiadas pelo ciclo lunar e pelos padrões do vento, conhecimento que também foi transmitido oralmente ao longo de gerações e até documentado em artigos de jornal que remontam ao século XIX. Essas histórias orais e arquivos desempenharam um papel crucial em como agricultores como Kekona, que não cresceram falando a língua havaiana devido a políticas de assimilação forçada, cuidam da terra hoje.

Kaipo Kekona tem frutas de Milo que produz um corante amarelo-esverdeado brilhante. As crianças de Kaipo usam o corante produzido pela fruta como tinta em seu acampamento de verão. Fotografia: Bea Oyster/The Guardian

Toda a ilha já foi uma gigantesca e próspera floresta de alimentos até que colonos nos séculos 18 e 19 roubaram a terra, a água e o trabalho para criar monoculturas industriais – principalmente açúcar e abacaxi para exportação. Isso esgotou o solo de seus nutrientes,carbono e água, e o povo de Maui de alimentos e segurança climática.

“O objetivo é derrubar o império e substituir esses caras agrícolas corporativos por algo mais ambientalmente sustentável que reflita nossos valores”, disse Kekona, que faz parte do movimento de soberania indígena que reconecta os havaianos com suas terras e tradições.


Caos organizado

Um sistema de cobertura é fundamental para uma floresta de alimentos. Na fazenda de Kekona, cana-de-açúcar, mamão, coco, manga, café e castanheiras fornecem sombra e absorvem água, nutrientes e biomassa, enquanto musgos e samambaias ajudam a suprimir ervas daninhas e distrair insetos. No meio estão as culturas de rendimento, como a raiz rica em amido kalo (taro) – um alimento tradicional havaiano reverenciado como um ancestral – batata-doce, fruta-pão, açafrão e pimentas, enquanto outros cultivos ricos em nutrientes são usados principalmente para biomassa ou fertilizante.

As árvores de mamão ajudam a criar um sistema de cobertura
que é central para uma floresta de alimentos.
Fotografia: Bea Oyster/The Guardian

Parece caótico em comparação com uma monocultura metódica, mas cada planta pega o que precisa para prosperar, enquanto contribui para o crescimento e desenvolvimento de seus pares e gerações futuras. As 30 fases da lua usadas no calendário tradicional havaiano ditam quando plantar, capinar, regar e colher.

Papelão, composto e cobertura orgânica são colocados em camadas feito lasanha para regenerar o solo, enquanto canteiros feitos de troncos criam recantos convidativos para os micróbios prosperarem. Carcaças de peixes, algas marinhas, conchas e outras sobras do mar são misturadas com plantas fermentadas, como cascas de café, para fazer fertilizante orgânico – uma técnica coreana adaptada para Maui.

Ao contrário da agricultura industrial, a diversidade é fundamental : são nove variedades de abacate e coco, três bananas nativas, seis batata-doce e 27 tipos de kalo laranja, roxo e marrom. Alguns são cobiçados pelas raízes doces e cheias de amido usadas para mingau, outros produzem folhas e caules mais saborosos para ensopados, e uma variedade cheira e tem gosto de pipoca. As variedades tolerantes à seca estão se tornando cada vez mais importantes.

Espécies não nativas como maracujá, capim-limão, mamão, amendoim perene e café são cultivadas para enriquecer o solo com nutrientes como nitrogênio, fornecer cobertura de vento ou sombra ou só porque o gosto é bom.

“É um ciclo constante, tudo coexistindo ao mesmo tempo, com as culturas sempre alimentando o solo e nutrindo umas às outras”, disse Kekona. “Esta é a essência do sistema alimentar da floresta, que nossos ancestrais nos transmitiram ao longo dos séculos.”

Maui é uma das maiores ilhas do Havaí, um arquipélago polinésio localizado a mais de quatro mil quilômetros da costa oeste dos EUA no continente, tornando ela uma das porções de terra povoadas mais remotas do planeta. É um caldeirão de biodiversidade subtropical, onde a flora e a fauna se adaptaram ao longo de milênios a uma ampla gama de ecossistemas e micro-climas, mas a destruição ecológica ao longo do século passado também a tornou a capital mundial da extinção.

Em sua essência, a visão tradicional da agricultura havaiana é criar uma relação sustentável entre a comunidade e a agricultura, restabelecendo a conexão entre cultura e terra. Não se trata apenas de olhar para trás, mas de misturar antigas práticas agrícolas regenerativas com ferramentas e tecnologias modernas para enfrentar os desafios climáticos e alimentares que o Havaí enfrenta no século XXI.

Não é fácil. O acesso à terra, água, crédito e habitação continua a ser desproporcionalmente controlado pelas elites econômicas e políticas, isto é a grande agricultura e o turismo. Uma empresa, a Monsanto, agora de propriedade da gigante farmacêutica alemã Bayer, opera em Oahu, Molokai e Maui – onde desenvolve variedades de milho geneticamente modificadas usadas em óleo de cozinha, alimentos processados, álcool e ração animal, testando novas sementes com uma combinação desconhecida de agro-químicos potencialmente tóxicos.

A Bayer está entre as quatro corporações agro-químicas que controlam 60% do mercado global de sementes e mais de 80% das vendas de pesticidas.

Poeira vermelha escura vinda dos campos de pesquisa e desenvolvimento de Maui, que são cercados por três tipos de cercas metálicas, se espalha pelas áreas residenciais com o vento, cheio de partículas finas cobrindo os móveis mesmo quando as janelas ficam fechadas.

No ano passado, a empresa foi multada em US$ 22 milhões depois de se declarar culpada de várias acusações criminais pelo uso, armazenamento e descarte ilegal de produtos químicos perigosos e proibidos. A Monsanto foi descrita como “uma violadora em série das leis ambientais federais” por um advogado do Departamento de Justiça.

O pedido do The Guardian para visitar as instalações de pesquisa de Maui foi negado.

Na última década, empresas agro-químicas como a Monsanto usaram ações judiciais e lobby político para atrasar e limitar as regulamentações sobre cultivos de transgênicos e pesticidas no Havaí, convencendo muitos agricultores e legisladores de que, sem eles, a agricultura entraria em colapso.

Mas a pandemia expôs os perigos e a fragilidade do sistema alimentar industrializado global, desencadeando uma crise quase existencial para comunidades em ilhas como Maui, que dependem de importações e turismo para segurança alimentar e econômica.

O Maui Hub, co-fundado por Autumn Ness, à direita, é o primeiro serviço de cestas agrícolas da ilha que conecta pequenos agricultores e produtores aos moradores.
Fotografia: Bea Oyster/The Guardian

“Deixar uma empresa química poluir a ilha para alimentar o mundo enquanto sofremos insegurança alimentar é mais do que irônico”, disse Autumn Ness, diretora do programa no Havaí da Beyond Pesticides e cofundadora do Maui Hub, o primeiro esquema de cestas da ilha que conecta pequenos agricultores e produtores aos moradores.

“O que está impedindo o Havaí de alimentar seu próprio povo não é a falta de conhecimento ou habilidades, é a estrutura de poder, a mentalidade de plantation rolando que inclina a balança pro lado das grandes empresas agrícolas e desenvolvedores enquanto desperdiça o conhecimento tradicional. Precisamos mudar essa narrativa porque, sem mudanças radicais, o que restará deste lugar daqui a cem anos?”

Um porta-voz da Bayer disse que a pesquisa da empresa “está em conformidade com as leis federais e estaduais de pesticidas… Damos a mais alta prioridade à segurança de nossos produtos e à sustentabilidade da terra onde vivemos e trabalhamos”


Famílias da floresta


Kahaku Ritte-Camara, gerente assistente florestal da Hōkūnui, rega as
plantas da fazenda. Fotografia: Bea Oyster/ The Guardian

Na fazenda Hōkūnui, no vale central, Koa Hewahewa, de 37 anos, e sua família de floresteires misturam conhecimento indígena geracional e tecnologias modernas para reparar os danos causados pela pecuária intensiva e décadas de pesticidas e fertilizantes sintéticos.

O projeto de restauração trata fundamentalmente de resfriar o clima para devolver as chuvas e os polinizadores – as aves da floresta que foram exterminadas ou forçadas a altitudes mais altas para fugir dos mosquitos transmissores da malária aviária. (A linha do mosquito, a altitude na qual os insetos não podem sobreviver porque está muito frio, subiu drasticamente devido ao desmatamento.)

A floresta é considerada como uma família estendida, um tanto difícil e imprevisível, mas resiliente e mais forte junto do que separada. As altas árvores de acácia e mirtáceas são doadoras naturais, capturando neblina e chuva para distribuir a umidade para fora como um regador de gramado e para baixo para recarregar aquíferos. Enquanto as plantas de cobertura do solo, como musgos e samambaias, agem como uma cobertura viva e criam um ecossistema saudável para todos os tipos de micro-organismos úteis.

Até agora, eles transformaram 25 acres de terra sem vida em uma mistura próspera e organizada de plantas co-dependentes comestíveis e não comestíveis, uma técnica que a família chama de agrofloresta polinésia.

Hewahewa disse: “Nossos rendimentos não podem igualar a agricultura industrial, mas nosso retorno sobre o investimento é a terra e a água saudáveis que deixaremos para nossos filhos… não se trata apenas de trazer de volta as chuvas, é a coisa certa a fazer como havaianos”.

A fazenda Hōkūnui tornou-se 25 acres de prósperas plantas codependentes comestíveis e não comestíveis, umatécnica chamada agrofloresta polinésia.
Fotografia: Bea Oyster/The Guardia
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