Posted on: 24 de outubro de 2020 Posted by: arkx Brasil Comments: 1

Vídeo de Kamikia kisedje

A medicina do homem branco e o saber ancestral dos Povos Originários de mãos dadas na luta contra a COVID-19.

Controle social, educação popular. Teorias que me enchem de prazer, mas a prática transborda.

Dois dias entre os kisedje. Duas vidas de aprendizados.
Tony suya, contador de história. Nega qualquer comida que não seja natural. “Farinha só da minha roça”.

Sentado na cadeira de corda, conta que na sua época eram poucos. O tempo contava por lua, a canoa não tinha motor, o peixe era na flecha. A flecha, tinha que remar 3 luas pra achar.

Os Villas Boas chegaram, trazidos pelos Juruna. Chamaram os Kisedje prá fugir do homem branco. Eles foram, mas voltaram. “Nunca esquecemos essa terra roxa”.

Um dia o pai do Tony trouxe uma mulher. “Essa é sua esposa”. Tony voltou pra brincar no rio. “Não sabia pra que servia a esposa”.

Dormiu na rede com ela, mas de costas. “Filho, tem que dormir direito com sua esposa”.

Depois de uns dias ela disse que ia embora, “Meu marido não gosta de mim”.

Tony teve que gostar, e gostou. Gostou demais, foi sua única esposa. Aprendeu a ser marido, a ser pai. Hoje é viúvo, não casou mais.


Kuya suya, filha do cacique, Agente Indígena de Saúde, liderança feminina, uma das duas primeiras doulas indígenas do Mato Grosso. Quer ser parteira, igual a mãe.

Pediu autorização na comunidade pra ser agente de saúde, eles deixaram. “Não é fácil ser filha do cacique, todos estão sempre olhando”. Sua amiga também filha de cacique diz, ela sorri concordando.

Segue sua mãe desde pequena. Aprendeu os costumes assim. Acompanha todos os partos. Sabe do remédio de cada um.

Participa das reuniões, não se cala. Voz feminina que cresce nessa terra. Espírito livre, raro por aqui.

Enquanto olho a calmaria do rio, a bomba cai. O vírus entrou, será que entrou?

Reúne as lideranças, discute as angústias, cacique decide. Dez dias de escola fechada, cada um em sua casa, suspende reuniões coletivas. Reunião com a equipe de saúde. Decide horário de rádio, organiza atendimentos.

Todos de máscara, “Como toma o cafezinho agora doutora?”.
Todos respeitam. Se respeitam. Se orgulham de sua união. Exibem sua união.

E eu só aprecio, os olhos chegam encher de água. Esse Brasil é mesmo lindo de se ver.


Takuma kuikuro, segundo óbito por COVID que presencio. Mas esse mais do que presenciei, contribuí.

Takuma era cadeirante, 50 anos, caquético. Cuidado com muita dificuldade na aldeia. Contaminou-se com coronavírus.

Foi difícil perceber os sinais. Oxímetro não pega, ausculta turbulenta, não fala.

Até agora me pergunto se deveria ter feito diferente.

Rapidamente ficou grave, cansado. Tava difícil respirar. Oxigênio contínuo, antibiótico venoso. Tudo na aldeia.

“É muito grave, ele pode não sobreviver ao dia de hoje.”

Noite em claro, Takuma está cansado. Outra noite; pequena melhora. Ele está estável, com fluxo mais baixo de oxigênio. Hoje a equipe pode dormir.

Às 8h da manhã, a equipe chega. Takuma não conversa mais. Está muito cansado. Pressão baixíssima, pupilas não reagem.

“É grave, Takuma não respira mais sem oxigênio. Esse é nosso último cilindro. Vamos pra cidade?”

“Não doutora, Takuma vai morrer na aldeia”

O choro coletivo começa. A família entende que são os últimos momentos. Vêm pessoas de outras aldeias chorar a seu lado. Todos querem abraçar Takuma.

“Doutora, você pode desligar o oxigênio? Nós queremos abraçar ele sem máscara.”

Paro, penso. Eu vou desligar, ele vai morrer. Mas vai morrer abraçado. Fecho o oxigênio.

Todos abraçam, choram, desmaiam. Eu não vejo mais Takuma, são muitos em seu peito. Uma mulher grita olhando pra mim. Depois descubro o que ela diz:

“Por que o branco trouxe essa doença pra matar os índios?” Gostaria de responder: “Sinto muito”.

Não vejo Takuma morrer. Como vou atestar esse óbito? Será que vou enterrar alguém com vida?

Me dou conta do meu poder, ele é imenso. Minha angústia maior ainda.

Takuma está pintado, colorido. Ele é um guerreiro de novo. Está em paz.

Sua família sofre, o sofrimento mais intenso que já vi. Homens e mulheres adultos desmaiam, parentes carregam seus corpos em sofrimento. Adolescentes desmaiam. Crianças choram.

O corpo entra no caixão, o caixão entra no buraco. Sua mãe se joga em cima. Familiares a retiram.

O buraco é fechado, o choro se ouve à distância. Takuma se foi.

Só agora percebo que essa foi minha primeira eutanásia. Foi difícil, eu desliguei o que o mantinha vivo.

Mas vi uma morte linda. Pessoas de longe vieram lhe ver. Deixei que ele fosse abraçado.

Se puder escolher, espero que algum dia façam o mesmo por mim.

 

ver também:

Diários da Pandemia #10: na linha de frente – Alto Xingu

Daphne Lourenço

Médica de Família e Comunidade, atuando no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Xingu.


sobre os Diários da Pandemia:

  • Embora seja tb um trabalho jornalístico, se propõe a muito além disto.
  • Tem como objetivo principal tecer uma rede de comunicação entre as diversas lutas localizadas.
  • De modo a circular as experiências, para serem reciprocamente conhecidas numa retro-alimentação de auto-fortalecimento.
  • Não se trata de tão somente produzir matérias, e sim tornar as matérias instrumento para divulgar conteúdo capaz de impulsionar os movimentos.
  • Em suma: colocar a comunicação a serviço das lutas concretas.

acesse a série completa aqui neste link

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