Posted on: 29 de setembro de 2020 Posted by: Erahsto Felício Comments: 2
Há muitos caminhos para a emancipação humana. A luta dos povos não foi formulada como uma teoria aos moldes da inteligência rebelde europeia do século XIX. É difícil portanto ter um marcador de identidade política que nos associe a ser um cabano, ou um balaio ou mesmo um contestado. Contudo os povos estão em luta contra as estruturas que formam o capitalismo desde que esse modelo econômico ainda não era idealizado pelas elites europeias. Estas lutas populares forjaram uma sociedade e uma história que impôs limites aqui e acolá ao poder do Estado colonial e do capitalismo. A principal consequência visível nos dias de hoje são os domínios territoriais que os povos conseguiram conquistar ou impedir o processo colonial. Estes territórios, Terra Indígenas, de Quilombos titulados, Reservas Extrativistas (RESEX) e Territórios Pesqueiros, Assentamentos, são a principal estrutura de conservação de nossos biomas e de freio da aceleração da catástrofe ambiental.
Para quem não está familiarizado, no Brasil há muitos territórios onde a terra não se converte em mercadoria. Esta foi uma luta heterogênea com muitas temporalidades, quase todas referendadas na constituição de 1988 e em leis futuras. As organizações de esquerda, sobretudo as mais aguerridas, precisam fazer uma reflexão importante sobre isto. Vemos hoje uma espécie de descrédito nestas lutas de bases, mas dentre outras feitos absurdamente relevantes, estas pessoas tomaram (ou impediram seu território de se tornarem) meios de produção dos capitalistas. Esta sempre me pareceu um dos pilares das lutas de esquerda nascidas na Europa.
A crítica feita a estes movimentos sociais e povos em suas lutas é que estas batalhas não se convertem em revoluções. [Eu diria: tampouco os intermináveis colóquios, seminários e livros sobre os pensamentos de esquerda]. Cada grande conjuntura terá a novidade histórica da sua época e é impossível imaginar, ao olhar todas as grandes revoluções do século XX, um papel pouco decisivo por parte dos povos no campo. Sobretudo no Brasil onde o latifúndio é a espinha dorsal do poder, representação de força e o poder político mais longevo, antipovo e visceral de nossa história. Então se a imaginada revolução brasileira não surgirá destes movimentos sociais, certamente sobreviverá pouco sem eles, sem sua participação no fronte, com a sua comida, com sua sabedoria sobre os territórios, sem o vigor bravio de sua gente.
Cada território conquistado no Brasil pelos povos o foi com muito suor e sangue. Estamos falando de gente que enfrentou os escravocratas e seus descendentes, de movimentos que se organizaram para enfrentar um campo já militarizado com os jagunços e as atuais “empresas de vigilância” que atuam para mineradoras, produtoras de celulose, fazendas e a indústria hoteleira. Ou seja, a defesa do território e da biodiversidade que ocorre em cada base destes movimentos foi feita com muita violência em seu encalço.
Independente, contudo, se tal e qual movimento é ou não revolucionário para a cabeça de tal tradição de esquerda, veja como eles estão tão presentes em nossa vida. Se uma floresta não se converte em terra enquanto propriedade fundiária em função da luta de povos originários, logo ela não se converte em mercadoria, em capital e não gera riqueza para nossos inimigos. Quase toda riqueza gerada por aquela floresta em pé fica ali, para os povos, para quem luta contra a destruição. E veja, mais florestas, menos agrotóxicos nas águas, menos rios poluídos, mais água, menor a mudança climática.
De maneira parecida podemos falar sobre cada assentamento que segue vitorioso. Para cada povo que consegue viver na terra, trabalhá-la de forma coletiva, viver com dignidade ali, haverá menos favelas, menos precarização nas grandes cidades, menos pessoas expostas à violência policial ou a viver sem condições dignas nas periferias, menos esgotos nos rios. E será mais alimento sem veneno em nossas mesas, mais solidariedade em momentos como esta da pandemia quando MPA e MST e outros doaram toneladas de alimentos para pessoas pobres nas cidades.
E o mais fundamental é que se gesta ali experiências fundamentais para a sociedade que nós queremos para o futuro tais como trabalho coletivo, cooperação, construção de soberania alimentar e estruturas para viver bem a partir do trabalho digno, resolução não judicial de conflitos comunitários, etc. A nova sociedade nascerá das ruínas da velha, mas terá sua gestação ainda antes da velha se for. Cada movimento social de base possui uma larga e imprescindível experiência na organização do povo e, em geral, muito superior às organizações partidárias. Isto pelo simples fato de que precisam lidar com tarefas muito concretas como conseguir água onde há seca, plantar coletivamente, construir benfeitorias coletivas, etc. A ação concreta organiza o povo mais do que os debates político-teóricos.
A luta dos povos está mais perto de ti do que tua veia jugular. Cada rio que ainda não secou tem a participação de comunidades tradicionais e gente de luta que enfrentou os senhores da destruição para erguer matas ciliares ou proteger as nascentes. Cada pedaço de bioma que conservou sua biodiversidade dependeu da cultura dos povos e suas resistências. Se nossos pratos ainda não foram submetidos totalmente ao supermercado e sua padronização da alimentação, é porque comunidades guardam as sementes crioulas e impedem que as multinacionais do agronegócio submetam toda a nossa riqueza alimentar aos transgênicos.
A vida na sua totalidade, mas sobretudo a vida das pessoas nas cidades, hoje dependem de batalhas que não serão travadas na cidade. Há uma crescente tomada das terras por uma nova colonização branca – sobretudo no cerrado brasileiro – e quem pensa na emancipação dos povos pretos e originários não pode ignorar que essa luta começa ao impedir que sejam desterritorializados como está ocorrendo agora. Se a água da torneira de sua casa chega com agrotóxico, esta batalha também é sua. Se o rio que abastecia sua cidade foi destruído por mineradoras, esta batalha também é sua. Cada território, organização de esquerda que está no chão da luta, comunidade ou povo que é fortalecido com seu esforço gerará mais vida e diminuirá a ofensiva do capital sobre a natureza e as terras.
Muitas vezes os valores ou as bandeiras de frente dessas lutas são muito singelas para certa inteligência de esquerda. Tratam-se de pessoas lutando contra o pó de uma mineradora, outras contra a derrubada dos manguezais, ou mesmo contra um monocultivo que está secando o principal rio daquela região. Fundamentalmente estão lutando por vida. E a bandeira simples e banal é aquela que mais gente consegue congregar apesar das diferenças políticas e culturais. Então de que corrente marxista ou anarquista você é faz pouca diferença. A pergunta não é, portanto, se você é leninista, mas que qualidade de leninista você é. É um arrogante que quer explicar como luta para pessoas que só vivem porque enfrentaram o latifúndio ou é alguém que sabe se submeter à organização do povo em luta, mesmo quando não seguem seus conselhos?
Falo isto porque penso que hoje não existe maior urgência do que tratar de construir uma aliança do campo com a cidade, dos movimentos sociais de base com as organizações de esquerda, pretas, de quebrada, etc. Se o representante de nossos inimigos mudam de lugar para lugar, a coerência que dá liga à unidade dos de cima é a mesma em toda nossa nação. É sobre essa aliança preta, indígena e popular que vem clamando a Teia dos Povos. Não é uma aliança a ser feita pela Teia, mas em cada canto, em cada região, em cada quebrada, pois é a prática concreta que vai consolidar a unidade na ação contra o racismo, o capitalismo, o machismo e toda sorte de violência sistêmica contra nossos povos. E há que lembrar: as pessoas cansaram só das palavras, a urgência da vida, da fome, da saúde gritam. Se há que celebrar a aliança que seja construindo formas de viver melhor onde quer que as pessoas estejam. E nos ensinam os mais velhos: o exemplo arrasta. Façamos obras maravilhosas com nossas mãos e elas vão se multiplicar pelas mãos de outros.
Por fim, não é possível confiar no amanhã dos governos. Uma política pública dada como certo em um momento vira pó no outro – veja o meio ambiente. Então que trabalhemos para que os povos e os trabalhadores tenham mais autonomia, condição de viver de seu trabalho e da solidariedade com seus iguais.
Diga ao povo que avance!
Erahsto Felício
Divisão de Comunicação da Teia dos Povos e Educador

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