Posted on: 27 de setembro de 2020 Posted by: Teia dos Povos Comments: 0

Cerca de 50% da produção de café brasileira vem de Minas Gerais, com a maior parte dela concentrada no Sul do Estado. Em torno de 60% dos trabalhadores da cadeia produtiva do café trabalham na informalidade. Nos últimos anos, o café do Sul de Minas é responsável por quase 10% do trabalho escravo no território naciona, sendo que 82% dos resgatados são negros.

Senzalas: o passado presente

De qual Sul de Minas que estamos falando? Para nós, enquanto trabalhador rural assalariado, estamos falando, no caso do trabalho escravo contemporâneo, de todo o Sul de Minas.

Quando se liga o passado com o presente, nós afirmamos que pouca coisa mudou aqui na região.

Comentei hoje que parece que houve apenas uma transferência de locais das senzalas. De dentro das fazendas, principalmente de café, para as periferias das cidades. Houve esta “modernização” das senzalas.

O trabalho escravo no Brasil, e no Sul de Minas, é muito presente e muito forte.

Para se ter uma idéia, a lista suja publicada em julho de 2020, o Sul de Minas aparece com aproximadamente 10% de todo o trabalho análogo a escravo encontrado no território nacional. E diga-se: o café do Sul de Minas.

A presença muito forte da prática de trabalho escravo contemporâneo no Sul de Minas, vem trazendo resquícios do passado escravista da elite daqui desta região.

Nos últimos anos, foi encontrado trabalho escravo em diversos municípios da região: Muzambinho, Turvolândia, Ouro Fino, Ibiraci, Claraval, Poço Fundo, Albertina, Carmo de Minas, Jacuí, Boa Esperança, Guapé, S. Vicente de Minas, Bom Jesus da Penha, Jesuânia, Bonsucesso, Machado, Carmo da Cachoeira, Passa Quatro, Nepomuceno e Minduri.

O importante, e muita gente não se dá conta, é quem financia o trabalho escravo no Sul de Minas: o próprio Estado.

Em 2019 o governo federal liberou mais de R$ 200 bilhões para a agricultura. E assim tem sido ano após ano, não importando quem estivesse no governo.

O Estado Brasileiro que não nos garante o acesso a terra, que não nos  garantiu o trabalho assalariado decente, e que hoje não nos garante educação de qualidade, não nos garante saúde, não nos garante moradia, que nos criminaliza a todo momento nas periferias, é o mesmo Estado que financia os produtores que nos escravizam.

Segundo pesquisa da ONG Repórter Brasil, 82% dos trabalhadores resgatados do trabalho escravo no Brasil são negros.

Enquanto liderança sindical e negro, isto me permite afirmar que houve duas mudanças. Ao invés de a partida ser através do oceano, hoje a rota da escravidão é pelo asfalto. Ao invés do navio negreiro, hoje o meio de transporte desses trabalhadores escravizados são os ônibus. O que leva esta população negra mais uma vez a ser escrava no país.

Quem é este povo resgatado do trabalho escravo? 91% são homens, jovens entre 15 e 29 anos (40%). Outro dado importante é que a grande maioria do trabalho escravo no Brasil, e no Sul de Minas, está no campo.

No passado eram os coronéis e o latifúndio. E no presente é o agronegócio que continua nos escravizando, através do Capital financeiro no campo, que nos exclui de vários direitos.

Além do trabalho escravo há a precarização do trabalho como um todo. Hoje 60% dos trabalhadores rurais não tem qualquer tipo de registro ou formalidade no emprego. No café no Sul de Minas este índice é de 61%.

É muito direito roubado, muita prática de violação de direito, trabalhista e humano, que continua em andamento nos dias atuais pelos  proprietários de terra, herdeiros em parte de toda a riqueza construída com o crime dos navios negreiros da escravidão de nosso Povo.

Um Estado a serviço da opressão dos trabalhadores

O próprio Estado que deveria combater esse crime, é esse mesmo Estado quem financia e se nega a fazer o papel dele.

Só quem pode reconhecer caso de trabalho escravo no Brasil, além do Judiciário, é a Auditoria Fiscal do Trabalho.

O meu município tem 242 empregadores rurais cadastrados no sindicato como produtores de café. Quem fiscaliza o meu município é a Gerência de Pouso Alegre, que tem hoje apenas 4 auditores ficais para cobrir 70 municípios, na área rural e urbana, serviço público e privado. Varginha tem 7 e Poços de Caldas 8. Menos de 20 auditores para fiscalizar mais de 100 municípios.

Estamos falando de um Estado que a todo momento criminaliza o movimento sindical e quem luta contra o trabalho escravo.

E neste momento de governo Bolsonaro, um governo fascista, patronal, um governo do agronegócio e da moto-serra, para nós é ainda um pouco pior.

Porque é um governo que a todo momento ameaça mudar para pior o conceito de trabalho escravo.

Foi um governo que cortou mais de 50% dos poucos recursos que tem a Auditoria do Trabalho. Um governo que persegue e quer extinguir o movimento sindical. Um governo que ameaça a todo momento com o fechamento Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho.

Então, estamos falando de um governo que representa o Estado Brasileiro Aquilo que já era ruim, nesse governo ficou pior.

O desafio de combater o trabalho escravo: a luta pela terra

Tem um grande desafio hoje que é encontrar formas de combater o trabalho escravo.

Os pequenos agricultores são excluídos das políticas públicas do Estado, de investimentos na sua produção, de comercialização, de organização para que esses trabalhadores permaneçam na terra.

Nós precisamos achar a porta de saída, achar uma forma de combater de fato o trabalho escravo.

Não adianta resgatar os trabalhadores, tirar o trabalhador da fazenda São João, em Machado, ou da Fazenda da Pedra, em Carmo de Minas. Se nós resgatamos estes trabalhadores, garantimos o direito rescisório, e eles vão para casa. Daqui a dois meses, eles tem que sair de casa novamente. Tem que entrar em um novo ônibus e ir pra outro lugar, para outra cultura, para correr o risco de ser escravo em outra propriedade rural.

Então, nós precisamos fazer com que esse trabalhador, não precise sair de suas terras, e sair de suas casas. Nós precisamos achar a forma para os trabalhadores não precisarem ser escravos de ninguém.

Nós acreditamos que para além da expropriação da terra, está a necessidade e a importância da reforma agrária no Sul de Minas.

Enquanto ADERE e trabalhadores somos aliados do MST.

Só se vai  combater de fato o trabalho escravo nos dias de hoje, se o trabalhador rural e o trabalhador negro, principais vítimas do trabalho escravo, tiverem acesso a esse bem tão precioso. Ao instrumento que de um lado pode garantir dignidade, vida e trabalho, e que do outro é utilizado para escravizar: que é a terra.

Enquanto movimento dos trabalhadores, a todo momento falamos que o Sul de Minas é um palco muito grande de trabalho escravo, que precisa ser fiscalizado pela sociedade local.

Não tem sentido estarmos numa região cuja locomotiva é o café, e sabermos que trabalhadores todos os anos são escravizados nessa região.

E nós sabemos quem são as pessoas que escravizam os trabalhadores. Nós precisamos dar nome aos bois e denunciar para sociedade que determinados fazendeiros continuam sendo escravocratas.

Precisamos denunciar as empresas, as cooperativas que estão associadas às grandes empresas, nacionais e multinacionais, que lucram muito com essa violação da dignidade humana, com o café sujo com o sangue do trabalho escravo.

Precisamos chegar em Três Pontas, onde tem uma história de resistência muito bonita, mas também tem uma história de escravidão. Os produtores daquela região, de Boa Esperança, Campos Gerais, Três Corações, Varginha, levam o café manchado de trabalho escravo para a cooperativa Cocatrel, e esta vende para as grandes empresas.

Da região de Carmo da Cachoeira, Nepomuceno, Três Corações, levam para a cooperativa Minasul, em Varginha, mas é a mesma coisa: um café que escraviza.

Aqui na minha região do Circuito das Águaa, onde há trabalho escravo em Jesuânia, Andari e Carmo de Minas, levam o café sujo de sangue para a cooperativa Cocarive, e vai parar na Starbucks, na Nestlé, no McDonald’s.

A luta contra a escravidão é atual

Combater o trabalho escravo é também valorizar a luta dos companheiros que lutaram por liberdade no passado.

E nesse momento temos a presença do trabalho escravo na produção de morango, na região de Camanducaia, de Cambuí, de Estiva.

Precisamos combater isto de forma mais dura, mais drástica. Para isto precisamos nos articular melhor, a universidade, os estudantes, os professores, nós os trabalhadores rurais, os companheiros que lutam pela terra.

Assim conseguimos de fato valorizar a luta contra a escravidão no passado e combater o trabalho escravo contemporâneo que acontece a todo vapor.

E precisamos ter acesso à terra, valorizando a luta e a resistência dos companheiros do MST, como foi o caso do Quilombo Campo Grande no mês de agosto de 2020.

O trabalho análogo à escravidão nos dias de hoje

As características do trabalho análogo a escravo são:

– servidão por dívida;

– retenção dos documentos pessoais;

– más condições de trabalho e alojamento;

– jornada exaustiva de trabalho.

Todo trabalho escravo tem um intermediário legal chamado “gato”. São as pessoas que arregimentam os trabalhadores oferecendo ganhos e vantagens, em nome dos fazendeiros, que não serão cumpridos.

É comum aqui na região a vinda de trabalhadores vindos de Vitória da Conquista (BA).

Os trabalhadores quando chegam na fazenda não tem cama para dormir, quando tem cama não tem colchão minimamente decente, quando tem colchão não tem coberta. Tivemos caso este ano do trabalhador ter que comprar o próprio colchão.

Já peguei num alojamento em Machado uma cozinha com 9 botijões de gás. Uma verdadeira bomba-relógio. Com esgoto correndo a céu aberto. E descarga do banheiro caindo na porta da cozinha.

Em suas cidades de origem estes trabalhadores tinham dignidade onde moravam. E quando chegam aqui são atirados nesta condição.

No caso da servidão por dívida, hoje não acontece mais no café a modalidade de empréstimo de dinheiro para caracterizar o trabalho escravo.

Geralmente o empregador tem um convênio informal com um supermercado ou uma loja de manutenção, que vende máquina colheitadeira costal. O empregador compra a máquina e desconta no salário, desconta a gasolina e a manutenção.

Da mesma forma a alimentação. O empregador compra a comida crua e entrega ao trabalhador, muitas vezes com preço absurdo. Isto faz com que o trabalhador se endivide e vai caracterizar a servidão por dívida.

E também a jornada exaustiva de trabalho, que está sendo um absurdo. Durante a colheita o trabalhador chega cumprir de 10 a 12 horas por dia, para receber entre R$8 e R$10 por medida de 60 litros. Trabalho de Domingo a Domingo, sem nenhum descanso.

A decisão do TST é que a medida de café tem que ser 60 litros. Muitas vezes o empregador frauda a medição, colocando um pedaço de madeira na alça da caixa, aumentando a capacidade para 80 litros. O trabalhador entrega 80 litros e recebe por 60 litros. A cada 3 medidas, o patrão fica com uma de graça.

E ocorre a retenção de documentos pessoais.

Estamos numa região truculenta, onde a polícia continua abordando o povo negro, trabalhador, nordestino. Se você não estiver com sua carteira de trabalho, com sua identidade no bolso, você pode ir preso.

Resumindo: o empregador recolhe as carteira de trabalho, guarda no escritório dele ou num escritório de contabilidade, impedindo muitas vezes que o trabalhador saia. Quando este trabalhador sai, a polícia aborda. Já acompanhamos alguns casos em que o trabalhador foi levado para a Delegacia, por não estar portando documentos.

Para piorar, há a fraude generalizada das formas de pagamentos.

No Sul de Minas 61% dos trabalhadores rurais não tem carteira assinada. E daqueles que tem carteira assinada, nela consta apenas o salário mínimo. Muitas vezes na colheita os trabalhadores tiram bem acima disto, e os empregadores não pagam os direitos.

Estes casos são muito comum de serem identificados durante a colheita de café.

No Brasil, em menos de 20 anos foram resgatados mais de 50 mil trabalhadores vítimas de trabalho escravo. E lembramos que este resgate não chega a 10% dos casos existentes.

A ampliação da luta contra o trabalho escravo

Primeiro é preciso saber quais entidades e organizações querem se envolver efetivamente com o compromisso do combate ao trabalho escravo.

A universidade ainda não trouxe para si este compromisso. Não adianta se envolver só no debate. Tem que se envolver na prática. Produzindo estudos, pesquisas, para subsidiar o movimento, para qualificar o enfrentamento direto a prática do trabalho escravo aqui na região.

Está faltando também o compromisso do movimento sindical local, tanto no debate quanto na prática do enfrentamento.

Quanto aos trabalhadores é mais difícil.

Aqui no Sul de Minas ainda predomina o coronelismo. Onde o fazendeiro que é escravocrata, violador dos direitos, ou ladrão proposital dos direitos. Ele sabe onde cada um dos trabalhadores mora.

Se o trabalhador denuncia, ou participa da vida sindical, ou da luta por direitos, este trabalhador entra numa lista suja e não consegue mais emprego.

Nós como lideranças sindicais neste momento de desemprego, de perseguição, de criminalização dos trabalhadores que lutam por direitos, nós temos que fazer o nosso dever de casa. Que é enfrentar, divulgando para os trabalhadores os direitos que eles tem e também os meios de comunicação de denúncia anônima.

E nós do movimento sindical termos a coragem de apontar quem é o escravocrata, para exigir do Estado que cumpra o papel dele.

Concentração fundiária no Sul de Minas

Embora no Sul de Minas a situação das propriedades seja muito diversificada, na região do  Circuito das Águas ainda está a família Junqueira, que concentra muita terra. Pode não aparecer grandes propriedades, mas aparece muitas pequenas propriedades em nome de uma família só.

Já na região de Machado, Cabo Verde, S. Sebastião do Paraíso, Alfenas, há grandes propriedades de terra.

A maior parte das propriedades no Sul de Minas são médias, mas há uma boa parte de propriedades grandes também.

Lista Suja do Trabalho Escravo

A Lista Suja do Trabalho Escravo chegou a quase 600 nomes de empregadores escravocratas. E estamos hoje com 151 nomes, por falta de fiscalização por parte do governo, principalmente a partir do Golpe de 2016.

Nossa preocupação é que a lista encurte tanto que acabe perdendo sentido.

Mais uma vez chamamos os companheiros para a tarefa de contribuir para incluir nomes de empregadores escravocratas, sejam eles rurais ou urbanos, na Lista Suja do Trabalho Escravo para não perdermos este importante instrumento, conquistado com tanta luta.

Reforma Agrária e o combate ao trabalho escravo

O Artigo 243 da Emenda Constitucional 81, de 2014, determina que as propriedades rurais ou urbanas, em qualquer região do país, onde forem encontrada exploração de trabalho escravo devem ser expropriadas, sem indenização, e destinadas à Reforma Agrária.

Com isto temos duas vantagens. Primeiro se rompe o instrumento de exploração. E segundo que se democratiza a terra.

No caso da Reforma Agrária é importante porque faz justiça à população pobre, especialmente à população negra, que foi sistematicamente excluída do acesso à terra.

Com a Reforma Agrária se combate o trabalho escravo, a falta de moradia e o desemprego. E tantas outras mazelas que temos. Isto faz com que nós, enquanto povo trabalhador, tenhamos acesso ao recurso natural e melhor qualidade de vida.

Neste sentido é que a Reforma Agrária vem a ser uma porta de saída, de fato, do trabalho escravo. Garantindo ao trabalhador do campo, o trabalhador excluído, o acesso à terra e a libertação das garras dos escravocratas deste país.

.

Este texto é baseado na participação de Jorge Ferreira dos Santos na live “Trabalho escravo e a luta pela terra no Sul de Minas: passados presentes”, em 24/09/2020.

O vídeo completo pode ser visto aqui neste link

Jorge Ferreira dos Santos

coordenador da ADERE (Articulação dos Empregados Rurais Assalariados)

e guerreiro na luta contra o trabalho escravo no Sul de Minas (MG).


sobre os Diários da Pandemia:

  • Embora seja tb um trabalho jornalístico, se propõe a muito além disto.
  • Tem como objetivo principal tecer uma rede de comunicação entre as diversas lutas localizadas.
  • De modo a circular as experiências, para serem reciprocamente conhecidas numa retro-alimentação de auto-fortalecimento.
  • Não se trata de tão somente produzir matérias, e sim tornar as matérias instrumento para divulgar conteúdo capaz de impulsionar os movimentos.
  • Em suma: colocar a comunicação a serviço das lutas concretas.

acesse a série completa aqui neste link

.

Leave a Comment