*Texto escrito por Rosângela de Tugny
Após uma semana de trabalhos, neste 26 de novembro, sob as chuvas que molham o sul da Bahia, nossas irmãs e nossos irmãos Tikmu’un retornaram para a Aldeia-Escola-Floresta levando mudas e sementes do Assentamento Terra Vista. Deixaram no Assentamento os ecos dos seus cantos, preenchendo com sua força os espaços das matas e das roças.
No início de 2021, 95 famílias tikmu’un partiram de Aldeia Verde e ocuparam uma terra de 122 ha pertencentes à União, em Itamunheque, município de Teófilo Otoni, MG. A Aldeia Verde, onde viviam, não mais comportava a população em crescimento e nem oferecia rios e condições para plantio e outras atividades essenciais dos Tikmu’un com os seus aliados, os “espíritos” Yãmiyxop, com os quais firmam suas relações com um cosmos vivo, generoso e atuante em suas vidas. Após o enfrentamento de um duro desterro, em plena pandemia de Covid-19, com três deslocamentos para diferentes áreas, estas famílias Tikmu’un ocuparam uma antiga fazenda em uma localidade denominada Itamunheque. O novo território é vizinho do Assentamento Mãe-Esperança, onde deram início à realização do sonho de fazer florescer uma Escola-Floresta. Quando a ocupação completou um ano, em setembro de 2022, Sueli Maxakali já havia iniciado sua campanha de cura do Rio Todos os Santos, que cruza a Cidade de Teófilo Otoni e o novo território ocupado. Certos da ancestralidade indígena presente nestes territórios por onde passam hoje e encontram a devastação, Isael Maxakali e Sueli Maxakali estão envolvidos com a cura das terras e da Mata Atlântica, e assim reafirmam sua aliança com o Assentamento Terra Vista, refazendo o percurso de seus ancestrais pelos rios Pardo, Jequitinhonha, Alcobaça, Jucuruçu, chegando até o rio Aliança, onde as mulheres ouviram cantos dos seus Yãmiyxop. Solange Brito, uma das líderes do Assentamento Terra Vista, recebeu os Tikmu’un trazendo a história de um processo de mais de trinta anos de luta, ocupação e transformação do assentamento, relembrando os vários enfrentamentos ao capital e ao racismo e revelando as conquistas deste povo. Mestres Capixaba, Isaque, Joelson e os jovens agricultores, como Daniel e Pedro, relataram suas experiências de cuidado com a terra, com as sementes e mudas e o processo histórico de transformação dos métodos de cultivo. Uma atividade com o grupo de mulheres (Andrea, Branca, Valdeci e Solange) na coleta de plantas, destilação e preparo de óleos essenciais trouxe à tona os conhecimentos ancestrais de cura com as folhas que também reverberam nos cantos das mulheres.
Ali no Terra Vista, ao percorrer as matas e as áreas de plantio, as mulheres Tikmu’un se entusiasmaram por terem encontrado as melhores espécies de embaúbas para a preparação dos fios e belíssimos enlaces de sua arte.
O grupo Tikmu’un que visitou o Terra Vista tinha uma maior participação de mulheres, acompanhados da anciã Delcida Maxakali: guardiã de um inestimável repertório de cantos ancestrais, artista dos enlaces da embaúba, parteira, narradora de histórias, dona Delcida estava atenta a todos os gestos de seu povo durante as caminhadas, afirmando com uma voz quase imperceptível, mas ouvida pelos seus, a necessidade de celebrar com a força dos cantos os momentos em que adentravam as matas, encontravam espécies preciosas, identificavam pegadas de animais, derrubavam e raspavam a casca da embaúba, ou ouviam outras vozes.
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Delcida Maxakali, mãe de Isael, é também a personagem do filme Nãhã yãg mû yõg hãm | “Essa terra é nossa” que atravessa com um grupo de Tikm’un várias estradas, cercas, pastos, sob o olhar ameaçador de vaqueiros e jagunços, narrando histórias das aldeias de seus avós, certificando sua ancestralidade sobre as terras que rodeiam o território Maxakali hoje insuficiente para seus povos.
Os Tikmu’un são hoje um povo de quase 3 mil pessoas, e estão espremidos a 6.433, 91 hectares de terra, incluindo reservas e a Terra Indígena: Aldeia Escola Floresta, 122 h de terras ocupadas desde setembro 2021 (317 pessoas); Agua Boa (Santa Helena de Minas) e Pradinho (Bertópolis), terra de 5.305 hectares homologada (1979 pessoas); Reserva indígena Aldeia Verde (Ladainha), terra de 544,72 hectares adquirida pela União (176 pessoas) e Reserva indígena Cachoeirinha (Teófilo Otoni), terra de 606, 19 hectares, adquirida pela união (28 pessoas). Por esta razão, diante de Delcida Maxakali, mestre Joelson reafirmou o compromisso da Teia dos Povos com a luta pela conquista das terras ancestrais dos povos Tikmu’un, relembrando que os primeiros passos são a terra e o combate à fome plantando alimentos.
Uma importante discussão sobre a construção de alianças dos Tikmu’un da Aldeia-Escola-Floresta com os vizinhos do Assentamento Mãe-Esperança em Itamunheque revelou a necessidade de afirmar a terra como um bem que não pode ser separado das comunidades e transformado em mercadoria. Os Tikmu’un relataram que seus vizinhos enfrentam as contradições de um processo histórico relacionado à divisão e titularização das terras. Deste modo, a lógica da divisão capitalista da propriedade privada e os conflitos dela decorrentes ameaçam a união entre os povos negros e indígenas. Ao receber as mudas e sementes retiradas por um mutirão coletivo que envolveu homens e mulheres do assentamento Terra Vista, Isael carregou para seus vizinhos as preciosas sementes crioulas guardadas pela Teia dos Povos juntamente com a responsabilidade de iniciar um processo de construção de reciprocidade entre a Aldeia-Escola-Floresta e o Assentamento Mãe-Esperança.
A partir do aprendizado da história ouvida das assentadas e dos assentados, nas caminhadas e conversas, Isael reafirmou que não estava ali apenas a passeio. Que tudo o que viu ser possível transformar no Assentamento Terra Vista, iria empreender em seu território. Cineasta reconhecido, com vários filmes premiados, Isael disse que hoje, o que mais lhe interessa é plantar floresta. “Não é possível esperar. Se esperar, vai demorar muito. Vou trabalhar com meu povo e tenho certeza que vamos conseguir”.
Agradecimentos: A equipe do projeto “Trocas de saberes e sementes Terra Vista – Tikmũ’ũn _Maxakali” agradece aos assentados do Terra Vista, ao Fundo Casa Socioambiental pelos recursos, às parcerias da prefeitura de Teófilo Otoni, da coordenação da FUNAI de Governador Valadares, da FAE-UFMG e da UFSB, da Associação Produzir Juntos (Teófilo Otoni) e às amigas e amigos que estiveram conosco, tornando este momento de trocas ainda mais intenso: Vanessa Tomaz, Roberto Romero, Irislene Rocha,Laudyene Fernandes e Cacá.
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