No dia 14 de fevereiro o Assentamento Terra Vista recebeu mulheres, crianças, professores e professoras, pajés e lideranças do povo Tikmũ’ũn, da Terra Indígena Maxakali-Água Boa (Santa Helena de Minas – MG), formando um grupo de mais de 40 pessoas. São os primeiros passos na concretização de um sonho de aliança com estes nossos irmãos que guardam uma sabedoria milenar e são verdadeiros senhores da Mata Atlântica, mesmo tendo perdido praticamente todo o seu território e estando hoje vivendo sobre o capim que os invasores deixaram na pequena parcela em que vivem. Iniciamos um trabalho piloto de intercâmbio e formação em agroecologia, intitulado “Trocas de saberes e sementes Terra Vista – Tikmũ’ũn_Maxakali”, que conta com parceria do Colégio Estadual Milton Santos, das Escolas Estaduais Indígenas Maxakali de Água Boa e Pradinho, da UFSB, do FIEI (UFMG), das prefeituras de Bertópolis e Santa Helena de Minas (MG) e o apoio do Fundo Casa Socioambiental.
Diálogo entre Maxakali e Sem Terra
Foi uma semana de caminhadas pelas matas, trocas e muito aprendizado. Todos estes momentos foram firmados pelos cantos que os Tikmũ’ũn relembram para cada ser vivo que encontram. Vários mestres-agricultores do Assentamento receberam os Tikmũ’ũn para apresentar suas roças, seus SAFs (Sistemas Agroflorestais), suas formas de cultivo, suas composteiras e biogel. Um verdadeiro diálogo entre saberes e culturas se travou no meio das roças, nas trilhas, nos locais de encontro e até no campo de futebol do Assentamento Terra Vista.
As rodas de conversa permitiam traduzir não apenas línguas, mas cosmologias e sistemas de conhecimento. As mulheres Tikmũ’ũn conheceram a cadeia de produção de óleos essenciais, e do chocolate orgânico e demonstraram sua produção de enlaces com a fibra do raminho, que além da embaúba, fornece fibras maleáveis e fortes para seus trabalhos. As fibras que as permitem fabricar bolsas e outros artefatos são por elas chamadas de Tuthi – fibra mãe. A visita até a Terra do Bem Virá terminou com a consagração deste local de sonhos com os cantos do Mõgmõka (o povo gavião espírito):
Durante a semana, quem estava no Assentamento podia ouvir os cantos ecoarem dentro das matas, pelos caminhos, pelas trilhas. Quem caminhou com os Tikmũ’ũn, mesmo sem saber falar sua língua, compreendeu o tempo de cada experiência, de cada encontro com os seres da mata, dos minúsculos e invisíveis aos maiores, e percebeu que a troca de saberes se fazia na intensidade que os cantos impregnam em cada relação. O saber é o resultado dos laços selados pelos cantos.
A solidariedade e as sementes crioulas
O domingo foi um dia de bençãos. O Assentamento Terra Vista recebeu uma comitiva da Teia dos Povos em Pernambuco composta pela companheira Eva, o companheiro Fernando e o companheiro Carcará, do povo Kariri. Eles viajaram quase 2 mil quilômetros em uma Kombi coletando doações de sementes nativas nas comunidades do sertão do Pernambuco para doar às comunidades que perderam suas roças no sul da Bahia demonstrando que existe muita solidariedade entre os povos para seguirmos no caminho da transformação dos desastres ambientais em festa, trabalho e pão. Foram 1,1 tonelada de sementes crioulas. Os mutirões organizados pela Teia dos Povos levarão estas sementes crioulas até as comunidades que perderam suas roças com desastres provocados no Sul da Bahia pelo ecocídio perpetrado pelo sistema capitalista.
Para isso as sementes foram abençoadas pelos Encantados que nos trouxeram os parentes da Terra Indígena Caramurú Catarina Paraguassu com o Cacique Nailton, a Mestra Maria Muniz, a pajé Rita e toda a juventude formada na ancestralidade guerreira deste povo. As sementes foram distribuídas pelas mãos das crianças do assentamento, dos territórios indígenas e quilombolas. Ali naquele encontro, Encantados dos povos Tupinambá, dos povos Pataxó Hã Hã Hãe e os Yãmĩyxop, os seres espirituais aliados dos Tikmũ’ũn, estavam reunidos para celebrar a vida, as sementes, e firmar a união dos povos na defesa da Mãe-Terra.
O livro de Mestra Mayá
Foi também o momento do lançamento do Livro da Mestra Mayá, Maria Muniz, A escola da reconquista, um livro que traz, na voz de uma mulher, uma parte do seu histórico de luta na frente do seu povo pela reconquista do território, mas também a reconquista da vida, do ser indígena e da força deste povo milenar. O livro de Mayá é a segunda publicação da Teia dos Povos, que criou sua linha editorial autônoma e contracolonial, com a vocação de trazer reflexões de mestras e mestres da terra e da luta revolucionária e de contar de outra forma a história desta grande terra que chamam de Brasil (à venda pelo site).
Neste mesmo dia, estavam ali reunidos, três mestres dos saberes tradicionais que se tornaram os primeiros doutores reconhecidos por Notório saber pela UFMG, e mesmo por qualquer outra Universidade Federal brasileira: Joelson Ferreira (Doutor em Arquitetura e Urbanismo), Nailton Muniz (Doutor em Comunicação), Antônia Braz Santana (Doutora em Educação) e Maria Muniz, cujo processo de indicação está em tramitação. Uma conquista simbólica da luta pela descolonização e pelo reconhecimento dos saberes de quem cuida da terra e da vida dos povos da terra.
Um assentamento em festa
Comemorando seus 30 anos, o Assentamento Terra Vista é hoje um lugar que recebe jovens de todo o país, estudantes, professores universitários, companheiros de luta, e todas as pessoas que buscam aprofundar e praticar o processo revolucionário junto com a terra e os povos que dela cuidam. É por si só um feito grandioso que as famílias de assentados e agricultores saibam receber com tanta ciência e cordialidade os povos Tikmũ’ũn, falantes de uma língua tão distante, o maxakali, agrupada entre as línguas macro-jê. Raramente encontramos no mundo contemporâneo tanta abertura à alteridade e às diferenças radicais de socialidade. É como se as famílias de assentados estivessem estudado muitos anos de antropologia. Mas a linguagem ali era a da terra, da floresta, dos bichos, das coisas vivas que se movimentam e se transformam, da ancestralidade, e a lógica era a da qualidade sensível daquele mundo que o Assentamento vem transformando. Isso permitiu o encontro.
Com 30 anos de lutas, com a força e bravura do povo da terra que ali vem criando suas famílias e enfrentando desafios, o Assentamento se torna pouco a pouco um centro onde as sementes se multiplicam, onde os cantos e os saberes se propagam, e onde se pode receber representantes de povos como os Tikmũ’ũn, que, apesar de tanta perseguição e estigma, mesmo sofrendo através dos séculos toda a violência colonial, impressionam a todos pela sua resistência, pela sua alegria e pela sua espiritualidade.
[…] Maxakali no Terra Vista: agroecologia, sementes e festa – Teia dos Povos […]