Posted on: 5 de abril de 2023 Posted by: michele Comments: 0

Mulheres Xokleng, de Terreiro, Kaingang, Guarani, Kilombola e de luta no primeiro dia do Encontro

Relato do I Encontro Artístico, Político e Espiritual de Mulheres da Teia dos Povos em Luta no RS

Imagens: Para Rete e seu irmão Dalton (Tekoa Mbya Guarani Jatai’ty, Cantagalo, Viamão)

Redação: Carmensita (Ateneu Libertário A Batalha da Várzea) e Michele (Território Junana)

Edição: Michele Junana

Nos dias 04 e 05 de março de 2023, mulheres de vários cantos do estado, territorializadas ou que atuam como elos da Teia dos Povos, se reuniram em Porto Alegre e Canoas para se nutrir e tecer juntas caminhos de bem viver. Sentimos a necessidade e o desejo de nos reunir presencialmente (pois apesar da vontade comum de construirmos um mundo onde caibam muitos mundos, nem sempre temos a oportunidade de estar juntas), e também pusemos a mão na massa, apoiando com mutirões os territórios que nos acolheram. Estiveram presentes mulheres de todas as idades, vindo de ocupações urbanas, assentamentos da reforma agrária, de territórios sagrados indígenas e kilombolas, assim como elos que residem nas cidades.

No sábado, dia 04, somamos forças na Retomada Gãh Ré, reivindicação indígena ancestral no Morro Santana, zona leste de Porto Alegre. Retomada Kaingang que resiste em plena cidade, um pedacinho de mata em meio à urbe, ao lado da antiga pedreira. Avó Gah Té, Iracema, liderança da retomada, essa árvore tão antiga, sábia e frondosa que caminha. Muita reexistência. 

Nesse primeiro dia optamos por nos reunir somente entre mulheres que já vêm construindo a Teia no RS. Pudemos cantar, rezar, pedir lincença, caminhar as ancestralidades, abrir os caminhos. E, mesmo com fortes pancadas de chuva, conseguimos nos apertar debaixo da lona e tecer em volta do fogo sagrado. Alguns trechos das falas:

“A gente enfrenta o enfraquecimento

A gente tá doente por causa desse sistema

Consumismo capitalismo racismo machismo

Sempre correndo

E não dá atenção pra chuva caindo, pro vento, pra vida vivendo

E isso eu aprendo com as crianças

Entre mulheres

O que a gente precisa

Pra onde a gente tá caminhando

Como Yashodhan disse, a gente precisa de estratégia

E as mais velhas estão sempre tecendo”

Palavras de Rusha, que também contou um pouco da experiência de educação na Vila Resistência (Santa Maria), escola do tambor e do maracá.

Carina, do Quilombo Coxilha Negra (São Lourenço do Sul), pediu licença e agradeceu a existência das mais velhas. Contou que estavam desconfiadas do que era essa Teia dos Povos, mas resolveram experimentar e conhecer o que era esse movimento que lhes foi apresentado por gente branca. E  conheceram esse povo bonito, foram se somando no seu tempo, “e essa articulação respeita isso, respeita nossa escrita poética, porque a gente aprende da oralidade”, conta Carina. 

Cenira, também do Coxilha Negra, tem 3 filhos e considera que a pauta principal é a educação. “A gente planta de tudo mas não tem terra suficiente, não da pra se manter. A gente não sabe dos nossos direitos e não querem que a gente saiba, não querem que a gente tenha educação pra que a gente não saiba. A gente tem que ter tudo documentado pra mostrar pros brancos e pra justiça.” A escola no Quilombo foi desativada pelo Estado, e Rusha incentivou retomar essa escola.

Yashodhan, liderança política e espiritual da ComPaz, resistência kilombola afrobudígena protagonizada por mulheres, contou que construíram a Comkola Kilombola, “e somos educamoras dos educamados”, conta ela, compartilhando um pouco da ressignificação que praticam através não só das práticas, mas também das palavras.

“Chorar pode, desistir, não pode. Medo a gente tem, mas não usa.” Essas palavras de Yashodhan marcaram, e foram repetidas várias vezes ao longo do Encontro.

“Aqui vai ter a escola Gãh Ré”, disse Gah Té, que é conselheira da Teia RS. 

“Foi muita luta. 

Os nossos encantados, a Mãe Terra, é mais forte. 

E estamos aqui para deixar as sementes para os mais novos. 

O dia que eu for encantada, eu vou tranquila, porque já deixei o caminho.

A mãe que se chama Brasil tem muito espaço pra abrigar todos seus filhos e netas. 

E pra garantir tudo isso a gente precisa escrever, deixar tudo escrito. 

Nós Kaingang sonhamos muito. 

Acordado, dormindo.

Põe a mão na terra que tu vai sonhar.

É muito bom sonhar junto.”

Mãe Patty de Oxum lembrou que esse encontro só acontece porque mulheres maravilhosas doaram seu útero pro nascimento de cada uma. 

“O nosso povo preto não veio só pra dançar, fazer carnaval e tocar tambor.

Temos história.

Temos tradição, que a escola não conta.

E os nossos jovens não se enxergam mais nas escolas.

E desistem, e eles estão certos.

Precisamos das nossas escolas indígenas.

As nossas escolas quilombolas.

A gente precisa unir as nossas forças

E ter coragem.

Com as nossas forças unidas a gente pode enfrentar qualquer governo.

Os governos não foram feitos, 

e não estão aí,

para nos ajudar.

Tudo que a gente consegue é com luta.

E ainda chamam a gente de baderneiro…

Os nossos ancestrais nos deram nosso axé de fala

e nós não vamos nos calar.

Eu vou levar

muito mais do que eu vim trazer aqui…

Essa luta é nossa e é pra vida.”

Saímos desse dia com a Frente de Mulheres da Teia RS criada, e com a Carta, que pode ser conferida aqui.

O segundo dia do Encontro se deu na Horta Vó Maria, em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre; que é um ponto de resistência da vida, onde estão literalmente plantando para o futuro. Surgiu a partir das mãos de mulheres que viram a oportunidade de ocupar a cidade de forma (pro)positiva para a comunidade, produzindo alimentos para si e para quem não tem. Nesse dia, o Encontro contou com a presença de todes que sentiram de participar, nas trocas e no apoio da infraestrutura, com as tarefas da alimentação coletiva e ciranda. Mas o protagonismo foi das mulheres.

Pudemos nos ver, nos ouvir e fortalecer em meio a uma roda de canto, rezo, conversa e mate. Mais trocas ocorreram após a roda, em uma feirinha de trabalhos e produtos das mulheres do campo, da floresta e da cidade: artes, espiritualidade e bem viver expressas em pinturas, impressões, crochês, serigrafias, livros, artefatos indígenas, quilombolas, terapêuticas naturais e alimentos. Tudo isso ao som da voz de Luciara Batista, que nos brindou com um bom samba no final da tarde. A criançada pintou a rua, rodou bambolê, brincou com bolhas gigantes de sabão… 

Esperamos, com essa primeira experiência de encontro, no mês de luta das mulheres, que possamos continuar tecendo essa Teia, aproximando mais companheiras, construindo o mundo novo que carregamos em nossos corações!

Saímos com muito calor no coração e uma Frente de Mulheres da Teia RS constituída, e a proposta de fomentar uma Frente Nacional de Mulheres da Teia. Cuidando da terra, da gente e da vida.

A jovem fotógrafa Mbya Guarani Para Rete fotografada pelo seu pequeno irmão Dalton.

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