Depoimento de Erick Leal
Antecedentes e motivos
Eu posso dizer que estive passando por várias crises, que o Quilombo Terra Livre se propõe a apresentar soluções.
A começar pela questão de moradia. E não conseguia encontrar alguma moradia em que pudesse me manter saudável. E nas moradias onde eu podia me manter saudável, não podia estar de maneira permanente.
Eu não tinha emprego que me garantisse a sobrevivência. Trabalho sempre tem, trabalho sempre tem um monte prá fazer por aí. Mas para ser remunerado e seguir a lógica da cidade, isso aí tem pouco.
Também não tinha nenhum espaço em que eu pudesse me garantir a própria alimentação.
Então, no fim das contas a minha própria sobrevivência estava ameaçada.
Só que apesar de tudo isso, apesar da convocatória para o Quilombo ter aparecido neste momento, eu já tinha uma caminhada no meu pensamento político que estava me levando para esse destino.
A bem da verdade, um ano antes eu já tinha tomado a decisão de entrar na luta por território.
Aí a vida foi acontecendo. Tive que resolver outras questões enquanto isso. Mas como a luta por território já estava no meu horizonte, a partir do momento que surge essa convocatória foi só como encaixar peças do quebra-cabeça.
Primeiro Dia
O primeiro dia aqui no Baixo Sul da Bahia foi recheado de emoções.
Conheci Neto, companheiro de luta. Ele já me presenteou com falas muito importantes. Já saiu me mostrando tudo quanto é lugar, me apresentando à própria família.
Foi de um acolhimento inigualável. Foi uma sensação de ser abraçado fortemente. Realmente o primeiro dia foi uma sensação que nem tem como descrever muito bem.
Eu comi cacau pela primeira vez, nesse dia em que cheguei aqui. Coloquei a polpa na boca. E fiquei embasbacado: “Como é que eu nunca provei isso na vida antes!?”.
Falei prá Neto: “O que é que as pessoas acham tanto de graça assim nessas sementes? Sendo que a polpa aqui é a magia da coisa.”
Continuando a narrativa de emoções, eu e Neto sofremos um acidente automobilístico. Enquanto ele me levava ao assentamento onde eu passei os primeiros dias.
E essa coisa sobe a um grau ainda um pouco maior a emoção. Não tristeza, não frustração, mas literalmente a emoção de que sofrer um acidente de carro junto com m amigo. Isso é desgastante.
Nos primeiros dias que estive no assentamento o que mais me marcou continua sendo a sensação de acolhimento.
Porque eu não era dali. Não trouxe muita coisa. Trouxe muito mais necessidades minhas que tinha prá resolver. E a galera me puxou prá dentro, me fez sentir em comunidade.
A galera me acolheu assim, sem nunca ter me visto antes, sem nunca ter ouvido falar nada sobre mim. E me considerando como filho, como irmão, como tio, como sobrinho.
Isso foi uma coisa que me deixou muito, muito bem.
A Música, os Territórios e a Luta dos Povos
Fui buscar ser luthier, construtor de violões e músico, justamente por ser alguém que necessita estar nos vários campos do conhecimento. Alguém que necessita fazer as coisas por si mesmo.
E na lutheria a gente tem isso de construir as coisas do zero, projetar e participar de todas as partes do processo. E ter um resultado que seja autoral.
E relacionando com a Luta do Povos tem muita coisa que me identificou, que é bem parecido, bem similar.
As pessoas constroem com as próprias mãos muita coisa. Seja no trabalho com a terra, seja levantando a própria moradia, seja utilidades do próprio dia a dia. Coisas que as pessoas fazem pelo prazer, prá poder produzir arte, prá facilitar algum processo dentro do seu território.
E prá mim é muito importante isso. Sempre gostei de me envolver em várias áreas do conhecimento ao mesmo tempo, e tendo também nisso o trabalho com as mãos.
Conhecendo os territórios aqui estou aprendendo uma outra relação das artes em geral. Em particular com a música.
Para mim a música sempre foi uma paixão, mas que eu tinha também como um conhecimento técnico, conhecimento científico.
Aqui conhecendo a luta, percebo que as canções aqui tem uma função educativa muito forte. Tem uma função de identidade com o movimento. Tem uma função também de incorporar e fazer circular ideias.
Por isso elas fazem as músicas que tem por aqui. Por isso as músicas que surgem no MST tem esse peso.
A tensão Sul-Nordeste misturada com a transição cidade-campo
Sair da cidade e vir pro campo, talvez seja um dos pontos que tenho mais dificuldade. Talvez esteja pesando mais pra mim.
Além de toda essa mudança de região geográfica, não tem ninguém aqui que eu conhecia antes. Estou conhecendo todo mundo agora. Isso já é difícil por si só.
E aqui tem muito bicho, eu fico sendo mordido o tempo todo. Estou com muitas manchas novas na pele.
Outra coisa é que aqui onde estou agora não tem chuveiro. E vou ser sincero, sinto falta de ter um chuveiro.
E uma mudança total do povo. Tenho que ficar perguntando muitas vezes algumas coisas prá poder entender, porque eu falo de jeito diferente das pessoas daqui. Eu venho com as minhas palavras e eles também me perguntando as coisas que falo. Tem essa pequena desconexão.
O fato de ser a Bahia o lugar onde estou é peculiar. Muitas vezes as pessoas falam se referindo ao Brasil e à Bahia, ou aos estados da Bahia, como se fosse um país. Tem uma importância à parte. Não só como os brasileiros vêem o próprio estado da Bahia, mas também como os baianos vêem o estado da Bahia.
Aqui é uma realidade muito própria, tem costumes próprios e distintos.
Dos assentamentos tem muita coisa prá falar, muita coisa convergindo com as questões políticas que eu penso, com o jeito que penso a minha própria vida.
O que está me marcando mais talvez seja a questão comunitária, que é muito, muito forte. É engraçado que muita gente reclama que já foi mais forte.
Uma coisa é certa, as comunidades são muito ligadas, estão muito bem construídas.
O que está me chamando muita atenção é ouvir as pessoas. Entender o que elas tem prá contar. Acho que nunca tive um lugar que as pessoas tinham tanta coisa prá falar.
Isso realmente está me marcando muito. À vezes falo que quero ficar quieto e só ouvindo. E as pessoas não deixam: “Não! Fala você também”.
A comunicação
Eu sou muito empolgado com as diversas formas que a gente tem de se comunicar. E essas tantas outras que a gente vai inventando, quando vai passando o tempo.
Quando eu comecei a refletir a respeito da comunicação por áudios no WhatsApp, no Telegram e outros aplicativos afins, comecei a entender
melhor o porquê tantas pessoas usam a comunicação por áudio.
Não é somente pela dificuldade com a comunicação escrita.
Foram aplicativos inicialmente desenhados para mandar mensagens instantâneas, mensagens de texto.
Mas tem justamente isso de no Brasil termos uma oralidade misturada a corporeidade muito forte. Então as pessoas elas no geral se comunicam transmitindo informação através da palavra falada. E também através do gestos e dos toques.
O tipo de comunicação por áudio, acho que é uma coisa que expande fronteiras na cultura da oralidade que temos no Brasil. Algo muito forte com os povos originários antes da invasão dos portugueses. E que se multiplicou com a população africana da diáspora.
Foi se desenvolver de uma maneira única, que só podia ter acontecido aqui nesse país.
Os caminhos da espiritualidade
Antes de vir agora em definitivo para a Bahia, eu estive duas vezes em Salvador.
E da primeira vez que estive lá foi uma experiência surreal, assim de boa, né. Fiquei muito tempo depois da viagem pensando que não é possível eu ter me identificado tanto com a cidade de Salvador, com o Estado da Bahia. Não é possível que a conexão tenha sido tão forte.
Eu estava suspeitando assim que tinha alguma conexão do lado espiritual. Mesmo que eu não tenha realizado nenhuma atividade religiosa, ou coisas do gênero.
E logo seis meses depois bateu uma oportunidade de ir de novo. Vou de novo, porque não é possível que eu tenha gostado tanto assim, não é possível… Então vou uma segunda vez para colocar o pé mais na realidade, para tentar ver as coisas com mais firmeza
Mas não deu jeito. Na segunda vez eu me apaixonei mais ainda, pela cidade de Salvador, pelo Estado da Bahia.
E agora que vindo para cá em definitivo, estou sentindo muito como se eu estivesse no lugar certo. Espiritualmente.
Tenho a impressão de que, de um jeito ou de outro, eu devia parar aqui. Eu devia chegar aqui nesse ponto.
Comecei a ter algum contato com candomblé nos últimos meses. Senti muito o terreiro me chamando.
Ainda não fui para o terreiro, mas já comecei a encontrar aqui pessoas do Candomblé. Já comecei a falar sobre essas questões religiosas para as pessoas.
Estou vendo as peças se encaixando. Sim, pela primeira vez na vida com algum tipo de desenvolvimento mais espiritual. Mas agora sei que eu tenho esse desenvolvimento espiritual para trabalhar E estou no lugar certo para fazer isso.
Erick Leal
Pioneiro na chegada ao Quilombo Terra Livre, acompanhe pelo Twitter aqui.
ver também sobre o Quilombo Terra Livre: aqui
Massa demais os relatos..vida longa ao quilombo!