Posted on: 14 de agosto de 2020 Posted by: Rafique Nasser Comments: 4

Reportagem: Mariana Cruz e Rafique Nasser

Este é o segundo texto de uma série sobre a importância das sementes de milho crioulo na conquista da soberania alimentar, da terra e território e, sobretudo, da autonomia dos povos.

NÓS SOMOS AMIGOS DAS FORMIGAS”, Mestre Joelson Ferreira à Telesur TV

Do punhadinho pôde germinar um monte, desse monte o que se quer é que nasça muito mais. A semente crioula é fundamental para a construção da liberdade e estratégica para a defesa dos territórios. O alimento que nos dará forças para a luta é aquele que tem sua história fincada nas tradições rebeldes de nossos ancestrais.

Para conversarmos sobre isso, entrevistamos José Maria Tardin – Militante da Via Campesina e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, integrante da Frente Nacional de Agroecologia do Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST. Tardin é um grande aliado da Teia, tendo participado das duas últimas Jornadas de Agroecologia da Bahia – a V e a VI, em Porto Seguro e Utinga, respectivamente.

É urgente discutir como preservar a vida no cenário da atual pandemia do COVID-19 e na crise conseguinte que se avizinha. Especialistas já afirmam que o Brasil é um epicentro emergente da extrema fome. Em abril, o diretor executivo da agência de assistência alimentar da Organização das Nações Unidas (FAO) afirmou em relatório que o coronavírus implica em uma fome de “proporções bíblicas”.

Enquanto o agronegócio comemora seu milho transgênico como um sucesso de mercado, 690 milhões de pessoas padecem famintos no mundo. A alimentação é um direito fundamental da humanidade, garantida em tratados internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e incluída, em 2010, ao artigo 6º da Constituição Federal. Porém, na realidade material, no chão das áreas dos esquecidos, ela é negada pelos ardis do capital.

O capitalismo transformou o alimento em pura mercadoria, o separando da natureza – espoliando a ancestralidade milenar do cultivo, empresas multinacionais projetaram um milho quase infecundo e o enviaram a todos os cantos do planeta como commodity. A semente foi padronizada.

Nós queremos o inverso: retomar a cultura ensinada pelos povos originários do que é hoje a América, guardar a semente cujas variedades podem ser manejadas indefinidamente, tecer uma rede de partilha. Encher o saco para ficarmos de pé. “Berraram que iriam nos matar, mas nós cantamos que não iremos morrer”, canta Ayam Ubráis Barco, inspirado no pensamento da escritora Conceição Evaristo.

Em todos esses anos, o Estado brasileiro e as corporações de mídia hegemônica já mostraram de que lado estão nessa guerra. Os latifundiários e seus lobistas ocupam cargos no legislativo, criam leis que permitem a destruição dos bens naturais, beneficiam o agronegócio e, até mesmo, elegem presidentes e indicam ministros para sancionarem suas intenções.

O enquadramento marketeiro agro é pop, tech, tudo é um dos responsáveis pela legitimação simbólica dessa indústria que envenena as mesas, enquanto invisibilizam a agroecologia brasileira. Eles não sentem vergonha e nem remorso de se afirmarem na mesma posição que os antigos senhores de engenho, de forma que louvam e comemoram a reedição da exploração colonial.

José Maria Tardin na 6° Jornada de Agroecologia da Bahia, em Utinga (BA) nas Terras do Povo Payaya

Teia: Para iniciar nossa conversa, a gente gostaria de começar perguntando o seguinte: como você avalia a forma como o milho está sendo tratado pelo agronegócio, que o comemora como seu cultivo de maior sucesso?

Tardin: O milho é alimento estratégico da humanidade. Ele é cultivado em muitos países e fornece uma parcela importantíssima da base alimentar da humanidade, seja de forma direta ou transformado em produtos tipicamente vegetais ou na alimentação de animais. Então ele se enquadra dentro do que PARA o agronegócio é fundamental: as commodities. Se utiliza esse termo em inglês para denominar produções que são estandardizadas, que são padronizadas dentro do que a gente chama na agricultura de um pacote tecnológico. Isto permite artificializar a natureza, em vários ambientes do planeta, se obtendo determinada produção agrícola. O milho foi sendo trabalhado para chegar nisso. É importante recapitular, pois quando a gente vai conhecendo a origem e o desenvolvimento do que se chamou e ainda se chama de revolução verde, o milho é uma das plantas mais importantes. Por quê? Porque ele é, no âmbito de uma padronização genética, a primeira planta importante – dentre as que vão se tornar commodities – a ser manipulada geneticamente a partir da uniformização da produção dos híbridos. Então, o milho é a primeira planta agrícola de grande importância econômica, em termos de volume e tudo mais que isso envolve, convertida de uma variedade para um híbrido. Isso foi há mais ou menos 100 anos, por volta de 1920, nos Estados Unidos. A pessoa que conseguiu essa façanha genética constituiu a primeira empresa de produção comercial de semente em escala crescente, a Pioneer, que depois acabou sendo comprada por outras corporações e hoje não existe mais. O milho, do ponto de vista do agronegócio, pode ser reconhecido como o primeiro passo do controle de uma corporação empresarial sobre um patrimônio genético da humanidade.

Teia: Você pode nos falar um pouco mais sobre as diferenças entre um milho híbrido e uma variedade selecionada e trabalhada por camponeses e povos tradicionais?

Tardin: Os milhos variedades são aqueles oriundos do trabalho milenar de diferentes povos a partir do México e América Central, que depois vai se dispersando pela América. As variedades são todas essas diversidades de milho que os povos foram desenvolvendo ao longo de milênios. Elas são chamadas de variedades porque elas apresentam ampla variabilidade genética, por isso que você tem milho desde o México – que é o centro de origem – até o Uruguai, pensando na América. Depois, o milho foi introduzido nos Estados Unidos. Para que uma planta conseguisse se adaptar em um território tão vasto, ela apresenta uma enorme variabilidade genética, como variedades de espiga, cores de sementes – há variedades que têm, inclusive, sementes de múltiplas cores na mesma espiga. Há diferenças nos ciclos de vida – algumas curtas e outras bem longas, na altura das plantas, na quantidade de espigas por planta, formato e dureza dos grãos, e muitas outras variações.

Já o híbrido é uma uniformização genética. Para se produzir um híbrido, a tecnologia básica é selecionar algumas variedades coletadas de comunidades e povos indígenas, elas são cultivadas em lugares diferentes e distantes isoladas de outras variedades de milho, e tem o cruzamento sob controle do ser humano. Se isola essas plantas em determinados lugares, empacota o pendão – que é onde fica o pólen ou o gameta “masculino” e a boneca, que é onde estão os gametas “femininos” do milho – e então descarrega manualmente os milhares de grãos de pólen que estão no pacote sobre a boneca da espiga da mesma planta e a protege com o mesmo pacote por um período. Isto para se assegurar que ocorra a fecundação sem possíveis contaminações de pólen de outras plantas.. Isso é repetido por, pelo menos, 5 à 7 ciclos de cultivo. Essa planta vai ter um cruzamento artificial feito por uma pessoa e isso vai provocar uma transformação, que a torna uma planta raquítica. Dentre essas plantas raquíticas, se seleciona as de melhor aparência aparência e depois vão cruzá-las também sob controle. Esse controle de plantas que foram cruzadas durante 5 ou 7 ciclos vai produzir um tipo de milho com alto vigor. É aí que surge o milho híbrido: uma planta produzida a partir de cruzamento controlado pelo ser humano de uma variedade com ela mesma e selecionando, dentro desse trabalho, as melhores para gerarem uma planta que não existe na natureza, ou seja, uma planta sob total controle de cruzamento pelo ser humano. Faz-se o mesmo com diferentes variedades e depois as cruzam de forma controlada obtendo-se híbridos múltiplos. Quando você planta o híbrido, você vai ter uma explosão de produtividade. Mas se você pegar uma espiga e tirar as sementes, como ela é proveniente de uma cruza recente, ela vai ter uma produtividade decrescente imediatamente. Ela entra em uma desagregação da sua estrutura genética. Isso obriga o agricultor a comprar todo ano a nova semente da empresa para garantir a alta produtividade, porque você não pode usar a semente depois da primeira vez que comprou o milho, tem que todo ano comprar de novo.

A gente começa a falar do milho, mas isso se estende por um grande leque de plantas e animais, que a gente não pode perder de vista. A população não faz as contas, mas uma grama de semente de tomate as vezes pode ser mais cara que a grama de ouro. O preço dessas sementes em uma empresa internacional é um absurdo. O tomate é uma planta nativa dos Andes, melhorada milenarmente pelos povos andinos e pelos povos astecas que viviam no atual México e agora foi apropriada como patrimônio de empresas. O controle genético sobre a produção de frango, porco, gado pra corte e gado pra leite…é um absurdo no mundo inteiro. Mas quem desenvolveu essas espécies e raças de animais? Foram os povos camponeses que, há milênios, domesticaram esses animais, selecionaram eles para leite, para carne, para lã, para trabalho, e isso tudo agora é propriedade privada de um grupo pequeno de empresas.

Teia: E quais são outros efeitos, talvez mais recentes, desse controle sobre as sementes, por parte de empresas?

As empresas agora, para além do híbrido, fabricam o milho transgênico, com o qual o controle sobre esse patrimônio genético é muito mais radical. Porque agora esse milho híbrido que, à medida que você for plantando rebaixa a produtividade, também é um milho geneticamente transformado para receber determinados agrotóxicos. Outro agravante, no caso do milho, é que as corporações capitalistas que controlam o milho transgênico incorporaram no milho transgênico os genes de uma determinada bactéria que produz uma toxina para matar a lagarta do milho, que provoca em alguns lugares destruição de lavouras. Como eles descobrem isso? O conhecimento de que essa bactéria mata essa lagarta, é um conhecimento do início do século XX, e se usa largamente esta bactéria em agriculturas de base ecológica e na agroecologia. O problema é que, como eles generalizam o uso deste controle genético da lagarta, com o milho transgênico, a lagarta começa a desenvolver resistência e não morrer mais. Essa tecnologia está entrando em colapso e, além dos agricultores pagarem muito mais caro por essa semente, não conseguem evitar o uso de veneno também para a lagarta. Então se, por exemplo, o agronegócio pulveriza na lavoura do milho o agrotóxico para controle da lagarta, elas migram na fase adulta (mariposa), para a lavoura de um povo indígena, comunidade quilombola ou camponesa, e elas são resistentes à bactéria, elas não morrem. Portanto, ao desovar nessas lavouras, as novas lagartas que nascerem, agora resistentes, elas danificam a lavoura daquele povo, daquela comunidade. Entende como o problema vai se agravando com o controle das empresas sobre o milho em particular, e todas essas tecnologias do conhecimento popular de milênios e passa a ser propriedade privada de um grupo muito pequeno de empresas?

Teia: Até agora, falamos sobre os problemas do milho híbrido e transgênico em sua dimensão do cultivo. Mestres e mestras da Teia dos Povos têm chamado atenção também para como a perda de nossas sementes implica na perda de nossas culturas alimentares. Como você vê essa questão?

Tardin: O que eu posso te dizer é que as variedades têm uma consideração nesse sentido que é bastante importante: um determinado povo indígena, por exemplo, tem variedades há séculos e não plantam outras porque é um patrimônio genético daquela comunidade, uma é específica para produzir determinada bebida; outra variedade é utilizada para fazer determinada farinha; outra para comer cozida, e há outras para determinados rituais. Então, a população foi selecionando as variedades de acordo com suas necessidades. O milho híbrido não permite isso, porque o resultado desse milho é desenvolvido sob o controle de uma empresa – aquele milho vai ser igual se for plantado no Brasil, na África ou na Ásia. Não oferece essa possibilidade de uso diferenciado porque ele está geneticamente determinado com aquelas características que a empresa definiu. Esse é um aspecto problemático. Já trabalhei muito com sementes e variedades, não só de milho como também de outras plantas, nas comunidades camponesas aqui do Sul do Brasil. Você tem variedades de mais de 100 anos. Há um milho, por exemplo, excelente para fazer determinada farinha para polenta. O campesinato tem essa habilidade de associar aquilo que ele planta com seus hábitos alimentares, assim como selecionaram variedades específicas para tratar cavalos, bovinos e caprinos. E isso, com o híbrido, não é possível fazer.

Teia: Seria correto dizer que os híbridos, por estarem mais orientados à produção de silagem e/ou ração para alimentação animal, têm características mais adaptadas a esse objetivo?

Tardin: Como o milho do agronegócio é produzido em larga escala para fazer ração para animais, eu vou usar o mesmo termo, é usado para fazer ração para os humanos. Acaba sendo uma ração mesmo, porque a população humana come milho e, se não lê a embalagem, nem sabe o que tá comendo. Hoje, grande parte do que se oferece nos supermercados, dos alimentos que estão ali, têm milho e soja transgênicos transformados em farinha. Estamos, atualmente, comendo um volume de soja e milho transformada em farinha, misturadas nos mais variados tipos de alimentos sem saber. E o agronegócio não atende a obrigação de informar esses ingredientes transgênicos nas embalagens dos produtos.

Se você hoje for verificar nas prateleiras do supermercado você vai encontrar soja e milho pelo menos, naquilo que é chamado de comida, por volta de 70% dos alimentos. É um absurdo o volume de soja e milho transgênicos que está sendo enfiado goela abaixo na população mundial.

Teia: A gente observa, e sempre observou, que o agronegócio é um aparelho do Estado e um dos exemplos disso é “bancada do boi” no legislativo. A própria Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, é do agronegócio. Um dos discursos utilizados para a manutenção do poder do agronegócio, não utilizado só pelos políticos da direita mas também por aqueles reconhecidos progressistas, diz que o agronegócio é uma base econômica, que é fundamental para o Brasil. É possível contrapor esse discurso? Se é possível, como contrapor?

Tardin: A primeira questão da farsa desse discurso é que é muito simples de ser desmontada. Eu vou começar por aqui, veja: Seja para o agronegócio do milho ou da soja transgênicos, seja outras indústrias capitalistas, você pode aplicar esse raciocínio. A lógica de uma empresa capitalista é que tudo aquilo que ela provoca de danos à saúde humana e à natureza é considerado externalidade. Isto significa que os impactos negativos que ela gera não são responsabilidade dela.

Quando o agronegócio contamina um rio com agrotóxico, por exemplo, o custo de descontaminá-lo não vai para a planilha do milho transgênico do agronegócio. O problema daquela água contaminada agora é um problema da sociedade. Quem é que vai ter vai ter que ter o trabalho de descontaminar a água? O poder público. Os recursos dos impostos gerados pela sociedade é que vão ter que assumir o custo gerado pelo agronegócio. Isso pode ser transferido para qualquer impacto que uma empresa capitalista gera negativamente sobre o humano e natureza. Por isso que é fácil para um capitalista falar que “a minha empresa deu tanto de lucro esse ano”, porque os custos sociais e ambientais que ela gera não foram contabilizados como custos seus, ela transferiu para a sociedade.

Fonte:https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2018/08/13/divida-cresce-mas-acordo-com-bancos-anima-brf.ghtml, 2018

Outra questão do agronegócio é ocultada: para ele ativar seu sistema de produção, ou seja, para comprar máquinas, fertilizantes sintéticos, agrotóxico, ele depende de crédito bancário. Grande parte dos empréstimos do agronegócio é feito por bancos estaduais e federais. Mas o burguês do agronegócio diz “a gente paga o financiamento”. Mentira! O volume de dívidas do agronegócio com o Banco do Brasil, por exemplo, transferido para o tesouro nacional, é de valores absurdamente enormes. Como eles têm uma bancada parlamentar de deputados federais, e também ministra, eles conseguem, a cada governo, rolar essa dívida para mais 20 anos. Eles fizeram com todos os governos: Collor, Itamar, Sarney, Lula, Dilma e governo Bolsonaro.

Diferença entre o crédito oferecido para o agronegócio e para a agricultura familiar, 2013. Fonte: Campanha Baixa a Bola Ruralista.

Como essas informações não são publicizadas na grande mídia, só através de estudos mais especializados, a população desconhece essas informações. É muito fácil você ligar a televisão e ver a Rede Globo, que faz parte desse corpo chamado agronegócio, dizer que “o agro é tech, é pop, é tudo”. E essa campanha ideológica reforça essa enganação da sociedade brasileira. Na medida que você tem acesso a essas informações, é muito simples debater com eles. É muito fácil derrotar um burguês ou um profissional a serviço do agronegócio em um debate.

Teia: E a ciência? Como você está percebendo o discurso da academia em relação a essas situações aqui colocadas?

Tardin: A burguesia, enquanto classe que controla os meios de produção e a riqueza socialmente produzida, procurou estabelecer um controle crescente sobre a ciência desde a origem do que a gente reconhece como ciência desenvolvida na Europa. Cada vez mais, a ciência sob o domínio do capital foi sendo convertida em uma força produtiva para a reprodução do capital. A ciência é um dos meios pelos quais capital consegue gerar novos produtos e capacidade de produção para se multiplicar na acumulação do capital. As ciências agrárias não fogem disso. Os primeiros cursos de agronomia, no início do século XIX, já estão a serviço da reprodução do capital. No caso do Brasil, o que você vai ver nos cursos das mais diversas ciências agrárias é um currículo para formar um profissional que se coloca a serviço do capital. Você não vai encontrar nas ciências agrárias, de uma forma geral, uma orientação de outro tipo para pensar na agroecologia, na agricultura tradicional dos povos indígenas, quilombolas, campesinato tradicional.

A partir da iniciativa do MST em 2003, você já encontra hoje no Brasil um grande número de cursos em nível técnico, tecnólogo, graduação, especialização e mestrado em agroecologia. É recente, mas em 17 anos conseguimos criar um grande sistema educacional em agroecologia, isso é uma revolução na história da educação, na história da agricultura. Como nós entendemos dentro do MST, os cursos de agroecologia são uma foice que derruba a cerca do latifúndio dos conhecimentos em ciências agrárias. A gente derruba a cerca dos latifúndio da terra e derruba a cerca do latifúndio do conhecimento em ciências agrárias. Por mais que estejamos em uma conjuntura do Estado ocupado por um governo fascista e antipopular, totalmente comprometido com o agronegócio, não há governo que consiga extinguir o sistema de educação em agroecologia. Já temos alguma capacidade de movimentos camponeses de dar continuidade a esses processos. Se hoje na academia tem cursos de agroecologia, é porque foi iniciado pelos movimentos camponeses. Não é o contrário, da academia para os movimentos, mas do movimento popular do campo para a academia.

Teia: Na Teia, principalmente quando a gente discute essa questão das sementes crioulas, é muito comum que os mais velhos pautem a necessidade da gente escutar e estar junto dos conhecimentos ancestrais e tradicionais. Como você enxerga esse diálogo entre os conhecimentos tradicionais e os conhecimentos agronômicos e/ou agroecológicos?

Tardin: Vou começar essa conversa voltando a falar de milho. Não se sabe muito ao certo, mas suas primeiras variedades, geradas pela relação do ser humano com as plantas originárias, deve ter pelo menos 7 mil anos. Pensa no que é conhecimento ancestral de que essa planta é portadora, resultante da relação de coevolução com diversos povos nesses milênios. O milho que a gente conhece só é o que ele é porque, há 7 mil anos, diferentes povos vem selecionando essa planta na natureza e dispersando ela nos intercâmbios livres que os povos foram estabelecendo pela América e depois com a Europa e a África, se dispersando como o um grande alimento da humanidade. Quando você tá olhando uma espiga de milho, você precisa ter em consciência que você tá segurando na sua mão pelo menos 7 mil anos de história. Como que o milho pode ser convertido em uma propriedade privada da Monsanto, Bayer, dessas corporações mundo afora? Não pode! Ela é um patrimônio da humanidade, resultado de 7 mil anos de história popular e, sem essa história, o milho não existiria.

Todas as plantas agrícolas cultivadas e os animais criados e reproduzidos na pecuária são produto de milênios de trabalho em coevolução de diferentes povos em diferentes lugares no planeta. Não foi desenvolvido por nenhum cientista formado em nenhuma universidade. Então quando a gente fala de ancestralidade, a gente tem que ter a capacidade de ir conhecer a história da nossa ancestralidade. Não pode ser um discurso genérico, tem que ser visualizado no milho, no pé de cacau, na planta da mandioca. Se não fosse o trabalho de povos indígenas do sertão brasileiro ou da Amazônia, não existiria mandioca para nós comermos. Por isso que o conhecimento da ancestralidade é fundamental. Ele tem que ser permanentemente compartilhado, estudado e compartilhado com a juventude, que se ela não consegue ter uma consciência da raiz do seu pertencimento histórico, é muito difícil para um jovem hoje reconhecer na fala ancestral um valor humano fundamental para sua libertação. Essa conexão é fundamental, e devemos estar preparados com essa identidade ancestral, humana-cultural, materializada nas plantas e nos animais, na água, na terra. Com esse movimento, conseguimos enfrentar os nossos inimigos que estão compondo com o agronegócio, com o acadêmico alienado dentro da universidade.

Por último, o que precisamos ter em consideração é essa relação [entre o] ancestral e aquilo que se reconhece como conhecimento acadêmico científico. Esse encontro, organizado de maneira sistemática, é o que reconhecemos como agroecologia. No final dos anos 1970 foi quando os primeiros acadêmicos se aproximam dos povos originários para reconhecer seus sistemas agrários de base ecológica e traduzir esse conhecimento no que eles passaram a chamar de agroecologia. Pensemos o seguinte: os povos que estabeleceram a relação e geraram o milho, fazem isso há mais de 7 mil anos, mas os pesquisadores que foram conhecer esses sistemas a campo, só conseguiram chegar nesse raciocínio lógico estruturante do que eles publicaram com o nome de Agroecologia no início dos anos 1980. Se não é essa ancestralidade realizando a criação e coevolução daquele povo com aquela planta, o acadêmico não teria base empírica e material objetivo para pensar a elaboração acadêmico científica da Agroecologia. Todas as raízes da agroecologia estão na ancestralidade. Elas não estão no âmbito do laboratório. Obviamente que a academia também incorporou nessa teorização conhecimentos próprios. Essa unidade permitiu a gente potencializar, como Agroecologia, aquilo que já realizam historicamente os povos ancestrais.

Teia: Para encerrar nossa conversa, gostaríamos de voltar ao princípio. Depois da publicação do primeiro texto da série Caminhos das Sementes, a gente recebeu comentários de algumas pessoas que leram e se interessaram em produzir o milho crioulo. Se você fosse dar uma dica para as comunidades que querem iniciar esses trabalhos, quais seriam os primeiros passos?

Tardin: O primeiro passo de um trabalho é descobrir o que a sua própria comunidade tem. Por experiência, vivenciei muitas vezes que grupos em comunidades camponesas ficam olhando pra sua realidade como se aquilo que precisam está fora da sua comunidade. É certo que muitas coisas hão de ser conquistadas em lutas gerais, mas algumas soluções já estão latentes e potencialmente presentes localmente.

A invasão cultural sobre os povos do campo é tão violenta que muitas vezes o camponês não sabe mais o que a família vizinha camponesa cultiva. Então, fica imaginando que, para conseguir uma variedade, tem que pensar em uma coisa que está lá longe. Toda comunidade camponesa tem um patrimônio genético enorme, vegetal e animal – plantas que são alimentos, outras medicinais, outras ornamentais, enfim. O primeiro grande esforço de um grupo que quer começar é se perguntar: “o que nós temos aqui mesmo onde a gente vive, no nosso dia a dia?”.

A partir do conhecimento local, ou seja, de entrevistar, dialogar e aprender com os anciãos e as anciãs da sua comunidade e reconhecer esse patrimônio genético, você lança as suas relações para outras comunidades, como uma oferenda de amizade, de relacionamento companheiro, com algum patrimônio genético que você “descobriu” dentro da própria comunidade.

E vou te falar uma coisa, de tudo que eu já me envolvi a campo, nenhum trabalho foi mais rápido e mais potente do que esse que é feito com semente! A vontade das mulheres camponesas, sobretudo e em primeiro lugar, no movimento crescente delas, o engajamento dos camponeses homens e da juventude, vem de arrasto para dentro desse trabalho. É impressionante e é reconhecido por pesquisas internacionais e documentos oficiais, as grandes guardiãs dos patrimônios genéticos da humanidade são as mulheres do campo. Se a gente já sabe disso, por onde que a gente deve começar um trabalho na comunidade? Com elas. Então juventude, se acorda aí, vai conversar com as vovós, com as mulheres mais maduras, que o trabalho vai ser muito mais grandioso, se misturando com o trabalho de outras comunidades. Vamos lá!

Ver também:

CAMINHOS DAS SEMENTES #1: O CHAMADO À PARTILHA DO MILHO CRIOULO PARA A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA E DO BEM-VIVER

Caminho das Sementes #3 – SOMOS COMO SEMENTES

O Caminho das Sementes #4: REDE DE SEMENTES – UMA CONSTRUÇÃO NECESSÁRIA PARA UM TEMPO URGENTE

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