Solidariedade e luta contra a violência do Estado: o percurso do movimento dos camelôs do Rio neste tempo de pandemia.
Este período da pandemia começou no dia 16/03, o último dia que eu montei minha barraca rua.
Num primeiro momento fizemos uma vaquinha virtual, nossa meta seria R$ 25 mil. Em apenas uma semana conseguimos R$ 28 mil. Foram distribuídos R$ 250 para 100 pessoas.
Tivemos também um financiamento do Fórum Nacional de Reforma Urbana no valor de R$ 6.400, com os quais foram compradas 64 cestas básicas.
Participamos de uma live feita no Complexo da Maré, com isto arrecadamos mais de R$ 8 mil. Também convertidos em cestas básicas e também 14 depósitos de R$ 100 para os camelôs.
Num segundo momento, tivemos a doação de 100 cestas básicas pelo Instituto da Cidadania. E depois de muita luta e de muito esforço, 225 vindas da Prefeitura do Rio.
Logo após tivemos o financiamento do Instituto Unibanco, o mais que tivemos. Proporcionando no primeiro mês 3.500 cestas básicas, no segundo 4 mil e agora neste mês mais 4 mil.
No total até o momento, são 12 mil cestas básicas distribuídas.
Frente a urgência de atender os mais necessitados, no primeiro momento não priorizamos se o atendido era camelô ou não. E daí fomos organizando um cadastro, hoje com 4 mil pessoas, que uma vez por mês estão recendo uma cesta básica.
Também montamos uma lista de espera, pessoas aguardando a oportunidade de uma nova campanha.
Como não fechamos a campanha apenas nos camelôs, então foi chegando motorista de ônibus, taxista, motorista de Uber, pessoal dos aplicativos, domésticas. Todos foram incluídos no cadastro.
Distribuímos também alimento para os estrangeiros. São pessoas que estão ainda pior do que os brasileiros. Pelo menos os brasileiros tem aqui parentes, amigos. Eles não tem ninguém. Todos são desempregados, trabalhando na economia informal.
Quem passa pela Rua Uruguaiana [rua tradicional no Centro do Rio] pode ver o “shopping chão“. A Uruguaiana inteira, a quantidade de estrangeiros que estão ali trabalhando na rua.
É um trabalho danado. E no primeiro mês foi muito difícil. Tivemos que organizar grupos no WhatsApp para nos comunicarmos com os atendidos. Como muitos não tinham WhatsApp, o contato foi por ligação telefônica.
Este mês estamos tentando uma nova campanha para arrecadar alimentos.
É “normal” os camelôs perderem sua mercadoria para a Guarda Municipal, acontece sempre, o tempo inteiro.
No início de Julho fizemos uma manifestação na porta da Prefeitura. Lá foi tirada uma comissão, para falar com a Secretaria de Licenciamento e Fiscalização. Eles nos receberam. Mas ainda não fizeram nada.
Eles te enrolam. Ficaram de marcar uma outra reunião. Mas até hoje não encaminharam nada, nenhuma de nossas pautas e nossas demandas que levamos. Nada, nada, nada!
A nossa luta é também contra a militarização da Guarda Municipal. Tem um Projeto de Lei na Câmara de Vereadores neste sentido. Nossa luta é para ele não passar.
Uma outra reivindicação nossa é pelo depósito público, onde possamos guardar nossas mercadorias.
Também pleiteamos que a Prefeitura dê transparência ao nosso cadastro. Este cadastro foi elaborado em 2009 e atualizado em 2018, mas não tem transparência quanto as pessoas incluídas no cadastro, qual a pontuação, qual a previsão de serem atendidas.
Temos uma guerra muito grande com a Prefeitura porque ela não tem diálogo com a categoria. E eles nunca sentaram para conversar coma gente. Tudo aquilo que decidem é feito dentro do escritório, entre os Secretários.
Depoimento dado ao AMORJ (Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro), em 11/03/2020:
Na minha trajetória de lutas eu devo muito a CUT. Se hoje eu consigo pegar um microfone e falar numa manifestação, encaminhando a luta dos camelôs, eu devo a CUT.
No pior momento, lá em 2003, quando a gente não sabia de nossos direitos, fomos acolhidos na CUT que me deu a formação que tenho hoje.
Para podermos brigar com a Prefeitura, para garantir nosso espaço de trabalho na rua. Brigar com o Estado, pelo direto à moradia, por um hospital de qualidade, por uma escola de qualidade.
Então, sou muito grata à CUT por ter me dado esta formação.
Em 2003, com o prefeito Cesar Maia baixando o cacete nos trabalhadores informais, foi quando com o apoio da CUT fizemos nosso primeiro ato, em 01/07.
Na hora de subir no carro de som e pegar o microfone, eu não consegui falar nada!
Nós camelôs trabalhamos na rua, e a quantidade de pessoas vindo para o trabalho informal aumentou muito ao longo dos últimos anos.
A precarização do trabalho, a uberização, o povo que trabalha com aplicativos, precisamos nos voltar para este setor informal. São pessoas que não tem garantia alguma e vem para a rua disputar o mercado de trabalho.
E para o filho do favelado, do morador de ocupação, o filho do morador da Baixada Fluminense, a disputa é muito desigual num mercado de trabalho já bastante fechado.
O camelô está nas ruas para atender as necessidades da população. Quando chove, é o camelô quem as pessoas buscam para comprar o guarda-chuva. Volta e meia alguém esquece em casa o carregador do celular, é ao camelô a quem recorrem.
No Carnaval, o camelô é o garçom da festa. Imagina o bloco Cordão do Bola Preta, um bloco com 2 milhões de pessoas no Centro do Rio, sem o camelô.
Mas o camelô não é respeitado pelo poder público. A Prefeitura vem e baixa o porrete.
Eu tenho autorização para trabalhar na rua, e não preciso mais correr da Guarda Municipal. Mas o fiscal está sempre perseguindo a gente.
Minha barraca é tradicional, bem no Centro do Rio. Onde trabalho com meus filhos. Minha filha tem 28 anos, faz Faculdade de manhã. O meu filho tem 24, e faz à noite. E a namorada do meu filho estuda à distância. E a gente reveza na barraca, porque fazer a militância é trabalhoso.
Eu sou camelô. Eu não saio da rua. Eu aprendi a trabalhar na rua. Gosto do que faço. Não tenho vergonha nenhuma.
E o que percebemos é que não vai ter mais emprego. Não vai ter mais segurança, carteira assinada. As pessoas estão sendo demitidas para serem recontratadas pela mesma empresa por um período temporário.
Os camelôs são muito criminalizados. É uma categoria muito difícil de organizar. São pessoas que escutam muito o que os pastores das igrejas neopentecostais orientam. Em que devem votar, o que devem fazer. É uma população muito difícil de discussão, mas estamos sempre fazendo esta disputa.
Quando tem um camelô preso, a gente corre atrás. Libera. Fazemos vaquinha quando ele está na cadeia, para manter a família. Temos um grupo de organização bem atuante.
O cadastramento feito em 2009 foi muito covarde. Muita gente que nunca trabalhou no comércio informal ganhou autorização. E os camelôs acabaram virando empregados dessas pessoas.
Também não queremos apenas a “liberação da rua”. Precisamos da rua organizada. Porque só “liberar a rua” gera denúncia, e a denúncia gera repressão.
A gente vai continuar lutando. Muda governo, vem governo e a gente está na rua resistindo.
Eu sou mineira, de Caratinga. Vim para o Rio com 12 anos de idade, para trabalhar em casa de família.
Também fui moradora na Ocupação Chiquinha Gonzaga, em 2004, no período em que organizamos o MUCA (Movimento Unido dos Camelôs), em 2003.
Aprendi muito dentro da ocupação também. Aprendi muito a viver em coletivo. Foi uma formação muito boa naquele espaço. Algo que eu levo para o resto de minha vida. Tinha anarquista, tinha pessoas de partido. Eu tive a escola dentro da CUT. Eu tinha a vivência da rua. Quando você começa a militar você quer ir a todas as reuniões. E eu ía a todas, para aprender.
Antes eu tinha muito medo de falar em público. Esta formação prá mim foi muito importante. Eu aprendi muito. A necessidade me fez enfrentar a dificuldade. E hoje eu falo prá caramba. Tem hora que passo até do meu tempo. (risos)
MUCA: https://pt-br.facebook.com/mucariodejaneiro/
Maria Camelô,
liderança histórica do MUCA (Movimento Unido dos Camelôs).
vídeo:
sobre os Diários da Pandemia:
- Embora seja tb um trabalho jornalístico, se propõe a muito além disto.
- Tem como objetivo principal tecer uma rede de comunicação entre as diversas lutas localizadas.
- De modo a circular as experiências, para serem reciprocamente conhecidas numa retro-alimentação de auto-fortalecimento.
- Não se trata de tão somente produzir matérias, e sim tornar as matérias instrumento para divulgar conteúdo capaz de impulsionar os movimentos.
- Em suma: colocar a comunicação a serviço das lutas concretas.
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[…] #11: Movimento Unido dos Camelôs – MUCA-RJ […]
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