Posted on: 21 de agosto de 2021 Posted by: Ramiro Comments: 1

Por Teia dos Povos em Luta no Rio Grande do Sul


Em Memória aos 12 anos do assassinato de Elton Brum da Silva.

Há 12 anos, caía Elton Brum, um sem-terra, trabalhador rural, homem preto. Durante uma ação de reintegração de posse de um latifúndio improdutivo em São Gabriel, RS, a Fazenda Southall. O assasinato foi praticado com tiros de escopeta calibre 12 pelas costas, disparados pela Polícia Militar, que mentiu para a mídia que o agricultor teria caído devido a um “mal súbito”. 

“Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em voo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles.”
(trecho da carta aos ratos, escrita por fazendeiros de São Gabriel à população local)

Enquanto uma multidão de sem-terras caminhava para São Gabriel, foi com estas palavras que a burguesia e o latifúndio local prepararam a recepção de todas e todos aqueles que buscavam lutar por dignidade. 

Para defender a propriedade privada, todo tipo de violência e ferramenta repressiva é permitida aos intermediários do poder: matam covardemente quem coloca seu corpo na luta para efetivar a reforma agrária, nos reduzem a ratos e aconselham-nos, com golpes de coronha ou incendiando nossas casas, a não nos movimentarmos, como dizia Fanon em “Os condenados da Terra” em 1961.

A história do Brasil é notadamente a história do genocídio dos povos originários, da escravidão, da exploração do trabalho de imigrantes condicionados e presos aos “antigos” senhores de escravos. A violência sempre se fez presente para usurpar não só as riquezas da terra, mas também o trabalho dos povos que nela viviam. A colonização fatiou todo o território de incontáveis e diferentes povos e culturas que aqui habitavam, dividindo-o e dando pleno poder aos colonizadores europeus para explorar e consumir o que podiam. Expulsavam e matavam quem estivesse em cima das terras, e os sobreviventes eram escravizados junto a diversos povos que foram arrancados e separados de suas raízes. 

Do Hemisfério Norte um sistema já consolidado chegava ao Brasil para substituir a escravidão transformando o escravizado em trabalhador assalariado. Para garantir o domínio sobre as terras e manter a mão de obra, se criou a Lei de Terras de 1850, que criminalizava as ocupações de terras no Brasil. Uma vez tornada ilegal a ocupação da zona rural, tanto os ex-escravizados quanto os imigrantes pobres europeus ficariam impedidos de ter suas próprias terras e naturalmente se transformariam em trabalhadores abundantes e baratos para os latifúndios. Essa medida é central para impedir o acesso à terra, daqueles e daquelas que nela trabalhavam, impossibilitando a construção de autonomia e emancipação.

Dando sequência a esse projeto colonialista, o capitalismo aperfeiçoou os sistemas de dominação e exploração das terras e dos povos, criando o agronegócio. Com a industrialização, mecanização do trabalho e a mercantilização da terra, a chamada Revolução Verde intensificou a desigualdade social no campo. Foi uma complexa articulação entre grandes latifundiários, Universidades, o Estado e as multinacionais vinculadas ao complexo industrial militar, que estavam com suas indústrias químicas obsoletas, fazendo surgir um novo ramo de produção ligada ao setor agrícola. Os acordos foram feitos, com suas práticas fascistas de propaganda, contando a mentira mais de mil vezes a transformaram em verdade, de que o modelo capitalista de produção agrícola iria acabar com a fome no mundo, a qual escutamos até hoje. Com isso o capitalismo vem avançando, fortalecendo os latifúndios, desmatando, exaurindo ainda mais a natureza, expulsando comunidades tradicionais e originárias de seus territórios.

A Campanha Gaúcha está entre as regiões mais afetadas pelo agronegócio no Rio Grande do Sul. Ela se estende por boa parte do bioma Pampa, que tem características próprias tanto na composição biológica como climática. O termo pampa, que significa região plana, foi cunhado no idioma indígena quechua pelos primeiros habitantes das planícies do sul da América do Sul, em tempos pré-colombianos. Essa denominação está ligada às paisagens de extensas planícies cobertas por vegetação baixa, predominante em uma área de clima temperado que se estende a partir da Patagônia argentina, Uruguai e metade do RS. Essas características do pampa e suas ocupações populacionais possibilitaram que algumas culturas agrícolas se desenvolvessem facilmente, estabelecendo polos de produção de monoculturas em grandes latifúndios intensificando os conflitos no campo.

Dividida em microrregiões, a campanha gaúcha contempla 19 municípios, e entre eles está São Gabriel. Atualmente em São Gabriel existem sete assentamentos da reforma agrária, que se estabeleceram após o movimento de luta camponesa entre os anos 2009 e 2010, mesmo processo que foi freado pela repressão covarde que tirou a vida do sem terra Elton Brum. 

O Brasil é um país com uma das maiores áreas agricultáveis do mundo e apenas 1% dos proprietários controlam quase metade das terras disponíveis. Com mais de cinco milhões de famílias sem terra, territórios indígenas e quilombolas sem reconhecimento, a desigualdade fundiária no Brasil é responsável por muita injustiça social, sendo o país que lidera o ranking em assassinatos no campo no mundo, tendo registrado mais de 2.050 conflitos fundiários apenas em 2020, aumentando a cada ano o índice de violência no campo.

Sabemos que o movimento por terra e território nasce da resistência dos povos do campo e das florestas que vivenciaram a gênese do latifúndio, por isso é preciso lembrar das várias e vários guerreiros que tombaram nessa caminhada.

Os povos originários e o campesinato são vistos como uma ameaça, um perigo à ordem estabelecida. Graças aos seus modos de vida potencialmente revolucionários, que não reconhecem Senhores, nem as lógicas de propriedade e de mercado ao criarem suas existências e autonomias a partir de seus territórios. Reverenciam os rios, as montanhas, o fogo, o vento, a chuva, os raios, os bichos e as plantas. Pois sabem que sem um equilíbrio nessa dança entre todos os seres não há vida.

“Os povos originários falam Mãe Terra (Pachamama, para os povos andinos) por muitas razões. Aprendemos que, sendo uma mãe, não devemos dividi-la, dando a cabeça para um filho, o estômago para outro e um pé para outro. Ela só existe em sua unidade e em sua unicidade.” (Mestre Joelson e Erahsto em “Terra e território: caminhos das revoluções dos povos no Brasil”)

Atualmente chamamos as maneiras harmônicas de se relacionar com o ser vivo que é a terra, a partir da agricultura, de agroecologia. A agroecologia é resistência, nossa existência em harmonia com a mãe terra, pois somos parte do planeta, somos células conscientes de um sistema vasto. Respeitando a biodiversidade e os agroecossistemas para o desenvolvimento agrícola, fortalecemos o processo de adaptação e coevolução sem distinguir a humanidade da natureza. Afinal, a fumaça dos desmatamentos na Amazônia fazem o dia virar noite em São Paulo. Os rios viajam não só debaixo da terra, mas flutuam. Se a Amazônia é destruída, não chove no Sul. A areia do Saara atravessa o oceano e traz nutrientes para as florestas. A vida no planeta está toda interligada. O planeta Terra é um grande território, um grande conglomerado de territórios, uma galáxia de ecossistemas.  

A sociedade capitalista vive uma “amnésia biocultural” como consequência do agronegócio. Alguns povos perderam as referências e conhecimentos tradicionais sobre as práticas de manejo e de cuidado com a vida. Toda a carga histórica das técnicas e práxis sobre a agricultura foi perdida com a Revolução Verde, portanto é preciso redesenhá-las e resgatá-las. Que cultivemos a biodiversidade na sua totalidade, busquemos a soberania alimentar a partir das sementes, para que possamos escolher o que produzir, em quais condições, e para quê. Que possamos ser como os agregados no solo e que através da coletividade, cooperação, mutualismo, possamos somar no ambiente, fortalecer suas raízes e nutrir seus cernes.

De forma coletiva, precisamos reorganizar nossas capacidades rebeldes para ocupar, resistir, produzir e levantar florestas em nome das/os que caíram na caminhada por terra e território. 

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