Posted on: 11 de setembro de 2020 Posted by: arkx Brasil Comments: 1

O brincar na favela da Maré, jogo de vida e resistência em território conflagrado. A “Batalha da Rima” é também uma construção de solução.

A sorte numa Sexta-Feira 13

Eu me chamo Adelaide. Sou psicóloga e pesquisadora da infância. Faço parte de um grupo de pesquisa que discute a questão da descolonização epistemológica. De pensar a infância a partir da criança real e não da criança idealizada, de acordo com os moldes da elite.

No começo de março deste ano defendi minha tese de doutorado dentro da Comunidade da Maré na zona norte do Rio de Janeiro. A defesa foi numa escola que fica na frente da Vila Olímpica, entre a Baixa do Sapateiro e a Nova Holanda. Minha pesquisa foi sobre as brincadeiras infantis na Maré.

A defesa foi no dia 13/03/2020. É interessante marcar isso. Porque logo em seguida chegou na escola uma comunicação suspendendo as aulas, devido à COVID-19.

A escola onde eu fiz a minha pesquisa está situada em um território conflagrado, pela rivalidade entre duas facções do varejo do tráfico de drogas: o CV (Comando Vermelho) e o TCP (Terceiro Comando Puro). A escola fica no que se chama de “divisa”. A divisa entre as duas facções.

Além disso, há constantes incursões das polícias que vem com o Caveirão (carro blindado), os helicópteros e chegam atirando. As pessoas tem que se esconder e tudo mais.

Teve toda uma logística de como levar até lá os cinco membros da banca, incluindo uma professora da Universidade de Bauru (SP).

Na véspera, quando eu fui ver se estava tudo certo, um dos comandos do varejo do tráfico tinha quase fechado a rua. Passamos de carro por um espaço muito pequeno. Eles armados no meio da rua.

Então, eu fiquei tensa: “Nossa! Será que amanhã vai estar desse jeito. As pessoas vão ficar assustadas e tudo mais…”.

Mas no dia seguinte estava tudo mais calmo.

Eu contei muito com minha orientadora, Lúcia Rabelo de Castro. Ela me deu todo o apoio em organizar argumentos importantes, para convencer o colegiado do Instituto de Psicologia do UFRJ acerca da importância de aproximar a universidade desses lugares, que são invisibilizados pela sociedade.

Todos os professores integrantes da banca prontamente concordaram em participar de uma defesa de tese dentro da Comunidade. E a escola também sempre foi aberta e apoiadora do trabalho desde o início.

O mais interessante é que apesar de ter sido numa Sexta-Feira 13, para quem é místico nesse caso tudo aconteceu da melhor maneira possível!

Uma tese de doutorado nascida através dos becos e nas vielas

A pesquisa inicialmente estava planejada para acontecer somente no território da escola, dentro espaço escolar, voltada pra estudar a brincadeira dentro da escola. Qual o sentido e o espaço da brincadeira dentro da escola? 

Mas o trabalho ultrapassou vários muros.

O primeiro muro ultrapassado foi o próprio muro da escola.

Eu só fui para a rua porque me parecia que as brincadeiras que eu percebia dentro da escola tinham um sentido ligado ao território. 

Por isto eu precisava ir para às ruas, para entender o que acontecia dentro da escola.

Tive que andar pelos becos e pelas vielas do lugar. Circular entre homens  fortemente armados. Em muitos momentos as crianças acabavam me dando segurança, pela tranquilidade com que elas andavam por lá.

Foi também algo que eu aprendi. Quando você chega ali naquele local com uma proposta que esteja voltada pra infância, me parece que pessoas te permitem. Você ganha uma permissão de circular por ali. Mesmo entre os bandidos. Parece que eles até desejam isto. Talvez…

A escola também trabalha com o PEJA (Programa de Educação de Jovens e Adultos), sendo este o único diurno presencial oferecido para as 16 comunidades do Complexo da Maré. São 140 mil habitantes.

Minha tese tem muita informação obtida com a ONG Redes da Maré, que faz um trabalho sério, um trabalho importante ali. Tem também o Museu da Maré, que mostra a história da Favela da Maré.

Faço parte de um grupo de pesquisa, o NIPIAC (Núcleo Interdisciplinar e Intercâmbio de Pesquisa sobre Infância e Juventude da UFRJ), fundado pela minha orientadora.

Levantamos essa bandeira, da importância de se fazer pesquisas nos países do Sul. E aprender a fazer pesquisa a partir da nossa realidade, porque de uma forma geral os pesquisadores tem uma tradição de pesquisa global, baseada numa perspectiva eurocêntrica e norte-americana.

Inclusive atualmente estamos preparando um livro que vai chamar: “Infância no Sul Global”.

A zoação como jogo de auto-afirmação

O que eu identifico como muito presente no Complexo da Maré é o jogo de zoar, de zoação. Claro que não é só de lá daquele território, mas lá ele é muito presente. Posso dizer que ele é intergeracional, porque está presente desde a infância até a idade adulta.

Um jogo de zoar, de fazer zoação com o outro, de tirar sarro. De menosprezar o outro, de xingar o outro. E que exige que o outro de alguma maneira reaja, para se autoafirmar.

Esse jogo de autoafirmação e de empoderamento é um jogo importante para pessoas que moram em condições precárias, tão invisibilizados e que sofrem preconceitos diários.

Por isso me parecem ser tão isolados do resto da cidade, porque quando o favelado vai para a cidade ele é humilhado.

E isso é fala deles!

De uma entrevista com aluno: “Não adianta, eu sou morador da comunidade. Eu vou chegar na pista e o policial vai olhar prá minha cara mesmo. Eu tôu com documento, tudo certinho. Ele vai me esculachar, querendo ou não. Então, eu prefiro ficar aqui da comunidade, sair prá outra comunidade. Curtir. Sabendo que eu não vou ter um esculacho na rua, um esculacho de policial.”

Uma brincadeira exigindo a auto-afirmação faz que você tenha forças para acreditar em você. Porque quantos trabalhadores da Maré, muitas vezes são impedidos de ir para o trabalho. Porque às 5h da manhã, a bala está correndo solta, os helicópteros estão sobrevoando as casas. E os filhos também não podem ir para escola.

Tradicionalmente o brincar é associado a infância dentro da escola. Como se só em especial na educação infantil se precisasse brincar para poder fazer uma escola agradável.

E  não tem pesquisa falando sobre isso. Não existe! Foi uma dificuldade achar literatura dentro dessa área.

Eu percebi também professores brincantes. Isso foi sensacional.

Então por essa flexibilidade que os professores têm, eles faziam semanalmente um café da manhã,  com o apoio dos alunos. Os alunos levavam comida de casa. Antes das aulas, para começar, primeiro passavam por esse momento de relaxamento, de comer junto.

Chamo isso de currículo oculto. Um currículo que não é formal, mas possibilita nesse improviso curricular um momento de aproximação com os professores. E esses momentos são repletos de brincadeira, de zoação, entre os alunos e os professores.

A formatura é um momento emocionante. Os professores e a direção da escola preparam uma formatura em que os alunos vão de beca. Eu vi os meninos, os rapazes, as moças emocionadas, chorando. Ganhando o certificado de término do nono ano.

Junto com esses certificado tem uma simbologia, de que eles vão melhorar na vida, que eles vão conseguir chegar mais longe.

O outro ponto que eu chamo de lúdico é o passeio. É que denomino de abrangência espacial.

Essa abrangência espacial é uma aventura. Muitas vezes é pela primeira vez que os alunos tem a oportunidade de conhecer lugares interessantes na cidade do Rio de Janeiro. Porque a maioria não sai da favela. Em função dos preconceitos, falta de dinheiro, várias coisas.

Ficar isolado dentro da comunidade é uma segregação territorial. Com o apoio dos professores, no que chamei na tese de coexistência arrojada, eles vão para rua, procuram ônibus. Eles param o ônibus, conversam com motorista, para ver se é possível fazer um passeio.

Eu fui num passeio ao Museu Nacional de Artes. E é arriscado, porque coloca um monte de gente que nunca saiu da favela, ou saiu pouco, dentro de ônibus, andando pelas ruas.

Mas tudo no final vira um grande piquenique. Come todo mundo junto. Eles se sentem acolhidos numa relação mais próxima. O distanciamento fica menor.

Eles preparam comida para oferecer aos professores. Como uma forma de devolver carinho a esse apoio dos professores, que tem muito carinho por eles.

É muito bonito.

Essa maneira que eu chamo de lúdica, porque ela é permeada de brincadeira. O tempo todo, no ônibus, andando pela rua. Os alunos brincam o tempo todo, um com o outro, sempre naquele jogo de zoação.

Nas batalhas de rima muitas vezes eu vi aquela criança que foi humilhada pela rima, levou vaia e foi zoada por todo mundo, engolir o choro. Porque se ela chorasse, talvez fosse uma marca de mais humilhação.

Então, quando ela segura, é como se fosse uma preparação também para rua. A rua exige também você suportar uma certa humilhação e se segurar.

Nas Batalhas de Rima uma das coisas que percebi é a questão das cumplicidades, dos envolvimentos e dos afetos.Às vezes não era a criança que rimava melhor que ganhava mais destaque, mas porque era prima de alguém. De uma criança que tem já um destaque maior na hierarquia do grupo. Ou porque ela se saía muito melhor no futebol.

O brincar não é algo intrínseco da criança e nem dissociado do território dela, da sua cultura e da sua realidade. É importante entender que as brincadeiras não são abstratas, que o sentido criado  está relacionado aos modos de vida das pessoas.

Na Maré, os moradores brincam entre si. É um patrimônio lúdico repassado de uma geração para outra, transmitindo sentidos de virtude e honra dentro do quadro de competição de jogo, da zoação e do humor.

Coletivo Café com Leite

Com a pandemia, num momento de isolamento, que você tem que ter um distanciamento, como é que as pessoas vão se distanciar dentro dessas condições reais, tão precárias.

Então, eu fiquei muito mobilizada, muito mexida.

Eu e mais dois amigos, um deles professor da escola na Maré, criamos um coletivo que a gente chama Coletivo Café com Leite. Começamos a entregar cestas básicas para os moradores da Maré. A gente não é ONG, e nem pretende ser ONG. É mais um movimento de solidariedade.

O “café com leite” é uma regra nacional. Está presente em todos os lugares do Brasil. Quando a criança não sabe todas as regras da brincadeira, é permitido que ela entre também para brincar. Exatamente para aprender como é que se brinca.

E aí é “café com leite”. Então, nem toda a regra vale, se flexibiliza a regra, porque é um aprendizado.

Começamos oferecendo cesta básica.

Mas aí a coisa cresceu. Começamos a levar roupa, sapato, cobertor, utensílio de casa. Porque a gente começou a divulgar, porque existe uma rede de solidariedade de pessoas que foi divulgando, um divulgando para o outro. Existe uma rede de solidariedade por trás que nos apoia mensalmente.

E todo mês eles nos dão a possibilidade de juntar pelo menos R$ 5 mil. E levamos uma tonelada de alimentos para 55 famílias.

A xepa do livro aduba o gosto pela leitura

O meu projeto de pós-doutorado está vinculado ao Instituto de Psicologia da UFRJ, e tem a parceria da UERJ através da professora Lisandra Ogg.

A partir do meu trabalho de pesquisa, ela escreveu um projeto de extensão para a UERJ. Articulou com as alunas delas de Pedagogia o acompanhamento de leitura das crianças, via WhatsApp.

Nós ganhamos pelo Coletivo Café com Leite vários livros infantis. Livros maravilhosos de escritores renomados da infância. E levamos esses livros para as famílias que aceitaram participar do projeto.

Identificamos que os adultos também estão interessados em leitura.

Uma senhora diz que tem vergonha porque não sabe ler, mas quer ler.

Uma outra está interessada porque está montando uma pequena bibliotecazinha em sua casa.

Há também uma moça que brinca de escolinha com as crianças. Então quer livros infantis.

E quem diz não querer participar, está sendo sincero. Não associa isso a uma possível perda de cesta básica.

O Paulo Freire fala da importância da leitura da realidade, do contexto social.

Eu diria que as crianças e os jovens da Maré conhecem muito bem a realidade política e social dos seus territórios. Sabem das políticas públicas que favorecem a classe social a que eles pertencem. Entendem muito bem o lugar que eles ocupam na sociedade. Exatamente porque é um lugar do desvalor.

Nesse aspecto acho que eles sabem mais sobre política do que qualquer criança ou jovem de uma classe social mais favorecida.

Então, essa leitura do contexto social eles têm. Mas isso de nada adianta se não tiverem a leitura formal. O letramento é o que a escola oferece. O que a gente está tentando é trazer é o gosto pela leitura. O gosto de ler.

A coordenadora da escola, a Carolina, é superapoiadora desse projeto e também do Coletivo Café com Leite. Ela está sempre junto com a gente nisso.

Pós-Doutorado: a luta continua

Minha proposta é uma pesquisa aplicada dentro da construção de um laboratório lúdico, pedagógico, de produção de jogos com material reciclado, junto com os alunos.

A proposta é que esse laboratório seja produzido e acompanhado, além de mim, a partir das ações dos professores e dos alunos jovens e adultos do PEJA.

Vamos abordar questões estruturais da nossa sociedade, como o racismo e o machismo. E que são reproduzidos por pessoas que mais sofrem, porque todos nós sofremos e todos nós somos marcados.

De um certa forma, mais ou menos, a gente reproduz esses padrões de comportamento.

Então, a ideia é produzir jogos que ajudem a superar as dificuldades de aprendizagem, mas que também discutam aspectos do racismo e do machismo estrutural.

Um dos objetivos é escrever um livro sobre o patrimônio lúdico da Maré, continuando essa pesquisa junto com as crianças. Estou chamando de Equipe de Pesquisadores Mirins.

Outra coisa que precisamos entender é que a criança é alguém que sabe, ela sabe sobre a sua vida, ela sabe sobre o contexto social que ela está inserida.

A favela não é um lugar de apenas se olhar os moradores como violentos e marginais. Mas nem tampouco é um lugar onde você só vai ver sofrimento e “coitadismos”. São pessoas que batalham, para dar sentido às suas vida diariamente.

Eu fiz uma tese de doutorado, mas tem muita coisa ainda que ficou de fora e precisa ser pesquisada mais.

Nesse momento, por exemplo, esse trabalho social que estou fazendo me traz mais considerações sobre essa realidade. Estou aprendendo muito com essa troca.

É impressionante.

Adelaide R. Souza

pesquisadora da infância, faz parte de um grupo de pesquisa que discute a questão da descolonização epistemológica, pensando a infância a partir da criança real e não da criança idealizada de acordo com os moldes da elite


sobre os Diários da Pandemia:

  • Embora seja tb um trabalho jornalístico, se propõe a muito além disto.
  • Tem como objetivo principal tecer uma rede de comunicação entre as diversas lutas localizadas.
  • De modo a circular as experiências, para serem reciprocamente conhecidas numa retro-alimentação de auto-fortalecimento.
  • Não se trata de tão somente produzir matérias, e sim tornar as matérias instrumento para divulgar conteúdo capaz de impulsionar os movimentos.
  • Em suma: colocar a comunicação a serviço das lutas concretas.

acesse a série completa aqui neste link

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