Posted on: 23 de dezembro de 2021 Posted by: Teia dos Povos de São Paulo Comments: 0

“Acredito que só vamos mudar nossa realidade se conseguirmos dialogar com todos os povos, sejam organizados ou não. Esse é o grande desafio.”
(Clelia, da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL) sobre a Teia dos Povos)

O fim de semana dos dias 27 e 28 de novembro foi grandioso. Em torno do tema “Terra, pão, trabalho e festa”, nos juntamos em povos – da floresta, das águas e do asfalto. 

No primeiro dia de luta e jornada (27), além de plantar dezenas de mudas nativas da Mata Atlântica no Parque dos Búfalos (zona sul da capital) também houve troca de axé, experiências, sementes, e, abençoados pela energia vital de todos os orixás, minkisis e encantados das águas e das matas, conseguimos reunir no domingo (28) indígenas M’bya, Nhandewa, Kaimbé, Terena, Guató, Kariri-Xokó, Tupinambá, caiçaras, camponeses, favelados, movimentos de ocupação e luta por moradia, diversos coletivos e compas aliados de vários lugares do estado de São Paulo,  além da presença ilustre do Mestre Joelson Ferreira.

Terra e trabalho: Plantio de mudas no Parque dos Búfalos

O primeiro dia da pré-jornada de agroecologia em São Paulo começou logo cedo no Jardim Apurá, zona sul da cidade de São Paulo. Isso não impediu que mais de 40 pessoas de diversos lugares da capital, Região Metropolitana e Baixada Santista comparecessem e fizessem o que sabem de melhor coletivamente: exercer o apoio mútuo. 

O Parque dos Búfalos não foi escolhido à toa, ele é guardião de nascentes, da Mata Atlântica e do Cerrado. O abandono por parte do poder público fica evidente durante uma breve caminhada no parque: a infraestrutura é precária e há diversos ambientes destruídos pelo fogo e pela pastagem. Nosso trabalho consistiu em dar continuidade ao processo de recuperação e fortalecer a resistência junto ao manancial Billings, que persiste mesmo com o desmatamento, as queimadas e a especulação imobiliária.

Alguns estavam plantando pela primeira vez, outros não tinham tanta intimidade com as ferramentas, porém todes estavam determinades a aprender. As lideranças locais – Wesley e Thalita – orientaram sobre os locais e métodos de plantio, como utilizar as ferramentas e quais espécies deveriam ser plantadas em cada local. Instantes depois, todos já estavam em ação, ávidos para colocar as mãos na terra, nas plantas e fazer aquele espaço vigorar.

Campo e cidade
N.A.D.A – Núcleo Audiovisual de Difusão Anarquista

Com mais de 50 mudas nativas, moradores da região e pessoas de fora deslocaram as mudas para onde seriam plantadas. Aos poucos, jatobás, guabirobas, pitangueiras e ipês foram tomando seus lugares entre morros e vales para que o parque tivesse mais um pedaço seu reflorestado. O sol estava forte, mas o plantio ocorreu bem, com as pessoas se organizando espontaneamente, ajudando quando era necessário, compartilhando ferramentas e orientações e se envolvendo na luta por terra e território. Foi assim que Mestre Joelson nos encontrou quando chegou, e logo sua força e sabedoria se somou a nossa.

Todos ficaram empolgados com sua presença e prontamente um grupo se formou em torno dele. Enquanto plantávamos, ouvíamos suas palavras. Ele nos contou sobre como São Paulo possui uma força imensa e quão importante era o fato de estarmos nos articulando para dar vazão a esta força. Falou da importância do primeiro passo que estávamos dando em direção à formação da Teia dos Povos de São Paulo, e de como aquele mutirão de plantio representava essa força se materializando. Alertou, contudo, para uma questão que merece grande atenção: a comida. De fato, no topo do morro onde ocorreu o plantio, foi preparado um canteiro onde milhos e feijões foram plantados para iniciar a caminhada rumo à soberania alimentar da comunidade.

Mestre Joelson e Wesley Rosa, uma das lideranças da defesa do Parque dos Búfalos
N.A.D.A – Núcleo Audiovisual de Difusão Anarquista

Depois de um ano e meio com pouco contato físico devido à pandemia, uma ecologia de saberes foi se formando ao longo do dia. Com as árvores em seu novo lar, um plantio agroecológico nascendo para preparar o solo e crescer comida, as pessoas se reencontrando e outras se conhecendo, o primeiro dia alcançou seu propósito: o cultivo da terra, do pão e pessoas fortalecendo sua luta e seu espírito com muita ação direta e solidariedade.

Mutirão entre gerações
N.A.D.A – Núcleo Audiovisual de Difusão Anarquista

Pão e festa: Breve, porém imenso, encontro de povos, territórios e aliados

O dia 28 começou cedo no CDC Vento Leste, no Jardim Triana, zona leste da cidade de São Paulo. As companheiras e companheiros de luta chegaram no começo da manhã e se juntaram àqueles que haviam pernoitado no espaço. Havia muito trabalho pela frente: limpar e organizar as áreas comuns, cozinhar almoço e café da tarde, mover mesas e cadeiras, levantar as lonas sobre a quadra poliesportiva. Rápida e espontaneamente os grupos de trabalho se formaram: quando a tarde deu as boas-vindas e o sol estalou sobre nossas cabeças, os portões foram  abertos para receber os primeiros convidados.

Vento Leste
@flechamiope

Pouco depois, as barracas da feira foram montadas: cachimbos e petynguás, misturas, colares, pulseiras e artesanatos tradicionais dos povos Kaimbé e M’bya compartilhavam espaço com zines e materiais gráficos dos coletivos CAFI (Coletiva Anarcofeminista), ANTAR (Poder Popular Antiespecista), MOICA (Movimento de Insurgência Camponesa) e LCP (Liga dos Camponeses Pobres). Em frente, uma colorida e perfumada barraca de frutas, verduras, hortaliças e demais produtos da terra trazidos pelas companheiras e companheiros do MST.  

Em torno de 150 companheires atenderam o chamado e se abancaram nas cadeiras e tatames espalhados pela quadra. Ao redor, as crianças jogavam bola e brincavam com a grande matilha de cães que habita o Clube da Comunidade. Este primeiro ato de assembleia da Teia dos Povos de São Paulo foi duplamente sagrado pelas místicas de abertura: o canto de boas-vindas Nhamombaraeté, que traz força aos que ouvem, é entoado pelos Guarani M’bya e, na sequência, os representantes do povo Kaimbé se reuniram em roda e elevaram seus cantos, danças e maracás ao centro de bendizeres. Novamente, a roda foi aberta e logo ganhou novas vozes, muitas cores e gentes que tentavam seguir o passo, fortalecer o rito e assim comungar suas energias, suas alegrias e revigorar a disposição coletiva pela luta. 

Júlio Guató
N.A.D.A – Núcleo Audiovisual de Difusão Anarquista

O primeiro a falar foi o companheiro, escritor e liderança indígena Júlio César Guató, que muito generosamente apresentou o coletivo Pró-Teia dos Povos de São Paulo e destacou a busca pelo bem-viver: “Nós estamos num momento de buscar alianças solidárias de ajuda mútua, para que a autossuficiência não seja apenas uma fala, a autogestão apenas para ferir o cerne propulsor das ações contra esse sistema que nos aflige, esse sistema totalmente excludente. Nossas ações, obviamente, não possuem vínculos partidários (…) e se provém em busca dos fundamentos do bem-viver. Bem-viver é a vida em plenitude, com todos os ciclos da mãe-terra, do cosmos, da vida e da história em equilíbrio com toda forma de existência. Bem-viver significa compreender que a deterioração de uma espécie é a deterioração do conjunto.

O microfone permaneceu aberto para apresentação dos territórios, elos e coletivos: os listamos a seguir com o orgulho de quem partilha a força coletiva de novos aliados, e também por serem eles a grande potência da futura Teia-SP: Assentamento Agroecológico Egídio Brunetto, Aldeia Paranapuã, Vila da Mata, Ocupação Bela Vista – Santos, Frente Nacional de Luta, Ativa Sede – Morro do Saboó, ANTAR, MMMulheres, MST Lagoinha, Brigada Urutau, Coletivo Aflorar, Coletivo Caiçara, RENAP, Fórum Popular da Natureza da Baixada Santista, Grupo da Mata, USINA-CTAH, CAFI, Galpão Alimenta, Terra e Liberdade, Casa do Bem Viver, CUAPI, Rede Brotar, Terra Livre, GLAC edições, Rede de Proteção do ABC, CAL de Bauru, WF.

Mais do que seguidas falas de três minutos ao microfone, foi nesse momento inicial que pudemos nos conhecer, conectar nossas lutas, aproximar nossos sonhos e nos ombrear nas futuras trincheiras. Após a partilha de palavras e ideias partimos para a partilha de alimentos. Um generoso café da tarde foi servido na quadra: pães, frutas, patês, batatas cozidas, doces de banana e abóbora, mungunzá, água, chás, cafés e mais.

De barriga cheia e vigor renovado, voltamos a nos sentar em roda para finalmente escutar a mensagem do mestre Joelson Ferreira, conselheiro da Teia dos Povos e morador do Assentamento Terra Vista, em Arataca (BA):

Em primeiro lugar, quero pedir licença aos povos originários, que com sua brava luta de 521 anos de luta por sua terra e seu território, e praticamente estão sozinhos, nós precisamos assumir essa responsabilidade junto com eles. (…) Agora não tem outro caminho, ou a gente se junta com os povos originários para garantir a terra, ou todos nós perdemos a terra. Então a eles eu quero saudar e deixar meu profundo respeito. Há outro povo que temos que saudar, que passou aqui nessa terra 400 anos na escravidão, e saíram da maldita liberdade pela princesa que os proibiu de ter terra: hoje estão nos morros, nas favelas, nos guetos – a este povo a saudação, e dizer que nós pretos precisamos ir pra luta urgentemente por terra e por território. Os pobres das periferias, os pobres que estão caminhantes: precisamos unificar para continuar a luta.

Tem muita gente preocupado com a Teia – o que é a Teia, o programa e toda uma confusão. Mas a Teia é muito simples. Eu queria chamar Júlio Guató aqui, os companheiros indígenas, também a menina que é catadora, um jovem e uma criança, duas mulheres, um preto e uma preta, alguém do MST, alguém do Foro Popular da Natureza, alguém da mídia do povo, alguém dos sem-teto, um operário, um trabalhador pra representar: a Teia é isso, é isso que vocês estão vendo.

Diante de nós, não estavam apenas representantes populares, mas também uma grande colcha feita de retalhos, que Mestre Joelson estendeu antes de completar: “Nós queremos construir na Teia isso, uma mistura de panos construído por várias mãos. E é importante cada mão e cada povo se ver aqui. A Teia não é pra cobrar nada de ninguém, nem mandar em ninguém: nós entendemos que a luta é do povo e cabe ao povo construir. (…) Pra nós, o princípio é a terra e o território. Não tem poder sem terra, não tem poder sem território (…), não tem corpo sem terra e sem território, não tem vida sem terra e sem território.”

Depois que as palavras do Mestre Joelson Ferreira se assentaram em nossas ideias e corações, o microfone passou a percorrer as mãos de outras lideranças de territórios, povos e coletivos que desejavam reforçar mensagens de apresentação e chamados de apoio-mútuo.

Para a mística de encerramento, o povo Kaimbé retornou ao centro do encontro: suas vozes e danças devolveram um pouco de conforto e muito encantamento para nossas carnes e ossos, esgotados após longas e poderosas horas de assembleia. Na saída, todos os alimentos não consumidos ou utilizados foram dispostos sobre uma mesa e repartidos.

Após estes dois dias de pré-jornada, e inspirada pela fala de Mestre Joelson, a Teia dos Povos de São Paulo se constitui, assim, em fios delicados, porém resistentes, que costuram os retalhos dessa colcha de povos, terras, territórios, elos e lutas no estado.

Pra que esses fios se façam Teia, agora depende de nós.

1° Pré-Jornada de Agroecologia em SP
N.A.D.A – Núcleo Audiovisual de Difusão Anarquista

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